segunda-feira, abril 15, 2024

Ler devia ser proibido



LER DEVIA SER PROIBIDO

Guiomar de Grammont1

A pensar fundo na questão, eu diria que ler devia ser proibido.

Afinal de contas, ler faz muito mal às pessoas: acorda os homens para realidades impossíveis, tornando-os incapazes de suportar o mundo insosso e ordinário em que vivem. A leitura induz à loucura, desloca o homem do humilde lugar que lhe fora destinado no corpo social. Não me deixam mentir os exemplos de Dom Quixote e Madame Bovary. 

O primeiro, coitado, de tanto ler aventuras de cavalheiros que jamais existiram meteu-se pelo mundo afora, a crer-se capaz de reformar o mundo, quilha de ossos que mal sustinha a si e ao pobre Rocinante. Quanto à pobre Emma Bovary, tomou-se esposa inútil para fofocas e bordados, perdendo-se em delírios sobre bailes e amores cortesãos.

Ler realmente não faz bem. A criança que lê pode se tornar um adulto perigoso, inconformado com os problemas do mundo, induzido a crer que tudo pode ser de outra forma. Afinal de contas, a leitura desenvolve um poder incontrolável. Liberta o homem excessivamente. Sem a leitura, ele morreria feliz, ignorante dos grilhões que o encerram. 

Sem a leitura, ainda, estaria mais afeito à realidade quotidiana, se dedicaria ao trabalho com afinco, sem procurar enriquecê-la com cabriolas da imaginação. Sem ler, o homem jamais saberia a extensão do prazer. Não experimentaria nunca o sumo Bem de Aristóteles: o conhecer. Mas para que conhecer se, na maior parte dos casos, o que necessita é apenas executar ordens? Se o que deve, enfim, é fazer o que dele esperam e nada mais?

Ler pode provocar o inesperado. Pode fazer com que o homem crie atalhos para caminhos que devem, necessariamente, ser longos. Ler pode gerar a invenção. Pode estimular a imaginação de forma a levar o ser humano além do que lhe é devido.

Além disso, os livros estimulam o sonho, a imaginação, a fantasia. Nos transportam a paraísos misteriosos, nos fazem enxergar unicórnios azuis e palácios de cristal. Nos fazem acreditar que a vida é mais do que um punhado de pó em movimento. Que há algo a descobrir. Há horizontes para além das montanhas, há estrelas por trás das nuvens. 

Estrelas jamais percebidas. É preciso desconfiar desse pendor para o absurdo que nos impede de aceitar nossas realidades cruas.

Não, não deem mais livros às escolas. Pais, não leiam para os seus filhos, pode levá-los a desenvolver esse gosto pela aventura e pela descoberta que fez do homem um animal diferente. Antes estivesse ainda a passear de quatro patas, sem noção de progresso e civilização, mas tampouco sem conhecer guerras, destruição, violência. Professores, não contem histórias, pode estimular uma curiosidade indesejável em seres que a vida destinou para a repetição e para o trabalho duro.

Ler pode ser um problema, pode gerar seres humanos conscientes demais dos seus direitos políticos em um mundo administrado, onde ser livre não passa de uma ficção sem nenhuma verossimilhança. Seria impossível controlar e organizar a sociedade se todos os seres humanos soubessem o que desejam. Se todos se pusessem a articular bem suas demandas, a fincar sua posição no mundo, a fazer dos discursos os instrumentos de conquista de sua liberdade.

O mundo já vai por um bom caminho. Cada vez mais as pessoas leem por razões utilitárias: para compreender formulários, contratos, bulas de remédio, projetos, manuais etc. Observem as filas, um dos pequenos cancros da civilização contemporânea. Bastaria um livro para que todos se vissem magicamente transportados para outras dimensões, menos incômodas. E esse o tapete mágico, o pó de pirlim-pim-pim, a máquina do tempo. 

Para o homem que lê, não há fronteiras, não há cortes, prisões tampouco. O que é mais subversivo do que a leitura?

É preciso compreender que ler para se enriquecer culturalmente ou para se divertir deve ser um privilégio concedido apenas a alguns, jamais àqueles que desenvolvem trabalhos práticos ou manuais. Seja em filas, em metros, ou no silêncio da alcova. Ler deve ser coisa rara, não para qualquer um.

Afinal de contas, a leitura é um poder, e o poder é para poucos.

Para obedecer não é preciso enxergar, o silêncio é a linguagem da submissão. Para executar ordens, a palavra é inútil.

