quarta-feira, novembro 28, 2007

Memórias

Estas palavras abaixo são o resultado de uma crônica que escrevi no ano de 2004, refletindo sobre o ano de 2003. Resolvi divulgar um fragmento. Quiça eu venha a colocar outros retalhos neste espeaço.


Estava feliz. Na segunda-feira, dia 29 de dezembro, viajei para o estado do Piauí. Fui encarregado de passar alguns dias na congregação da Quarta Igreja Presbiteriana de Taguatinga em Santa Luz. A proposta surgiu do Rev. Oswaldo que me entusiasmou para tal função. Aceitei pelo simples fato de que seria uma oportunidade ímpar de entrar em contato com novas pessoas; de visitar um lugar novo, com ares novos, com vegetação e clima diferentes. Viajar para mim sempre foi um motivo de imensa alegria. Aqueles momentos que antecedem a viagem são deliciosos. A expectativa parece possuir uma dose de mistério.
O único lamento para mim era ter que deixar a musa que encontrara, Liana C. Roquete. Pensava comigo: “Meu Deus, ficar mais de um mês longe da Liana!” – de lá eu fui para o estado de Pernambuco, visitar os meus avós e rever os familiares. Aquela situação era o único fator a gerar desconforto para mim. Todavia, arregimentei força. Seria uma experiência positiva, boa, nova. Eu voltaria mudado, com certeza. Nisso eu concordava com Heráclito. O rio da vida estava passando e, com certeza, não banharia nele duas vezes.
Recordo-me que a Liana disse para mim certa vez:
- Olha, muita gente está dizendo que quando você voltar nós nem nos reconheceremos mais. Vamos ver até que ponto o nosso namoro vai agüentar.
Ao que eu execrei mentalmente aquela sentença. Não permitiria, em minhas resoluções internas, o fato dela não pertencer mais a mim. Não haveria um “desconhecimento” em hipótese alguma.
Na manhã do dia 29, mais precisamente às 11 e meia eu estava na rodoviária. Ela também lá estava. Pus-me a olha-la langoroso. Mais de um mês de distância provocaria em mim uma tristeza insalubre. Enquanto estava na rodoviária osculou-me os lábios ternamente. Pude sentir os seus lábios adocicados. Abriguei-me no ônibus e fiquei a olha-la; enquanto o ônibus aguardava a partida, as minhas emoções se confundiam uma nas outras. Olhava-a com afeição, apreço e devoção e colocava no pensamento a certeza de que eu lucrara com o melhor dos presentes que alguém poderia ganhar. O ano de 2003, de fato, fora muito bom. Eu não tinha o que reclamar. Apesar dos tantos dissabores.
À medida que o ônibus ia saindo da rodoviária e pegando a Via Estádio, dentro de mim havia o anelo de saber o que passava na mente e no coração dela. Nos meus lábios ainda estava o gosto e o cheiro dela. Um pouco dela ainda estava em mim. Desejei como se deseja a vida que aquele gosto plasmado àquele sabor não saíssem dos meus lábios. Era bom saber que algo que me ligava a ela por meio dos sentidos. Como me enfastiei naquele momento. Um banzo enorme acometeu-se de mim. Sentia-me como os escravos degredados da África. Alberto Camus, o escritor de “A Peste” disse certa vez: “...já que o grande desejo de um coração inquieto é possuir interminavelmente o ser que ama e poder mergulhar nesse ser, quando chega o tempo da ausência, num sono sem sonhos que só possa acabar no dia do reencontro”[i]. Eu sabia que estava indo para uma viagem que me deixaria num desterro de mais de um mês e somente o “reencontro” – já pensava nele – traria-me a devida ordenação ao juízo. Enquanto os minutos passavam o gosto e o cheiro dela se esboroavam de mim. Aquilo para mim era um suplício. Sabia que logo logo não mais eu teria qualquer resquício vivo aos meus sentidos. Ficariam apenas as impressões na mente. A distância perturbadora me cozinharia os miolos. Os pensamentos, o desejo de tê-la perto de mim seriam inimigos atrozes.
À tarde eu estava no estado de Goiás. Via as paisagens fugidias que ficavam para trás. Os pensamentos se grudavam a qualquer substância. Estava deixando a família, a parentela, o meu bem querer. Aquilo era simplesmente atordoador. Os belos cenários que se insinuavam para mim, davam a impressão de que eu era um imperador e estava ali para apreciar cada polegada do meu reino. O mundo era um sonho, aquelas paisagens estavam ligadas a um palco de beleza natural. Na mente, a feição sorridente de Liana C. Roquete estava afixada num cartaz de dimensões incríveis bem na esquina da minha alma. Sentia um misto de soledade e tristeza. Um torpor estranho, anômalo, mas doce, prazeroso se erguia dentro de mim como uma cortina de fumaça. Havia chovido, por isso a vegetação estava verde. Aqui ou ali uma lagoa intermitente estava formada pelo resultado das chuvas de dezembro. Uma garça com seu pescoço longo procurava comida nas locas daquele alagado. Outras se abrigavam nos galhos secos de uma árvore já morta. Tudo não passava de uma bela exposição. Plantações imensas de girassóis a brilharem para mim. Cada um deles muito amarelos. O mar amarelo me seduzia com sua extensão incrivelmente regular. Latifúndios imensos. Aristocracia rural. Brasil Central. Divagações. De repente o cenário mudava. Eucaliptos variados se alinhavam com disciplina um ao lado do outro. Perfilamentos perfeitos. Renques disciplinados. Pensava num exército aposto, pronto para receber ordens de um superior embrutecido. Uma plantação de soja surgia silente. Um horizonte verde se formava. Queria mergulhar nesse macro-cosmos verde – pensava em minha divagação espaçada por pensamentos reais, mesclados a derivações infindas. Tinha certeza de que o eterno estava mergulhado no invólucro do efêmero. Como Van Gogh retrataria aquela paisagem? Eu era alguém privilegiado por ver e sentir todo aquele absurdo natural; uma outra paisagem existia dentro de mim; e nesta, Liana C. Roquete era senhora e soberana.
O ano de fato havia sido intenso, cheio de acontecimentos imensos. Eu saíra vivo de cada um deles. Considerava-me um vencedor. Alguém que amadurecia. Alguém que estava chegando ao estágio de uma mente adulta. Eram vaidades mesquinhas que se assenhoreavam de mim, ao ponto de um regozijo afetado surgir com candidez nos meus lábios. Queria que o mundo se curvasse aos meus pés e dissesse numa atitude humilde e resignada: “Estou aqui para te servir”. Eu lucrara de fato. O ano de 2003 fora um dos mais extraordinários da minha existência. Em todos os sentidos eu me portara com a mesura digna de um ser superior. Estava ali agora. Dentro de um ônibus da Viação Transpiauí cheio de pressentimentos graves e com a certeza que o ano de 2004 me surgiria novo, inopinado, mas com uma série de surpresas agradáveis. Estava indo para Santa Luz. Dentro do ônibus, uma malta de matutos e outros seres mesquinhos; e, eu, ali também tal qual eles. Fisionomias várias. Talvez, fossem indivíduos que trabalharam o ano inteiro. Ajuntaram dinheiro e agora estavam voltando para ver a parentada. Crianças acanhadas. Mutantes. Já haviam entrado em contato com a civilização. Eram como animais. Todos eles eram bichos com certeza; e, eu, também.
Quem se importaria com alguém como eu? Mas eu sabia que era alguém especial. Possuía o mundo dentro de mim. Possuía a existência toda em cada compartimento do meu coração. Todo o universo havia se descomplicado. Intuía. Fazia planos. Comemorava. Louvava os fatos. Agradecia os acontecimentos todos. O ano de 2003 foi diferente do ano de 2002. Eu me encontrava mais cheio de razões para creditar na vida. Não havia motivos para desenganos abruptos. Acreditava que poderia ser melhor do que estava sendo ali. Ia para o meio de um povo estranho. Talvez, por trás daqueles fatos houvesse uma efervescência ígnea de símbolos sendo gerados. Aquilo tudo significava que eu estava indo para o meio do mundo, para o meio das complicações. Guardava em mim cada pitada daquelas divagações.
Criava intenções internas. Organizava as expectativas. Tinha o um vasto mundo à minha frente. Eu precisava apenas abrir os braços para segurá-lo. Tinha o céu ao meu alcance. Era estender os braços para pegar cada uma das estrelas que se exibiam. Mastigava a sentença poética deliciosa plena de infância de Guilherme de Almeida: “Um gosto de amora/ comida com sol. A vida/ chamava-se: Agora”[ii]. Gigantismo. Sentimento de posse do mundo. Beber a goladas sôfregas cada gota da vida. O desejo enorme de se sentir grande, volumoso, imenso para o mundo. Lá me ia.
Na Retropesctiva que fiz do ano de 2002, o texto termina da seguinte forma:

Nas palavras que enchi o papel, percebi uma preocupação existencial e filosófica subjacentes. Nos outros anos, eu não me utilizei das tais. Sei que omiti muitos dos fatos desenrolados no ano que se passou. Não mencionei minha mãe que sente-se cada vez mais sozinha e esquecida – impressão dela. Não falei dos meus irmãos que parecem seguir o mesmo caminho que eu. Os arquétipos, às vezes, não estimulam à virtude, todavia conduzem à mediocridade. Não falei sobre os problemas que engolem o país como um faminto sorvedouro. Não comentei os problemas que querem enfraquecer a esperança.
Está começando um novo ano – ou ano novo? – tanto faz. a verdade é que não devo esmorecer. Como dizia o poeta Renato Russo: “Às vezes faço planos; às vezes quero ir a algum país distante voltar a ser feliz”. E quando penso assim, esqueço que a felicidade mora ao lado. A felicidade é pertencer e conhecer a Jesus Cristo. “Não há outro nome embaixo dos céus pelo qual importa que sejamos salvos”. A felicidade não está em Kierkegaard, nem em Nietzsche, nem em Paulo, nem em Rubem Alves. A felicidade está no Filho do Homem. No carpinteiro humilde de Nazaré. Que sendo Deus, fez-se homem por causa de nós.
Sei que passarei por novas dificuldades – como já estou passando – mas sei que em tudo eu já sou mais que vencedor. Diz são Francisco de Assis que se “é morrendo que se nasce para a vida eterna.” Tenho grandes ideais. “Os ideais são como as estrelas. Na noite escura elas apontam o caminho”, como escreve Rubem Alves – todavia, creio que essa frase foi tomada de Abraham Lincoln. Em outra frase Rubem Alves cita Bachelard: “Um coração frágil gosta de valores frágeis”.
A minha fragilidade me impulsiona a buscar a sensibilidade. Não vivo por comiseração, remoendo as minhas chagas e alimentado uma autocomiseração, próprio dos que vegetam. Respeitar as individualidades é importante quando se quer preservar as espécies e a multiplicidade do gênero humano. Sou adepto do humanismo cristão. Do humanismo que crer no homem, desde que ele se submeta irrestritamente a vocação do Criador. C. S. Lewis diz que “o universo sempre se mostrará fiel quando você o testa com justiça”. Concordo com esta sentença de C. S. Lewis, porque o homem só conseguirá a autenticidade que tanto procura quando ele testar os fatos com fidelidade. E onde se encontra uma fidelidade que garanta a verdade e a autenticidade? A resposta eu dou sem hesitar: Cristo. Em Cristo o mistério da criação é consumado. Em Cristo encontramos o nosso destino e a nossa redenção. Quando medimos as coisas com os óculos de Deus – Cristo – encontramos a fidelidade
[iii].

