segunda-feira, novembro 05, 2007

A eloqüência do silêncio - Koyanisqatsi

Koyaanisqatsi(1983) é com certeza um dos filmes mais impressionantes que já foram feitos. Trata-se de um documento poderoso e atordoante. Não há como assisti-lo e não adquirir uma sensação, seja de susto ou de profundidade estética e filosófica. A sua intencionalidade nos provoca. A sobreposição de cenas nos conduz por um ambiente silencioso. Não há vozes no filme. Não há palavras humanas. Quem fala são os atos humanos, as ações humanas, o desequilíbrio humano.
O filme possui por fundo uma trilha sonora notável, arrebatadora, que funciona como um guia para nos mostrar imagens indescritíveis. Philip Glass, responsável pela composição sonora, afirma que “a estrutura, a base, as imagens e a música são o elemento interdisciplinar” que tornam o filme belo. As imagens se movimentam e mostram a contingência notável entre natureza, homens e máquinas. Não é possível extrair do filme a música, pois ela também faze parte da ambientação. A trilha sonora, as imagens e o telespectador formam a trindade que tornam o filme uma referência. Quantos forem os telespectadores, tantas serão as impressões sobre esse belo objeto a serviço da arte. Assistir ao filme é convidar para uma experiência única.
O diretor Godfrey Reggio afirma que a sua principal razão para fazer o filme foi apontar o desequilíbrio da vida. O nome estranho foi tomado do idioma Hopi, uma tribo índigena americana (qatsi = vida; e koyaanis = loucura, tumulto, fora de compasso, desintegração ou um estado que pede por outro modo). Assim, ao final o filme tem o significado básico de “vida louca”, “vida tumultuada”, “vida fora de balanço”, “vida desintegrando-se” ou “um estado na vida que pede por outro modo de viver”.
Reggio ainda afirma que o filme buscou tratar sobre a essência da vida. Do homem mergulhado no silêncio do tempo, cercado pelo absoluto da tecnologia. “Não é que usemos a tecnologia, vivemos a tecnologia. Ela é tão indispensável quanto o ar que respiramos. Não temos mais ciência de sua presença”, afirma. Trata-se de um sistema que é alimentado pela necessidade humana. Os homens foram tragados pela via tecnológica. Ainda afirma: “O acidente de hoje não é visto por quem o presencia”. Com certeza, aí está uma assertiva profunda. O homem moderno deificou a tecnologia. A paisagem humana é tecnologizada. Os microchips de computadores são os portadores da nova inteligência. Godfrey, que afirma ter sido influenciado pela religião, diz que a nova religião do homem é a tecnologia. “A vida não questionada passa a ter um estado religioso”, assevera. O jornalista Aramis Millarch escreveu no ano de 1985 sobre o filme: "Em suma, o filme se propõe a mostrar a contradição entre a natureza em seu estado virgem e a montagem urbana do sonho americano"(...) Nova Iorque foi escolhida como a soma das virtudes e defeitos do "american way": o efeito é sobrecarregador. Através dele chegamos ao paroxismo que logram criar as imagens animadas e a partitura musical, que retoma o formato de cantata (provérbios hopis), como na introdução e nos devolve suavemente aos valores primários da natureza".
O sistema criado pelo homem se movimenta. O silêncio da natureza, trabalhou durante as eras magnificentemente as formas dos montes, dos rios, dos vales. O homem transformou o mundo recentemente. Leonardo Boff disse numa palestra que a lógica proporcional, leva-nos a afirmar que a terra surgiu nos últimos dois minutos da história do universo; e o homem , por sua vez, a cinco segundos. A vida criada pelo homem é desequilibrada, louca, tumultuada e está fora de controle. O último dos seres a surgir no planeta é a mais espetacular e a mais terrível das criaturas.
Assim, o filme busca criticar a vida que está fora de equilíbrio. Fora dos eixos. O monstro manco feito pelo homem – a besta. Reggio arremata dizendo o seguinte: “É sobre uma beleza incrível, terrível ou a beleza da fera. Nossa ilustre fera, o modo de vida”. Ao final, existe a afirmação chocante, atordoante, de três profecias antigas traduzidas pelo diretor Gofrey Reggio: “Se escavarmos preciosidades da terra, convidaremos ao desastre”. Isso parece inevitável e certo. A segunda: “Próximo do Dia da Purificação haverá teias de aranha a rodar no céu”. A terceira: “UM pote de cinzas pode um dia ser jogado do céu, o que poderia queimar a terra e ferver os oceanos”.
Enquanto assistia ao filme me ocorreram algumas impressões. São palavras soltas, mas que seguem a lógica das cenas à medida que estas se delineavam:

No princípio de nossas investigações
Buscamos retratar nossas intuições (divinas?);
O monstro de aço que vomita fumaça
E sobe assustadoramente se equilibrando
No vazio – que orgulho!
As montanhas de pedras,
Esqueletos esculpidos pelo tempo.
A superfície varrida pelo vento;
O silêncio, apenas o silêncio!!
Os gases misteriosos que cobrem a extensão.
A gramínea resistente que vence a intempérie;
Espigões que apontam para o céu;
A trilha intermitente de um rio que morreu;
A nesga de sol coado por entre as nuvens;
O rio que ladeia o cânion, a escura água;
Gastamentos, no silêncio;
Do chão brota a fumaça;
Tudo está em combustão;
O deserto arenoso, indisciplinado;
A natureza se forma dialeticamente;
O imenso mar de espumas brancas,
Que rumam, migram atabalhoadamente,
Como bicho para toda parte, no silêncio.
Tudo se move, tudo dança, tudo muda;
O movimento é absoluto – o silêncio também!
A água se beija numa briga imensa
As partículas reduzíssemas;
Aqui, ali, acolá, o mundo inteiro.
Aonde chegaremos?
As cores engolfantes.
A violência dos homens.
O mecanismo duro, frio, que movimenta
E cospe a fuligem negra;
Como uma serpente extensa,
Prolonga-se o duto.
Armações de ferro abrigam a força
Silenciosa que alimenta os nossos sistemas;
Espalham-se por toda parte.
Aqui chegamos.
Os rios químicos, o sulco venenoso
Que formamos dos nossos processos produtivos;
Nossos lixos residuais.
O silêncio agora se transformou em estrondo;
O cogumelo negro de fumaça que se levanta,
Ganha os espaços.
O homem dorme e se confunde com as engrenagens.
Bestificados, admiram o que criaram.
As janelas espelhadas que reflete a luz do céu.
O monstro de lata que se movimenta é capaz de voar.
Pousa soberanamente.
Suas rodas, turbinas, engrenagens, fuselagens
Estrutura nos admira.
Tornamo-nos deuses.
Nossas trilhas são alfálticas.
Baratas de aço com rodas circulam por elas.
Muitos, muitíssimos.
São velozes assim como a vida que passa.
A paisagem foi construída.
Tudo se mistura e confunde os olhos.
Outras baratas estão estacionadas
Esperando serem adquiridas.
Um dia elas não caberão mais
nas artérias do mundo.
O silêncio foi quebrado pelo ronco
Das máquinas – aqui, ali, acolá.
Temos armas poderosas – E = m.c
Nossa natureza é dura,
Nosso mundo é de pedra.
O ronco das máquinas substituiu
O silêncio das eras.
Nossas pedras são artificiais.
As estruturas ruem.
Caem, fragmentam-se como papel.
A noite chega, ameaça o mar de pedra.
Põe efeitos admiráveis na paisagem.
Os blocos gasosos migram por sobre a cena artificial.
O espelho plantado a refletir o movimento.
A estação – povoado por criaturas apressadas
Que passam, passam...
Velhos, mulheres, crianças,
Todos compõem o mesmo espaço.
Quem somos?
Vermes compostos por hormônios,
Ossos e tecidos.
O silêncio dos céus nos impulsiona a criar, criar.
Todos morrem, outros nascem – o movimento.
As caixas de pedras mortos abrigam
Seres de vontades vivas.
As luzes comportamentais como olhos acesos
Anunciam os desejos.
Uma, duas, três, quatro...
Muitas se apagam.
Prédios, caixas, casulos de pedras...
As luzes da noite anunciam um sistema
Vivo, alimentado por uma força invisível.
As baratas vão e vêm.
A lua magnificente contrasta com o espigão
Fálico, símbolo do nosso orgulho.
As vias são artérias por onde passa um sangue
Luminoso alimentando os nossos complexos,
A rede, o mundo que criamos.
Comemos e somos engolidos pelo sistema.
Alimentamos o mundo com nossas vísceras.
A beleza volátil.
O fluxo luminoso, que não pára.
Microchips, mecanismos, cidades miniaturizadas.
Em que nos confundimos?
O mergulho nos espelhos, nas luzes,
Na velocidade;
A contemplação distante, os homens apressados.
As baratas que simbolizam a distinção.
A senilidade do homem que se preocupa
No escanhoamento.
Os olhos inquiridores, o que tu és?
O que somos?
Os anos gastos.
O corpo que se debilita,
As pernas imóveis, moles.
A beleza nova.
Os anos, a cor, a barriga oblonga.
O corpo desaire.
O acidente, a curiosidade, a autoridade.
Somos frágeis.
Nossas construções, projeções podem ser
Importantes, mas no fundo há a fragilidade
Em nossa importância.
Somos fantasmas e nos locomovemos
Para a inanição fatal.
O frio absoluto.
As turbinas cospem fogo e produzem gelo.
Os mecanismos se desacoplam das engrenagens.
Um rabo de fogo pode ser visto no céu.
O estouro veloz.
Caem fragmentos de nosso orgulho.
A fatalidade do nosso destino.
O fogo queimará nosso orgulho.
O enredo trágico.
Profecia traduzida dos índios Hopi, Estados Unidos:

“Se escavarmos preciosidades da terra, convidaremos ao desastre”.

“Próximo do Dia da Purificação, haverá teias de aranha a rodar no céu”.

“Um pote de cinzas pode um dia ser jogado do céu, o que poderia queimar a terra e ferver os oceanos".

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