Além disso, a leitura promove a comunicação de dores e alegrias, tantos outros sentimentos. A leitura é obscena. Expõe o íntimo, torna coletivo o individual e público, o secreto, o próprio. A leitura ameaça os indivíduos, porque os faz identificar sua história a outras histórias. Torna-os capazes de compreender e aceitar o mundo do Outro. Sim, a leitura devia ser proibida.

Ler pode tornar o homem perigosamente humano.

 1Guiomar de Grammont é uma dramaturga, filósofa, escritora e editora brasileira, nascida em Ouro Preto/MG. Atualmente, também é diretora do Instituto de Filosofia Artes e Cultura da Universidade Federal de Ouro Preto. 

 

(In: PRADO, J. & CONDINI, P. (Orgs.). A formação do leitor: pontos de vista. Rio de Janeiro: Argus, 1999. pp.71-3. Disponível em: http://www.trt05.gov.br/trt5new/areas/ddrh/LER_DEVIA_SER_PROIBIDO.doc. Acesso em: 0

 

quinta-feira, abril 04, 2024

A língua portuguesa enquanto pátria

 


O português do Brasil ainda é provinciano. Nossas dimensões continentais nos tornaram condescendentes. A verdade é que são poucos os cidadãos mundiais que podem viver tão plenamente absortos em sua própria cultura quanto os brasileiros. Não é difícil viver uma vida inteira no Brasil, uma vida plena e rica, só consumindo cultura audiovisual brasileira, das músicas às novelas, só convivendo com pessoas brasileiras, mal e mal consciente de que existem outros países além-fronteiras. Só o estadunidense tem uma empáfia tão autocentrada quanto a nossa. Sim, sabemos que, um dia, no passado, houve um país chamado Portugal: Camões escreveu Os Lusíadas e ficamos independentes dele. Mas, para esse brasileiro médio, que nunca vê filmes portugueses no cinema ou ouve músicas portuguesas nas rádios, é como se Portugal não existisse mais, uma nação tão morta quanto a Roma Antiga. E, naturalmente, se Portugal mal e mal existe, os outros países lusófonos, do Timor-Leste a Angola, nunca nem existiram. Para quebrar esse paroquialismo, nada melhor que a onda de grande literatura lusófona sendo publicada no Brasil nas últimas décadas, especialmente africana, de Mia Couto a Agualusa, de Kalaf Epalanga a Ondjaki.

Para a imensa maioria das pessoas brasileiras, que ignora as milhares de línguas originárias ainda sobrevivendo em nosso país, a língua portuguesa é um dado. Ela está por todos os lados, em todos os periódicos, em todos os canais de TV, nas rádios, nos outdoors. Nunca houve a proposta de uma brasilidade que não fosse lusófona. Para todos os fins e efeitos, é como se Brasil e a língua portuguesa fossem uma coisa só, encalacrada, já resolvida.

Uma das maiores delícias de ler autores como o músico e escritor angolano Kalaf Epalanga é que, para ele, a língua portuguesa está longe de ser um assunto enterrado e resolvido. Ela é um problema apaixonante e uma paixão problemática. Epalanga nos lembra que não somos um continente que fala uma língua que é só nossa: por mais que façamos questão de ignorar essa realidade, somos parte de uma comunidade lusófona global. Linguisticamente, o brasileiro médio, mais que monoglota, é monogâmico: agimos como se a língua fosse só nossa. Mas o português, queiramos ou não, saibamos ou não, está na cama com vários outros países, com várias outras culturas. Me disse um amigo de Amsterdã: “A língua holandesa é como pijama: só usamos em casa”. Não é definitivamente o caso da última flor do Lácio. Ou — como sugere Caetano W. Galindo em seu recente e excelente Latim em pó (Companhia das Letras, 2023) — “broto africano, flor de Luanda”.

Para Epalanga, músico tornado escritor, a língua portuguesa não é um dado, mas uma ferramenta. O fato de sua produção artística ser classificada como “literatura lusófona” é algo que ele somente “aceita”, se sentindo incompleto e envergonhado por achar que não está contribuindo para a construção de uma literatura angolana descolonizada, “uma literatura que respondesse à minha inquietação: sem a presença, a compreensão e o uso das línguas que carregam a memória dos nossos antepassados, como poderemos gritar alto que a nossa história não começa com a chegada dos europeus à África?”, como escreve em Minha pátria é a língua pretuguesa, livro de crônicas que acaba de chegar ao Brasil pela editora Todavia. Nos outros países lusófonos, a relação com a língua nunca é tão tranquila. Como diz Mia Couto, citado por Epalanga: o idioma português pode até não ser o idioma dos moçambicanos, mas é o único idioma da moçambicanidade. 