Estas eram palavras que haviam adquirido um valor especial para mim. De fato, muito daquilo que presumi e imaginei aconteceu no ano de 2003. a diferença que vejo hoje é que enquanto eu saí do ano 2002 com rugas imensas na epiderme da minha alma, a passagem de 2003 para 2004 é alvissareira. Augúrios positivos se levantam como ootdoors. A retrospectiva de 2002 estava atochada de uma atitude merencória. Uma solidão enfermiça que brotou como solução para permanecer vivo. Apenas uma solidão poética. Mal do século? Não. Apenas uma posição encontrada para continuar a ser pequeno e se guardar do mundo. Um refúgio, uma fortaleza construída como um ponto forte para se guardar do mundo.
Mas a vida que ra “agora”, no dizer de Guilherme de Almeida brotava com muito ímpeto. Queria ver as folhas verdes e vicejantes. Assim, o ano de 2003 se ia. Tenho plena convicção que o ano que no ano de que se passou, muitos outros fatos se deram com profusão. Imiscuí aqui aqueles que tiveram uma importância capital ou foram vindo à vida na superfície da mente. Outro ano está iniciando. Outros registros se darão; outros fatos surgirão com força e pujança. Salomão ajudar-me-á este ano de 2004: “O insensato não tem prazer no entendimento, senão em externar o seu interior” (Pv 18.2). Discrição apenas, Carlos Antônio e sigamos pela estrada da vida. O amor mora ao lado. A vida está soprando no vento. Sorvo, apenas sorvo; inalo e respiro.

[i] Camus, Alberto, A Peste, Círculo do Livro, São Paulo, 1947, p. 88
[ii] Cortella, Mario Sergio, Não espere pelo epitáfio – provocações filosóficas, Editora Vozes, São Paulo, 2005, p. 89
[iii] Retrospectiva III, 19-04-2003, pp. 19-20

Carlos Antônio M. Albuquerque

segunda-feira, novembro 26, 2007

Sobre a comparação

Há algum tempo atrás li um texto delicioso de Rubem Azevedo Alves chamado “A solidão amiga”. Rubem Alves em determinada parte do texto conta que seu pai gozava de uma boa situação financeira em Minas Gerais. Quebrou e ficou pobre. Apesar das dificuldades, enquanto vivia no interior se sentia feliz. Não era um estado de miséria, mas de despojamento do luxo que antes vivenciara. Ele afirma que conheceu a infelicidade quando aprendeu a comparar. É dito por ele: “A comparação é o início da inveja que faz tudo apodrecer”.
Ele, mineiro, interiorano (de Boa Esperança), mudou para o Rio de Janeiro e passou a se espelhar e desejar o que pertencia aos cariocas “civilizados” – “espertos, bem falantes, ricos”. Aquilo foi, com certeza, o caminho que o conduziu a um desterro existencial. Quem se compara com outro atrai a tristeza para si mesmo. “Eu diferente, sotaque ridículo, gaguejando de vergonha, pobre: entre eles eu não passava de um patinho feio que os outros se compraziam em bicar”, afirma.
O modo de produção da sociedade moderna é capitalista. Uma sociedade capitalista é, inevitavelmente, um meio materializado. Os objetos são transformados em mercadorias e passam a adquirir um poder erótico. O erotismo propiciado pelo fetiche da mercadoria tem a capacidade de tornar as pessoas reféns do desejo e da comparação. Num ambiente contaminado pelo desejo de ter para ser, a comparação se torna natural.
A comparação é um inclinar de cabeça para o lado a fim avaliar o que é do outro. O andar por uma rua pode constituir um momento de tristeza: vemos casas bonitas, quando temos, muitas vezes, a nossa tão humilde! O olhar para o carro do outro pode constituir um desalento agudo; o olhar para a roupa do outro pode se transformar numa visão “perigosa”, fazendo nascer irresistivelmente um anelo comparativo.
O livro dos sábios judeus, O Talmude, diz que “uma paixão no coração de alguém é como uma teia de aranha. A princípio, ela é um visitante estranho; depois se torna um hóspede regular; e mais tarde toma conta da casa”. A comparação, também, é como uma teia de aranha. Ela é capaz de tomar uma casa e torná-la bolorenta. Uma casa bolorenta é um ambiente sem o resguardo da simplicidade e da beleza. A simplicidade e a beleza têm a capacidade de blindar os corações dos homens contra o veneno da comparação.
A comparação nos deixa tristes, porque é gerado em nós a compreensão de que o que é do outro é bem melhor, debilitando, assim, o que temos de positivo em nós mesmos. A comparação fecha os nossos olhos para que não enxerguemos as nossas conquistas. Ela encobre com subtilezas o que conseguimos com luta e com desprendimento de suor. O culto ao que é do outro é maior onde não há uma valoração ao que é do próprio sujeito. Aprendemos a cultuar no outro, aquilo que desconhecemos e achamos não ter em nós. O filósofo estóico Epicteto escreveu: “O que perturba a mente dos homens não são os eventos, mas os seus julgamentos sobre os eventos”. O que nos faz comparar é a velha tradição do julgamento. Eu olho para o que é meu e olho para o que é do outro, nascendo daí uma espécie de ciúmes ou vontade de possuir.
Não é que o que pertence ao outro seja melhor do o que eu tenho. Na verdade, são as minhas impressões sobre o que é correto ou o meu conceito sobre o que “é bom”, que invalida o que pertence a mim, fazendo crescer o que é do outro. Os homens modernos são homens infelizes, porque aprenderam a se comparar a partir do que está ao seu lado. A televisão é o maior inimigo contra a felicidade. O cidadão humilde, morador dos subúrbios dos grandes centros, é induzido a pôr na balança o que lhe pertence e o que é exposto pelos meios de comunicação de massa. O seu tênis “velho” e ultrapassado é colocado na balança quando ele ver o novo modelo que está na moda. O celular “antigo” não possui as mesmas funções que o último modelo produzido pelo mercado. É como se ele olhasse para o seu jardim tão mirrado e visse do outro lado o jardim do vizinho, belo, florido e exalando perfume. Ele que tem o orçamento estrangulado não podendo comprar o produto que o deixará “semelhante” aos outros, se encherá de infelicidade. Nasce daí a alienação, que teve sua semente lançada na comparação de uma propaganda de televisão. As propagandas de televisão foram feitas para tornarem os homens urbanos infelizes.
Compara-se pelo instinto de ganância. O livro bíblico de Gênesis afirma que os rebanhos de Abraão e do seu sobrinho Ló, tendo aumentado consideravelmente, fez com que os dois tivessem que se separar. Abraão de forma mais humilde e resignada propôs a Ló: “Ló, meu querido sobrinho, eu e você temos um rebanho grandioso como se pode ver. De forma que já não podemos permanecer juntos porque isso tem gerado problemas. Os seus pastores estão brigando com os meus. Teremos que nos separar. Eu quero propor algo a você, Ló. Se você decidir ir para a esquerda, eu tomarei a direita; em contrapartida, se você for para a direita, eu irei para a esquerda”. E Ló baseado num paralelo que traçou, tendo olhado para todos os lados, foi despertado pela agradável planície do Jordão. Ficou embevecido com a beleza das campinas à sua frente. Decidiu tomar a direção daquela região aparentemente fértil, produtiva. Foi para o Oriente. Ao que Abraão foi para a região menos agradável aos olhos, a terra de Canaã, no Ocidente. A direção tomada por Ló foi dar na terra de Sodoma e Gomorra, cidades que foram, segundo os relatos bíblicos, vítimas da condenação divina por causa da maldade do povo.
Ló utilizou-se da comparação para escolher as campinas do Jordão. Aos seus olhos a terra de Canaã era uma terra sem atrativos e preferiu ir para o Oriente. A tristeza nasce a partir de uma projeção comparada – comparo, levanto a questão; avalio e, possivelmente, posso me tornar triste.
A próxima vez que for comparar, vou me lembrar que no final desse arco-íris não tem um pote de ouro, mas, sim, a tristeza que pode está à espreita com um sorriso maquiavélico e devorador. A inveja nasce onde a comparação é a senhora das virtudes.

