quarta-feira, setembro 30, 2009

Liberdade e justiça social

Na década de 1980 visitei, com frequência, países socialistas: União Soviética, China, Alemanha Oriental, Polônia, Tchecoslováquia e Cuba. Estive também na Nicarágua sandinista. As viagens decorreram de convites dos governos daqueles países, interessados no diálogo entre Estado e Igreja.

Do que observei, concluí que socialismo e capitalismo não lograram vencer a dicotomia entre justiça e liberdade. Ao socializar o acesso aos bens materiais básicos e aos direitos elementares (alimentação, saúde, educação, trabalho, moradia e lazer), o socialismo implantara, contudo, um sistema mais justo à maioria da população que o capitalismo.

Ainda que incapaz de evitar a desigualdade social e, portanto, estruturas injustas, o capitalismo instaurou, aparentemente, uma liberdade - de expressão, reunião, locomoção, crença etc. - que não se via em todos os países socialistas governados por um partido único (o comunista), cujos filiados estavam sujeitos ao "centralismo democrático".

Residiria o ideal num sistema capaz de reunir a justiça social, predominante no socialismo, com a liberdade individual vigente no capitalismo? Essa questão me foi colocada por amigos durante anos. Opinei que a dicotomia é inerente ao capitalismo. A prática de liberdade que nele predomina não condiz com os princípios de justiça. Basta lembrar que seus pressupostos paradigmáticos - competitividade, apropriação privada da riqueza e soberania do mercado - são antagônicos aos princípios socialistas (e evangélicos) de solidariedade, partilha, defesa dos direitos dos pobres e da soberania da vida sobre os bens materiais.

No capitalismo, a apropriação individual e ilimitada da riqueza é direito protegido por lei. E a aritmética e o bom-senso ensinam que quando um se apropria muitos são desapropriados. A opulência de uns poucos decorre da carência de muitos.

A história da riqueza no capitalismo é uma sequência de guerras, opressão colonialista, saques, roubos, invasões, anexações, especulações etc. Basta verificar o que sucedeu na América Latina, na África e na Ásia entre os séculos XVI e a primeira metade do século XX.

Hoje, a riqueza da maioria das nações desenvolvidas decorre da pobreza dos países ditos emergentes. Ainda agora os parâmetros que regem a OMC são claramente favoráveis às nações metropolitanas e desfavoráveis aos países exportadores de matérias-primas e mão de obra barata.

Um país capitalista que agisse segundo os princípios da justiça cometeria um suicídio sistêmico; deixaria de ser capitalista. Nos anos 80, ao integrar a Comissão Sueca de Direitos Humanos, fui questionado, em Uppsala, por que o Brasil, com tanta fartura, não conseguia erradicar a miséria, como fizera a pequena Suécia. Perguntei-lhes: "Quantas empresas brasileiras estão instaladas na Suécia?" Fez-se prolongado silêncio.

Naquela época, nenhuma empresa brasileira operava na Suécia. Em seguida, indaguei: "Quantas empresas suecas estão presentes no Brasil?" Todos sabiam que havia marcas suecas em quase toda a América Latina, como Volvo, Scania, Ericsson e a SKF, mas não precisamente quantas no Brasil. "Vinte e seis", esclareci. (Hoje são 180). Como falar em justiça quando um dos pratos da balança comercial é obviamente favorável ao país exportador em detrimento do importador?

Sim, a injustiça social é inerente ao capitalismo, poderia alguém admitir. E logo objetar: mas não é verdade que, no capitalismo, o que falta em justiça sobra em liberdade? Nos países capitalistas não predominam o pluripartidarismo, a democracia, o sufrágio universal, e cidadãos e cidadãs não manifestam com liberdade suas críticas, crenças e opiniões? Não podem viajar livremente e até mesmo escolher viver em outro país, sem precisar imitar os "balseros" cubanos?

De fato, nos países capitalistas a liberdade existe apenas para uma minoria, a casta dos que têm riqueza e poder. Para os demais, vigora o regime de liberdade consentida e virtual. Como falar de liberdade de expressão da faxineira, do pequeno agricultor, do operário? É uma liberdade virtual, pois não dispõem de meios para exercitá-la. E se criticam o governo, isso soa como um pingo de água submergido pela onda avassaladora dos meios de comunicação - TV, rádio, internet, jornais, revistas - em mãos da elite, que trata de infundir na opinião pública sua visão de mundo e seu critério de valores. Inclusive a ideia de que miseráveis e pobres são livres...

Por que os votos dessa gente jamais produzem mudanças estruturais? No capitalismo, devido à abundância de ofertas no mercado e à indução publicitária ao consumo supérfluo, qualquer pessoa que disponha de um mínimo de renda é livre para escolher, nas gôndolas dos supermercados, entre diferentes marcas de sabonetes ou cervejas. Tente-se, porém, escolher um governo voltado aos direitos dos mais pobres! Tente-se alterar o sacrossanto "direito" de propriedade (baseado na sonegação desse direito à maioria). E por que Europa e EUA fecham suas fronteiras aos imigrantes dos países pobres? Onde a liberdade de locomoção?

Sem os pressupostos da justiça social, não se pode assegurar liberdade para todos.

----

Por Frei Betto.

segunda-feira, setembro 21, 2009

Primeiro Domingo

Este primeiro domingo de 2009 está

Cheio de silêncio e mistério.

A luz fina, morna, é filtrada das nuvens.

A manhã está tépida.

Pedaços de luminosidade esparramam-se pela parede.

As roupas vadias balançam no varal.

O vento traz desejos e eu rio.

Árias, andantes e adágios mozartianos entram

Pelos meus ouvidos que convidam os barulhos de

Fora a virem morar dentro de mim.

Simbiótico, desejo as canções.