Epalanga, nascido em 1978 numa Angola independente convulsionada pela guerra civil (1975–2002), é filho da geração que efetivamente fez a independência. Seus pais, em larga maioria, não tinham o português como língua materna, mas fizeram questão que seus filhos tivessem: “é-me difícil compreender o porquê de terem descartado o ensino das línguas bantus aos seus filhos”. A resposta dos pais é a mesma de tantos africanos: a língua do colonizador, justamente por não pertencer a nenhuma das etnias em conflito pelo poder político, era a que melhor servia ao projeto de união nacional. Ao vencedor, a língua.

Rara é a crônica onde Epalanga não faz conexões inusitadas entre países e culturas lusoafricanas que mal aparecem no horizonte cultural brasileiro, um horizonte que vai se parecendo mais e mais limitado na comparação, seja por paroquialismo (brasileiros que só falam de Brasil) ou viralatismo (que só enxergam valor na produção cultura dos Estados Unidos e Europa). A cada vez que esse angolano, com seus amigos moçambicanos, vai a um clube noturno lisboeta (cidade que ele define como a mais africana da Europa) ouvir ritmos cabo verdianos, é uma facada salutar na nossa condescendência continental brasilcêntrica.

Pode o pretuguês falar?

Duas das crônicas de Minha pátria é a língua pretuguesa trazem reflexões sobre o filme Pantera Negra (2018) e do seu significado para as pessoas africanas da geração de Epalanga. A existência de Wakanda, uma nação africana ultra tecnológica, traz consigo um exercício mental “com a amplitude que só um produto de Hollywood consegue atingir”: o que teria sido da África sem seus conquistadores brancos e colonizadores europeus? Se as fronteiras nacionais tivessem sido desenhadas pelos próprios africanos? E se? Para nós, pessoas brasileiras, esse exercício mental pode ser muito fecundo. Eu, por exemplo, penso logo em uma de nossas maiores autoras, Carolina Maria de Jesus. Quem seria Carolina sem a escravidão e sem a favela, sem a pobreza e sem a desigualdade? Como ela escreveria? Qual seria sua voz autoral?

Em 2005, fazendo mestrado em literatura brasileira nos EUA, nos deram para ler Quarto de despejo. Eu, menino privilegiado e ignorante, nunca tinha ouvido falar. Na livraria, não tinha pra vender. Na biblioteca, todos os exemplares em português já tinham saído. Li Quarto de despejo pela primeira vez em uma tradução ao espanhol. Chegando na aula, folheei os livros das colegas e senti a facada bem nas minhas costas. Tudo bem, sempre soube que tradutores são traidores, sou um deles, aceito a pecha, mas nunca tinha sentido essa traição realmente na pele: enquanto Carolina escrevia um português que era só dela, com todos os desvios da norma culta que tinham lhe sido impostos pela desigualdade brasileira, a Carolina-hispânica falava num espanhol quase perfeito. Ela tinha sido corrigida, domesticada, higienizada. E surge a questão: o português de uma de nossas maiores escritoras precisa ser corrigido? O pretuguês de Carolina Maria de Jesus precisa ser embranquecido?

O assunto ganhou as páginas dos jornais. Sua obra maior, Quarto de despejo, está atualmente em catálogo pela Ática na versão editada e corrigida por seu “descobridor”, o jornalista Audálio Dantas. Mas já sabemos, pelo cotejo cuidadoso desse texto publicado com os diários manuscritos de Carolina – trabalho primoroso realizado por Elzira Divina Perpétua, e publicado em seu A vida escrita de Carolina Maria de Jesus — que Audálio fez edições muito extensivas, cortando trechos e até acrescentando frases. Já a Companhia das Letras está publicando a obra de Carolina e começou por Casa de alvenaria, a sequência a Quarto de despejo, publicado em dois volumes e respeitando todas as idiossincrasias do pretuguês de Carolina. O assunto, porém, não está resolvido.