Por Carlos Antônio M. Albuquerque.

segunda-feira, novembro 19, 2007

Responsabilidades Humanas

6. O consumo dos recursos naturais para responder às necessidades humanas deve estar integrado em procedimentos mais amplos de proteção ativa e de gestão prudente do meio ambiente.

Fonte: Carta de Responsabilidades Humanas - http://www.redemundialdeartistas.org.br/Alianca/CartaDeResponsabilidade


1. Introdução para uma História:

O homem é um dos principais agentes transformadores da natureza. Ele sempre utilizou os recursos naturais como objetos para a manutenção da sua própria existência. Desde a sua origem, o gênero humano sempre buscou subjugar as hostilidades e as intempéries da natureza. A sua presença no planeta é responsável pela construção de “sentidos”. São estes “sentidos” que identificam as características que determinam as diferentes sociedades e culturas. Em cada momento da História, o homem, por meio de uma ação transformadora, construiu “tendências”, que são responsáveis pela sua existência e que dão identidade ao que ele é. Para isso, várias instituições, formas religiosas, compreensões e ciências explicativas foram desenvolvidas para dar resposta à realidade que o envolve.
Nesse sentido, a forma como está organizada o mundo ocidental é recente, resultado de um processo histórico, de evolução da cultura, do modo de produção econômico (consolidação do capitalismo) e de valores que se cristalizaram como verdadeiros arquétipos. Inicio fazendo observações a partir do Renascimento Cultural da Europa no século XVI, pois ele é um ponto fundamental para falarmos em natureza como entendemos hoje. Foi a partir do Renascimento que o homem passou compreender que a natureza poderia ser usada a seu favor de maneira mais eficaz e complexa. Ele poderia compreendê-la e usá-la como resultado de seu progresso econômico e científico.
O Renascimento proporcionou uma nova forma de se ler o mundo. A partir dele, o homem passou a tomar uma nova consciência de si mesmo. Deixou basicamente de ver a natureza como resultado de uma criação deturpada pelo laivo do pecado como entendia o homem medieval, para vê-la como um objeto a ser conquistado pela ciência que se desenvolvia. Isto, por exemplo, pode ser visto na obra de Francis Bacon o Novo Organon que entendia a natureza como algo a ser dominado em favor do ser humano. Houve assim a desmistificação da natureza. Ela deixava de ser vista como resultado da criação divina, ou seja, uma co-irmã com os homens, para ser uma serva a ser utilizada em benefício do progresso humano.
Com o Iluminismo filosófico, esta leitura se intensificou. A natureza passou a ser vista como uma máquina feita de leis e lógica regulares que seguiam ciclos perfeitos e que podiam ser conhecidos pelo engenho humano. A revolução Industrial pôs um assento agudo de intensidade nesse quesito, pois ela pode ser vista como o resultado do progresso nascedouro. A produção deixou de ser manufaturada e passou ser totalmente industrializada. Os recursos necessários para manter a produção constante foram extraídos diretamente da natureza. Desta forma, o progresso dos homens (a industrialização), significou a espoliação dos bens da biosfera. Extração sem critérios de recursos naturais, para alimentar um entusiasmo industrial/capitalista megalomaníaco. O positivismo que pregava a consolidação da ciência como a grande mãe do progresso humano via na manipulação da natureza a chave para um novo tempo desenvolvimentista para a humanidade.
Assim, desde a Revolução Industrial iniciada na Europa no século XVII, o planeta vem passando por uma séria, grave e preocupante deterioração do meio ambiente. O século XX representou um agravante, pois um contingente novo de tecnologias foi responsável pela degradação de zonas inteiras do planeta, pela poluição de rios e mares, pela extinção de animais, pela excessiva emissão de gases tóxicos na camada de ozônio, causando desequilíbrio climático em todo o planeta.
James Hansem, diretor da Goddard Institute for Space Studies da Nasa e pesquisador do Earth Institute, da Columbia University, diz que “em consonância com evidências históricas, a Terra começou a se aquecer em décadas recentes a uma taxa prevista pelos modelos climáticos que levam em consideração a acumulação de gases produzidos pelo homem. O aquecimento está causando impactos observáveis com o recuo de geleiras em todo o mundo. O gelo marinho do Ártico está mais fino e a primavera chega cerca de uma semana mais cedo que nos anos 50”.[1] De modo que hoje, em pleno século XXI, uma das principais lutas que deve ser travada é a luta pela preservação do meio ambiente. Não há como falar em progresso humano sem se pensar responsavelmente em meio ambiente e ecologia.
Durante muito tempo se pensou que as fontes dos recursos naturais fossem inesgotáveis. Todavia, tem-se visto que esta premissa estava assentado num equívoco caricato. Pois, a degradação porque passa a natureza tem gerado uma preocupação para ambientalistas e entidades responsáveis por um discurso alternativo – vale mencionar nesse sentido o papel das ONGs.
Para dar continuidade a estes argumentos reflexivos, gostaria de tentar explicar e provocar uma ponderação a fim de que se entenda como é complexo o papel de se colocar em prática os princípios do artigo das responsabilidades que debato. Como existe uma estrutura que desrespeita a natureza e está pouco preocupada com a conservação da mesma, essa questão torna-se ainda mais inextricável.


2. Produção: esposa fiel do capitalismo:

O capitalismo se consolida no Ocidente como resultado das revoluções burguesas, também fortalecida no Renascimento. Esse modelo econômico tem como principal característica o acúmulo de bens e a busca constante do lucro. A principal receita para a efetivação desse modelo econômico é a produção e o consumo. Produz-se para se consumir. Há uma necessidade em se produzir sempre mais e cada vez melhor para um mercado consumidor sequioso por novidades. Para isso, a tecnologia está atrelada ao progresso, e, o progresso, à produção, pois não há progresso se não há produção com tecnologias cada vez mais aprimoradas.
Um exemplo disso seria os telefones celulares que há dez anos atrás eram aparelhos grandes, desguarnecidos de acessórios como os de hoje – GPS, câmara fotográfica, com acesso direto à internet... etc. O que determina a moda é a sofisticação cada vez mais apurada. De modo, que os consumidores do capitalismo, sentem-se pressionados pelo próprio sistema a consumirem aquilo que é produzido cada mais vez mais e melhor. Ao se comprar um celular não se pensa na cadeia processual que o levou até à prateleira da loja. Ali estão mecanismos, substâncias, materiais e uma bateria que possui substâncias altamente pesadas do ponto de vista da química, que foram transformados a partir da combinação de elementos naturais. A indústria tem que produzir mais e melhor; e para isso, não respeita os limites da natureza. O que demorou milhões de anos para ser produzido pelo planeta, o homem tem destruído em séculos.
A garganta do capitalismo é gulosa. Ela precisa de mais e mais nutrientes para a sua sobrevivência. Para isso, é preciso produzir, pois quem não produz no mundo capitalista estar completamente fadado ao desaparecimento. É preciso tirar de algum lugar para que esse ciclo produtivo tenha movimento em sua cadência. O que faz com que o mercado permaneça vivo é a produção. Não se trata de uma simples produção como mencionei acima. É uma produção que segue uma determinada lógica – a lógica da tecnologia.
O capitalismo é como uma bexiga. Ele precisa estar sempre recebendo ar para permanecer cheio, bonito e luzidio. Olhando por esta perspectiva, o capitalismo é um sistema autodestrutivo. Rubem Alves diz que “para existir e gozar saúde[o capitalismo], tem de estar num processo de crescimento constante: mais empregos, mais trabalho, mais devastação da natureza, mais monóxido de carbono no ar, mais lixo – seis bilhões de quilos de lixo por dia! – mais exploração dos recursos naturais, mais florestas cortadas, mais poluição dos mananciais... Até quando a frágil bolha suportará?” O capitalismo se expande sem fronteiras. E aonde chega instala as suas bandeiras que deixam marcas profundas na história e na saúde do planeta.

3. Capitalismo: fábrica produtora de desigualdade:

O capitalismo consagra a desigualdade, pois está eminentemente dividido em duas esferas eqüidistantes: de um lado temos aqueles que vendem a sua força de trabalho e, do outro lado, os detentores dos meios de produção. São duas entidades distintas, separadas por um fosso profundo. Aqueles que possuem os meios de produção compram a força de trabalho por baixos salários daqueles que não têm como produzir. Já estes não tendo os meios de produção são forçados a venderem aquilo que de mais preciosos eles têm: a força do seu trabalho.
Olhando desta perspectiva, aqueles que não têm condições mínimas de venderem a sua força de trabalho são excluídos, pois há no capitalismo, uma coisificação, objetização do ser humano. Não se valoriza o ser que é humano, mas quanto o ser humano pode contribuir com a sua força e inteligência à manutenção do sistema. Assim, o sistema torna-se um fim em si mesmo. Aqueles que não servem para preencher os interesses dos donos dos meios de produção acabam por serem completamente postos à margem. Cria-se desta forma, uma classe de excluídos.
O sistema capitalista não visa o bem dos seres humanos, nem possui um interesse de conservar a natureza. O capitalismo transforma seres humanos em mão de obra e degrada o meio ambiente, pois na sua gana utilitária, pouco importa para o capitalista a preservação e conservação do meio ambiente. Não é minha intenção nesse sentido fazer uma crítica ao capitalismo que o torne em algo imprestável, o responsável por toda a degradação do planeta, mas fazer uma leitura de como se dão as relações no mundo ocidental, que gera tanto desigualdade entre os homens, quanto uma degradação do meio natural e tem a sua base motora no capitalismo.
À frente tentarei demonstrar que uma “Nova História” pode ser escrita com ética e responsabilidade. Será possível utilizar os recursos naturais sem degradar os recursos naturais? Como estes recursos podem responder as necessidades humanas de maneira integrada com procedimentos mais amplos de proteção ativa e de gestão prudente do meio ambiente? Estas são questões que devem ser respondidas.