De um lado, intelectuais, como Regina Dalcastagnè, professora de Teoria Literária da Universidade de Brasília (UnB), consideram que, ao não corrigir esses desvios, o mercado literário mantém Carolina na posição exótica de outsider. Afinal, os grandes escritores sempre têm sua escrita corrigida pelas editoras antes de chegarem ao público. Do outro lado, o Conselho Editorial Carolina Maria de Jesus, formado por suas filhas e por escritoras e intelectuais negras, como Cidinha da Silva e Conceição Evaristo, defende “deixar a literatura de Carolina poder ser, sem tantas interferências”, “apresentá-la da maneira mais integral possível”, ao invés de “higienizá-la” e “esvaziá-la”.

O assunto “pretuguês”, como fica claro, transcende a própria lusofonia. Em 2014, publiquei pela Hedra uma tradução anotada da autobiografia do poeta escravizado afrocubano Juan Francisco Manzano. Autodidata, esse homem brilhante aprendeu a ler e escrever por conta própria, nas madrugadas, apesar das proibições de seus senhores. Em 1836, uma sociedade abolicionista lhe encomendou uma autobiografia de sua vida no cativeiro. Manzano atendeu a encomenda — o manuscrito original, em sua própria caligrafia, está na Biblioteca Nacional José Martí, em Havana — e, em troca, os abolicionistas publicaram o texto traduzido em Londres e fizeram uma vaquinha para comprar sua liberdade. Manzano, assim como Carolina Maria de Jesus, conquistou um futuro melhor — ele, a liberdade; ela, o sucesso literário — através de seu gesto transgressor de se apropriar da língua literária da elite para denunciar essa mesma elite. Mas, naturalmente, ambos escreviam fora da norma culta.

A verdade é que a autobiografia de Manzano e o diário de Carolina são mais que seu conteúdo: a forma da escrita de ambos é o melhor autorretrato que temos deles e sua maior contribuição à literatura. Seus erros de ortografia, gramática e sintaxe nos inspiram respeito: não são erros, mas sim marcas tão concretas e tão reais da escravidão quanto os lanhos de chicote em sua carne. Corrigi-los significa apagar sua trajetória, silenciar seu sofrimento, rasurar sua vida.

Para tentar transmitir à pessoa leitora brasileira uma experiência o mais próxima possível à de ler Manzano no original, tentei criar desvios da norma culta e idiossincrasias verbais em português que fossem similares, e na mesma proporção, aos que ele teria cometido se tivesse crescido e aprendido a escrever como uma pessoa escravizada no Brasil de princípios do século XIX. Ou seja, na prática, inventei um pretuguês oitocentista. A editora, entretanto, apesar de aceitar essa versão pretuguesa, bateu o pé: se não houvesse também uma versão na norma culta, o livro não poderia ser publicado. “E os editais do governo?”, disseram. (De fato, o livro foi um dos selecionados para o PNLD 2018.) Então, o livro, como saiu em 2014, tem duas versões da mesma tradução: em pretuguês e em português.

Em pretuguês: “Mas vamos saltar dos annos 1810 11 e 12 até o presente de 1835 deixando em seu intermedio o vastisimo campo de visisitudes escolhendo entre elles os graves golpes com qe. a fortuna me obrigou á deixar a caza paterna ou nativa pa. experimentar as diversas cavernas com qe. o mundo me esperava p. devorar minha inesperiente e debil joventude”. E na norma culta: “Mas vamos saltar dos anos de 1810, 1811 e 1812 até o presente de 1835, deixando em seu intermédio o vastíssimo campo de vicissitudes, escolhendo entre elas os graves golpes com que a fortuna me obrigou a deixar a casa paterna, ou nativa, para experimentar as diversas cavernas com que o mundo me esperava para devorar minha inexperiente e débil juventude”.

Em um ensaio famoso, publicado em 1985, a pensadora indiana Gayak Spivak perguntou: “Pode o subalterno falar?” Talvez seja o caso de levarmos a pergunta um passo além: “pode o pretuguês falar... sem ser corrigido?” O pretuguês se basta? Precisa ser escoltado pela norma culta?

Minha nação é minha pele

Epalanga, ao escrever sobre o leve aceno de cabeça com o qual todas as pessoas negras se cumprimentam pelo mundo, comenta que a cor da pele já é, em si mesma, uma nacionalidade. Até pouco tempo atrás, com a exceção dos mouros do Norte da África, poucos foram os africanos negros que saíram do continente por vontade própria. Quase sempre, foram violentamente arrancados. Então, ser negro fora da África é compartilhar uma pátria, uma identidade, um senso de comunidade que independe do país onde a pessoa nasceu. O aceno é reconhecimento e uma celebração: eu te vejo, estamos aqui, estamos vivos. Nesse sentido, o pretuguês de Epalanga e de Carolina, assim como a fala do escravizado cubano (afrospanhol?), são diferentes variantes de uma mesma língua pan-africana, dessa fala comum a todas essas pessoas que, ao se esbarrar em Oslo ou Osaka, trocam um rápido, poderoso aceno de reconhecimento.