4. Ideário para construção de uma Nova História:

O escritor britânico Oscar Wilde disse certa vez que "um mapa do mundo em que não aparece o país Utopia não merece ser guardado." Nesse sentido, é importante sonhar as melhores utopias em favor do futuro da humanidade e do planeta terra. Um progresso responsável deve estar ao lado de um desenvolvimento sustentável. Nesse sentido, o consumo de recursos naturais deve estar sendo usado em prol das necessidades humanas, todavia este consumo deve ser realizado com amplas estratégias de proteção ativa e responsável, de uma gerência comedida e sensata da natureza.
É interessante notar que todos os candidatos a presidente, todos, indistintamente, de direita e de esquerda, prometem “progresso”. Mas nenhum deles promete preservar a natureza. Por que existe tamanho relaxamento, quando o que está em jogo é o futuro da humanidade? Se esta pergunta não for respondida com responsabilidade, uma afirmação impreterivelmente deve ser feita: o homem é o único animal a produzir a sua própria destruição. A ausência de uma consciência ecológica para a humanidade é o principal responsável pela atual situação de ameaça global.
Diante de um desafio tão grande como este que está à nossa frente configurado, algumas medidas importantes devem ser adotadas por todas as nações, pois se trata de um problema de dimensão global e que diz respeito a todo ser humano. Ignorar tamanho desafio é pôr em risco as próximas gerações. Para isso, é necessário criar redes de solidariedade global e de uma consciência ativa que age em favor da manutenção dos recursos não renováveis.

5. Por uma política que vise o natural:

A principal política que deve ser feito no século 21 é aquela que inclui a natureza no homem e o homem na natureza, sem que este último haja predatoriamente como fez nos últimos 500 anos de História. Os esforços devem ser envidados de todas as partes. Não se trata de uma ação das grandes instituições apenas, mas dos homens comuns também. Um dos fatores mais importantes é a adoção de medidas alternativas. Se os homens comuns deixarem de jogar garrafas de plástico nas praias e no mar, jogar latas de cerveja na mata, por exemplo, o planeta agradecerá. Se as matas ciliares forem respeitadas, o curso das águas poderão se manter vivos. Para isso é necessária uma ação governamental que priorize políticas sociais sérias a fim de diminuir os lapsos da desigualdade social e econômica. Uma vez que isso seja resolvido, loteamentos irregulares não serão criados próximos a áreas de proteção ecológica ativa, provocando o desaparecimento das nascentes de água.
Outro importante aspecto está vinculado ao consumo. O mundo não deve deixar de consumir, todavia o consumo deve ser feito com responsabilidade. Para isso é necessária a reciclagem. Todos devem ter consciência de que todos os bens de consumo são artefatos feitos a partir da transformação do natural e nada melhor do que ter uma consciência cidadã que busque priorizar a responsabilidade para com o meio natural. Entidades de proteção à natureza deveriam ser melhor visibilizadas como, por exemplo, a WWF, o Greenpeace e outros grupos que atuam em favor da manutenção da saúde do planeta.
Outro fator importante deve ser a descoberta de meios facilitadores para que o progresso da ciência e da tecnologia permaneçam como fatores que visam beneficiar a humanidade, sem comprometer os recursos que a natureza levou milhões de anos para criar. Que os países desenvolvidos entendam que é possível continuar a ser uma grande potência sem utilitarismo ou pragmatismo. Porque o pragmatismo e o utilitarismo nem sempre levam em conta a justiça e a ação que beneficia a maior parte. Pragmática do ponto de vista filosófico é a ação que não está preocupada com os meios – se serão éticos, se obstruirão a ordem, se “destruirão” a ética – mas unicamente com os fins.
A adoção de medidas que diminuísse o despejo de toneladas de gases venenosos na atmosfera deveria ser outra questão das questões mais urgentes. Combustíveis fósseis, materiais pesados como os derivados de petróleo deveriam passar por um processo de tratamento mais eficaz. O diesel deveria ser queimado de maneira mais limpa com tecnologias melhoradas. James Hansem diz que medidas simples e criativas seriam significantes para o melhoramento das condições de vida no planeta:

Reduzindo a fuligem também teríamos benefícios econômicos, tanto pelo decréscimo das perdas de vida como em trabalho-anos (partículas minúsculas de fuligem levam compostos orgânicos tóxicos e metais para os pulmões) e aumento da produtividade agrícola em certas partes do mundo. As fontes primárias de fuligem são o diesel e biocombustíveis (madeira e esterco de vaca, por exemplo). Estas fontes precisam ser consideradas por razões de saúde. Deve haver soluções ainda melhores, tais como combustível de hidrogênio, que eliminaria precursores de ozônio, bem como fuligem[2].

Muitas das importantes medidas a serem adotadas para melhoria da existência do planeta, deve ter como principal base o encadeamento de políticas que vise o natural como principal elemento para a sustentação da vida no futuro. Se tais medidas não forem adotadas e incentivadas por governos, igrejas, Organizações não Governamentais, associações de moradores, partidos políticos, universitários conscientes, agremiações estudantis, políticos, professores, pais responsáveis, o futuro do planeta será tenebroso. Trata-se de um esforço conjunto e necessário. O que está em jogo são dois sujeitos: o homem para continuar existindo e a natureza para manter a sua saúde em bom estado. Isso será de importância vital para as próximas gerações.

[1] James Hansen, Scientific Americam Brasil, A bomba-relógio do aquecimento global – Deter o processo requer cooperação internacional urgente e sem precedentes, Edição N.º 23 – abril de 2004 – www.scientificamericanbrasil.com.br
[2] Idem.

Por Carlos Antônio M. Albuquerque

sexta-feira, novembro 16, 2007

As luzes do ontem

As luzes da manhã ainda estão
Guardadas na concha da minha mão.
Ouço a sua voz sumida;
A sua essência simples.
A limpidez que cheira aos
Campos distantes.
O marulhar dos seus fios
Que aquecem.
O tato do seu hálito
Que me envolve;
As sementes da poesia
Estão férteis.
Brotam com os seus
Motivos alarmantes.
Apenas porque represei o
Silêncio dos tempos idos.
A incessante visita do sentir...
Que dói, dói...

Por Carlos Antônio Maximino de Albuquerque

segunda-feira, novembro 05, 2007

A eloqüência do silêncio - Koyanisqatsi

Koyaanisqatsi(1983) é com certeza um dos filmes mais impressionantes que já foram feitos. Trata-se de um documento poderoso e atordoante. Não há como assisti-lo e não adquirir uma sensação, seja de susto ou de profundidade estética e filosófica. A sua intencionalidade nos provoca. A sobreposição de cenas nos conduz por um ambiente silencioso. Não há vozes no filme. Não há palavras humanas. Quem fala são os atos humanos, as ações humanas, o desequilíbrio humano.
O filme possui por fundo uma trilha sonora notável, arrebatadora, que funciona como um guia para nos mostrar imagens indescritíveis. Philip Glass, responsável pela composição sonora, afirma que “a estrutura, a base, as imagens e a música são o elemento interdisciplinar” que tornam o filme belo. As imagens se movimentam e mostram a contingência notável entre natureza, homens e máquinas. Não é possível extrair do filme a música, pois ela também faze parte da ambientação. A trilha sonora, as imagens e o telespectador formam a trindade que tornam o filme uma referência. Quantos forem os telespectadores, tantas serão as impressões sobre esse belo objeto a serviço da arte. Assistir ao filme é convidar para uma experiência única.
O diretor Godfrey Reggio afirma que a sua principal razão para fazer o filme foi apontar o desequilíbrio da vida. O nome estranho foi tomado do idioma Hopi, uma tribo índigena americana (qatsi = vida; e koyaanis = loucura, tumulto, fora de compasso, desintegração ou um estado que pede por outro modo). Assim, ao final o filme tem o significado básico de “vida louca”, “vida tumultuada”, “vida fora de balanço”, “vida desintegrando-se” ou “um estado na vida que pede por outro modo de viver”.
Reggio ainda afirma que o filme buscou tratar sobre a essência da vida. Do homem mergulhado no silêncio do tempo, cercado pelo absoluto da tecnologia. “Não é que usemos a tecnologia, vivemos a tecnologia. Ela é tão indispensável quanto o ar que respiramos. Não temos mais ciência de sua presença”, afirma. Trata-se de um sistema que é alimentado pela necessidade humana. Os homens foram tragados pela via tecnológica. Ainda afirma: “O acidente de hoje não é visto por quem o presencia”. Com certeza, aí está uma assertiva profunda. O homem moderno deificou a tecnologia. A paisagem humana é tecnologizada. Os microchips de computadores são os portadores da nova inteligência. Godfrey, que afirma ter sido influenciado pela religião, diz que a nova religião do homem é a tecnologia. “A vida não questionada passa a ter um estado religioso”, assevera. O jornalista Aramis Millarch escreveu no ano de 1985 sobre o filme: "Em suma, o filme se propõe a mostrar a contradição entre a natureza em seu estado virgem e a montagem urbana do sonho americano"(...) Nova Iorque foi escolhida como a soma das virtudes e defeitos do "american way": o efeito é sobrecarregador. Através dele chegamos ao paroxismo que logram criar as imagens animadas e a partitura musical, que retoma o formato de cantata (provérbios hopis), como na introdução e nos devolve suavemente aos valores primários da natureza".
O sistema criado pelo homem se movimenta. O silêncio da natureza, trabalhou durante as eras magnificentemente as formas dos montes, dos rios, dos vales. O homem transformou o mundo recentemente. Leonardo Boff disse numa palestra que a lógica proporcional, leva-nos a afirmar que a terra surgiu nos últimos dois minutos da história do universo; e o homem , por sua vez, a cinco segundos. A vida criada pelo homem é desequilibrada, louca, tumultuada e está fora de controle. O último dos seres a surgir no planeta é a mais espetacular e a mais terrível das criaturas.
Assim, o filme busca criticar a vida que está fora de equilíbrio. Fora dos eixos. O monstro manco feito pelo homem – a besta. Reggio arremata dizendo o seguinte: “É sobre uma beleza incrível, terrível ou a beleza da fera. Nossa ilustre fera, o modo de vida”. Ao final, existe a afirmação chocante, atordoante, de três profecias antigas traduzidas pelo diretor Gofrey Reggio: “Se escavarmos preciosidades da terra, convidaremos ao desastre”. Isso parece inevitável e certo. A segunda: “Próximo do Dia da Purificação haverá teias de aranha a rodar no céu”. A terceira: “UM pote de cinzas pode um dia ser jogado do céu, o que poderia queimar a terra e ferver os oceanos”.
Enquanto assistia ao filme me ocorreram algumas impressões. São palavras soltas, mas que seguem a lógica das cenas à medida que estas se delineavam:

No princípio de nossas investigações
Buscamos retratar nossas intuições (divinas?);
O monstro de aço que vomita fumaça
E sobe assustadoramente se equilibrando
No vazio – que orgulho!
As montanhas de pedras,
Esqueletos esculpidos pelo tempo.
A superfície varrida pelo vento;
O silêncio, apenas o silêncio!!
Os gases misteriosos que cobrem a extensão.
A gramínea resistente que vence a intempérie;
Espigões que apontam para o céu;
A trilha intermitente de um rio que morreu;
A nesga de sol coado por entre as nuvens;
O rio que ladeia o cânion, a escura água;
Gastamentos, no silêncio;
Do chão brota a fumaça;
Tudo está em combustão;
O deserto arenoso, indisciplinado;
A natureza se forma dialeticamente;
O imenso mar de espumas brancas,
Que rumam, migram atabalhoadamente,
Como bicho para toda parte, no silêncio.
Tudo se move, tudo dança, tudo muda;
O movimento é absoluto – o silêncio também!
A água se beija numa briga imensa
As partículas reduzíssemas;
Aqui, ali, acolá, o mundo inteiro.
Aonde chegaremos?
As cores engolfantes.
A violência dos homens.
O mecanismo duro, frio, que movimenta
E cospe a fuligem negra;
Como uma serpente extensa,
Prolonga-se o duto.
Armações de ferro abrigam a força
Silenciosa que alimenta os nossos sistemas;
Espalham-se por toda parte.
Aqui chegamos.
Os rios químicos, o sulco venenoso
Que formamos dos nossos processos produtivos;
Nossos lixos residuais.
O silêncio agora se transformou em estrondo;
O cogumelo negro de fumaça que se levanta,
Ganha os espaços.
O homem dorme e se confunde com as engrenagens.
Bestificados, admiram o que criaram.
As janelas espelhadas que reflete a luz do céu.
O monstro de lata que se movimenta é capaz de voar.
Pousa soberanamente.
Suas rodas, turbinas, engrenagens, fuselagens
Estrutura nos admira.
Tornamo-nos deuses.
Nossas trilhas são alfálticas.
Baratas de aço com rodas circulam por elas.
Muitos, muitíssimos.
São velozes assim como a vida que passa.
A paisagem foi construída.
Tudo se mistura e confunde os olhos.
Outras baratas estão estacionadas
Esperando serem adquiridas.
Um dia elas não caberão mais
nas artérias do mundo.
O silêncio foi quebrado pelo ronco
Das máquinas – aqui, ali, acolá.
Temos armas poderosas – E = m.c
Nossa natureza é dura,
Nosso mundo é de pedra.
O ronco das máquinas substituiu
O silêncio das eras.
Nossas pedras são artificiais.
As estruturas ruem.
Caem, fragmentam-se como papel.
A noite chega, ameaça o mar de pedra.
Põe efeitos admiráveis na paisagem.
Os blocos gasosos migram por sobre a cena artificial.
O espelho plantado a refletir o movimento.
A estação – povoado por criaturas apressadas
Que passam, passam...
Velhos, mulheres, crianças,
Todos compõem o mesmo espaço.
Quem somos?
Vermes compostos por hormônios,
Ossos e tecidos.
O silêncio dos céus nos impulsiona a criar, criar.
Todos morrem, outros nascem – o movimento.
As caixas de pedras mortos abrigam
Seres de vontades vivas.
As luzes comportamentais como olhos acesos
Anunciam os desejos.
Uma, duas, três, quatro...
Muitas se apagam.
Prédios, caixas, casulos de pedras...
As luzes da noite anunciam um sistema
Vivo, alimentado por uma força invisível.
As baratas vão e vêm.
A lua magnificente contrasta com o espigão
Fálico, símbolo do nosso orgulho.
As vias são artérias por onde passa um sangue
Luminoso alimentando os nossos complexos,
A rede, o mundo que criamos.
Comemos e somos engolidos pelo sistema.
Alimentamos o mundo com nossas vísceras.
A beleza volátil.
O fluxo luminoso, que não pára.
Microchips, mecanismos, cidades miniaturizadas.
Em que nos confundimos?
O mergulho nos espelhos, nas luzes,
Na velocidade;
A contemplação distante, os homens apressados.
As baratas que simbolizam a distinção.
A senilidade do homem que se preocupa
No escanhoamento.
Os olhos inquiridores, o que tu és?
O que somos?
Os anos gastos.
O corpo que se debilita,
As pernas imóveis, moles.
A beleza nova.
Os anos, a cor, a barriga oblonga.
O corpo desaire.
O acidente, a curiosidade, a autoridade.
Somos frágeis.
Nossas construções, projeções podem ser
Importantes, mas no fundo há a fragilidade
Em nossa importância.
Somos fantasmas e nos locomovemos
Para a inanição fatal.
O frio absoluto.
As turbinas cospem fogo e produzem gelo.
Os mecanismos se desacoplam das engrenagens.
Um rabo de fogo pode ser visto no céu.
O estouro veloz.
Caem fragmentos de nosso orgulho.
A fatalidade do nosso destino.
O fogo queimará nosso orgulho.
O enredo trágico.
Profecia traduzida dos índios Hopi, Estados Unidos:

“Se escavarmos preciosidades da terra, convidaremos ao desastre”.

“Próximo do Dia da Purificação, haverá teias de aranha a rodar no céu”.

“Um pote de cinzas pode um dia ser jogado do céu, o que poderia queimar a terra e ferver os oceanos".