Minha pátria é a língua pretuguesa traz crônicas interessantes e compartilha conosco o amplo universo cultural afrolusófono do autor. Mas, por serem crônicas, não se propõem em aprofundar as questões da africanidade do português. Para quem quiser saber mais, recomendo Por um feminismo afro-latino-americano (Zahar, 2020), citado na epígrafe e escrito por Lélia Gonzalez, a brilhante antropóloga afro-brasileira que cunhou o termo “pretuguês”. Além disso, também vale a pena ler o já citado Latim em pó, de Caetano W. Galindo, que além de fazer um delicioso passeio pela história da nossa língua, dedica deliciosas páginas às suas raízes africanas. São leituras tão leves quanto um livro de crônicas, muito informativas e bem mais recompensadoras.

 

Daqui

segunda-feira, abril 01, 2024

Literatura - o que é isso?

 Estou fazendo uma pós-graduação em Literatura, Gramática e Texto. Enquanto lia o material, foi-me sugerido assistir a esse vídeo. Decidi compartilhá-lo. Pareceu-me muito bom! O segundo vídeo traz o maravilhoso Antonio Cândido.

terça-feira, março 26, 2024

"A hora da estrela", de Clarice Lispector, algumas palavras

Cena do filme "A hora da estrela" (1985), de Suzana Amaral

 

“...ela era café frio”.

“Você sabe mesmo é chover”

 

                Realizei a terceira leitura – embasbacado – de “A hora da estrela”, o último romance de Clarice Lispector. Nessa última leitura, prestei atenção ao movimento e ao efeito das palavras e, sem qualquer apelo hiperbólico, resta a impressão de que se trata de um texto que beira à perfeição. Enquanto prestava atenção à condução da história pelo narrador Rodrigo S.M., fazia a seguinte pergunta: afinal, o que tinha Macábea?

                “A hora da estrela” é o último livro escrito por Clarice Lispector. A obra foi publicada em 1977, mesmo ano em que morreu a autora. Talvez, seja seu romance e leitura mais fácil. Todavia, a palavra “fácil” nunca quer dizer “tranquilo” em Clarice. A autora emprega o fluxo de consciência, como técnica tão costumeira como, por exemplo, em “A Paixão segundo G.H.”, o que torna o texto em uma massa psicológica densa. Há descrições singulares que misturam o mundo simples de Macábea à voz emulante e meticulosa do narrador.

                O texto prescindiria de um narrador, talvez. Rodrigo S.M. é um alter ego de Clarice, certamente. Todavia, perderia em análise; perderia em força, pois o narrador estabelece um diálogo tácito com o leitor. Ele faz a promessa de que vai entregar algo. A maneira como que ele despe Macábea e coloca um facho de luminosidade na modesta existência da personagem é um movimento de crueldade. Como Macábea há milhões de pessoas que passam pelo mundo sem atentar para o ato complexo que é existir. A personagem ignora os elementos mais complicados da vida. Existe uma beatitude em sua ignorância. Ela não consegue observar o trânsito caótico em sua vida. Sua avassaladora ignorância sobre si e sobre o mundo a torna em um ser caricato.  

                O que tinha Macábea? Ao tentar responder essa pergunta, é inevitável não pensar no estranho paradoxo presente no título da obra. Por que “estrela”, se não havia nenhum brilho em Macábea? A alagoana era “café frio”; “era capim”. Não havia qualidades ou vantagens a serem destacadas; uma nesga de relevo em sua existência achatada; uma dignidade a ser ostentada. Tanto física quanto existencialmente, o que se percebe na personagem é um conteúdo opaco, sem força e com potência insignificante.

                O que tinha Macábea? Em certa altura da narrativa, encontra-se essa pérola que revela a ignorância de si e a ignorância do mundo presentes na personagem: “Quero afiançar que essa moça não se conhece senão através de ir vivendo à toa. Se tivesse a tolice de perguntar “quem sou eu?” cairia estatelada e em cheio no chão”. Ou esta: “Quanto à moça, ela vive num limbo impessoal, sem alcançar o pior nem o melhor. Ela somente vive, inspirando e expirando, inspirando e expirando”.

                “A hora da estrela” é a reflexão sobre o insignificante. Enquanto os outros personagens – Olímpico de Jesus e Glória – ostentam (até mesmo no nome) uma grandiloquência no modo de ser e no nome, Macábea é pequena e indefesa. Olímpico possui um nome que ostenta força, além do sobrenome que sugere uma ideia de redenção, de sacralidade. Glória exprime a semântica do triunfo. Enquanto Macábea sugere o nome dos Macabeus, povo que conseguiu criar uma resistência contra o domínio de Antíoco IV, no século II antes da era comum, e acabou sendo conquistado de forma tácita pelos romanos. Há imensas ironias e sugestões sutis na obra. Nada é gratuito.

                Macábea representa aquele tipo de indivíduo que passa pelo mundo sem que seja dada conta da sua vida. A ignorância de si impõe o anonimato dela para com ela e para com o mundo. Seu mundo apoucado, colocado em um território cinzento sem qualquer fato expressivo, é a síntese da miséria e da ignorância. Analisar a vida da personagem sugere imediatamente um quadro de advertência, pois é preciso ter uma noção mínima sobre aquilo que somos. Nietzsche em “Para além do bem e do mal” afirma que “Quando adestramos a nossa consciência, ela beija-nos ao mesmo tempo que nos morde”. Macábea, coitada, não percebia nem o adestramento nem a mordida.

sábado, fevereiro 24, 2024

"Anatomia de uma queda", algumas impressões

 

                Vi, no último domingo, o filme “Anatomia de uma queda”. Confesso que gostei. Inscreve-se entre os bons filmes a que assisti até agora e se inscreverá entre os melhores de 2024. Pode-se afirmar de início de que se trata de um filme sensível, inteligente, com diálogos bem estruturados e um enredo que vai entregando aos poucos as ações das personagens.

                O longa ganhou a Palma de Ouro no Festival de Cannes em 2023 e foi dirigido pela jovem e talentosa diretora francesa Justine Triet. A diretora, em 2019, havia dirigido “Sybil” que teve pouca repercussão. Todavia, com “Anatomie d’une chute”, Triet conseguiu acertar de maneira definitiva.

                O elenco do filme consegue manter uma constante de equilíbrio, encenando personagens complexos e densos, o que permite entregar um nível alto de qualidade dramática. Com duas horas e meia de boa produção, a diretora Justine Triet consegue equilibrar os aspectos dramáticos com o movimento do enredo, não permitindo que a história perca em qualidade.

                A história se desenvolve em torno do assassinato de Samuel, companheiro de Sandra e pai de Daniel. Samuel é um professor carismático, mas que possui uma carreira literária frustrada. Não consegue terminar os projetos literários que inicia. Por sua, vez sua esposa Sandra é o contrário. Ela consegue escrever. Possui um relativo sucesso. É organizada, conseguindo resultados excelentes com os seus projetos. Daniel é um garoto cego. A perda da visão se deu por culpa de Samuel. Mesmo com essa limitação, Daniel é um garoto altamente sensível.

                Sandra passa ser a principal suspeita pela morte de Samuel. A promotoria - junto com a perícia da polícia científica - possui um veredicto aparentemente inexorável: Sandra é a culpada. Aqui verifica-se uma das qualidades do longa, pois, à semelhança do que acontece ao tribunal, o espectador vai organizando uma percepção a respeito da tumultuada relação conjugal entre Sandra e Samuel e os feitos disso para Daniel.

                O filme problematiza a noção de discurso; ou seja, como é possível estabelecer uma tese para um fato e, a partir dessa tese, reunir elementos para validar os argumentos que sustentam a tese. É possível, para sustentar uma tese,  colocar a evidência de um fato em segundo plano e estruturar uma linha argumentativa para fazer acreditar no que fato construído. Parafraseando a personagem Daniel que parece perceber esse sofisticado artifício sofístico que procurava incriminar a sua mãe: “Por que a gente não pergunta sobre o que realmente aconteceu?”

                “Anatomia de uma queda” é um filme dirigido com muita habilidade. Faz-nos pensar. Evita os clichês, embora a atuação do promotor seja um tanto forçada. Nas entrelinhas, como possibilidade de interpretação, notamos a forte tese contra o feminino. A personalidade de Sandra é construída como se ela fosse o elemento problemático e conturbado do filme. Todavia, com a entrega dos elementos vivenciais, percebe-se que Samuel não conseguia lidar com o sucesso de Sandra. Claro, estamos a especular; e essas especulações são responsáveis por transformar a obra numa grande produção.