Já estou a bastante tempo ouvindo esse som

Com propriedades etéreas.

Sozinho, sinto que os astros do universo moram

Comigo.

O sol é meu irmão e a lua é minha companheira.

Os desejos estão adormecidos.

Sinto a calma mongética.

Como dizia Nietzsche: “eu sou um brâmane”.

Penso nas coisas grandiosas e espirituais.

A beleza necessariamente anda com pés delicados.

Ela é uma moça cândida, cheia de recatos.

Consigo ouvir barulhos longínquos.

Perto de minha casa há bares abarrotados.

Lá vive a loucura com lábios molhados, pronta

Para beijar seres incautos.

A loucura é a musa dos homens doentes.

Os sãos gostam de valores frágeis, delicados.

As árias, andantes moltos e adágios se sucedem

Como águas turbulentas e sábias de uma cachoeira.

O meu domingo de solidão e silêncio musical

É uma efeméride para os meus sentidos.


Por Carlos Antônio M. Albuquerque

Data: domingo, 4 de janeiro de 2009, 11:56:07.

sábado, setembro 12, 2009

Outras Impressões

Parece sempre nova a visão que

Tenho deste ponto.

Já estive aqui por diversas vezes.

Presencie essa mesma paisagem.

Extasio-me de forma completa.

Não deixei de me sentir integrado

Ao mundo.

O calor acentuado.

O dia que se vai.

O astro que se esconde por

Trás dos morros distantes.

Uma bola incandescente.

As nuvens que ainda fazem perceber

As reverberações de mais

Um espetáculo ocasual.

É sempre belo.

Ternos versos poéticos.

Misterioso como uma religião,

Cheio de fragrâncias distintas

Como se fosse um bosque.

Triste como uma despedida.

Habitado por sensações variegadas

Como uma viagem.

Um momento de velocidade parada.

A escuridade tênue, leitosa,

Engole o dia.

Alimenta-se da pressa.

Muda-se a cor do cenário.

Cobre-se o mundo com

Um manto trevoso.


Por Carlos Antônio Maximino de Albuquerque

Data: 12 de setembro de 2008, sexta-feira.

terça-feira, setembro 01, 2009

A Sinfonia Inacabada e a minha relação com a música

A música clássica mostrou-se a mim com a Sinfonia Inacabada de Franz Schubert. Devo afirmar que preciso aprender a ouvir o compositor austríaco. Ele não é um dos meus preferidos. Há outros compositores que admiro com maior ênfase – Beethoven, Mahler, Mozart, Bach, Brahms e Shostakovich são compositores que exercem um efeito inebriador sobre mim.
Mas voltemos à Sinfonia Inacabada. Eram os idos de 1997 ou 98. Eu era um adolescente de 17 para 18 anos. Estava saindo da puberdade e conhecendo as realidades agrestes do mundo adulto. Apesar de ter as minhas amizades, o que de fato fundava-se em mim como material necessário, era a introspecção, os deleites reflexivos da solidão. Por esse tempo, não sei por que cargas d’água eu fui presenteado com uma fita K-7 com peças de Schubert. À época não entendia muito bem o matéria daquele objeto. O colega que me dera a fita K-7 fazia parte de uma família de diletantes. Conheciam o básico, o necessário, o trivial de cada assunto. O fato típico da burguesia.
A grande questão é que não atribuir muita significação àquele presente. Como os gregos antigos, eu tinha curiosidade por aprender, mas no que tange à fita, ela ficou a um canto. Em dados momentos, quando me encontrava mais contido, eu comecei a ouvir o material da fita. Trata-se de uma coletânea com as melhores peças de Schubert. Franz compôs em demasia quando vivo e o que uma fita de 46 minutos poderia conter além de fragmentos esparsos do grande músico romântico? Como descobrir mais tarde, havia na fita pedaços das Sinfonias 3 e 5, o quarto movimento do Quinteto para Piano, “A Truta”, uma canção de um dos inúmeros lieders compostos por Schubert. O fato que reputo por mais importante foi a presença, naquela fita, que ainda trago comigo (apesar do áudio não está tão bom), da Oitava Sinfonia, denominada simplesmente de “Sinfonia Inacabada”. A música clássica provocou os seus poderes em mim com essa sinfonia de Schubert.
O nome da peça chama atenção (“Inacabada”). Para mim ela estava perfeitamente acabada. A música era densa, poderosa. Revelava poderes noturnos. Exigia-se bastante dos instrumentos e da orquestra. Os violoncelos imprimiam gravidade. As madeiras apareciam estabelecendo contrastes. Os violinos chamavam de volta o tema e os tambores ruflavam. Apenas dois movimentos (Um allegro moderato e um Andante con moto). Pouco mais de 23 minutos de música acachapante. Aquilo era de mais para mim.
Schubert foi um compositor precoce. Aos 11 ou 12 anos ele já compunha missas. Morreu muito jovem – com 31 anos de idade, acometido de um ataque sifilítico. Trabalhava num ritmo alucinado. Muitas das peças que começava a compor, largava de mão. Isso deve ter se dado com esta Sinfonia, que deve ter sido escrita quando o compositor tinha 25 anos de idade. Nela é possível verificar uma reflexão densa, pesada. Por aquilo que já ouvir de Schubert, essa peça é distinta em suas nuances. É música beethoviana, carregada de sentimentos represados. É como se Schubert já enxergasse a morte precoce. Ele enfrentava problemas de saúde. Viajava sempre à procura de climas melhores e benfazejos.
O primeiro movimento é denso, carregado de elementos tempestuosos, como se o dia estivesse aguardando o retumbar da tempestade. O segundo movimento inicia-se lento, nostálgico, com elementos bucólicos, quase pastorais. E de repente, a orquestra irrompe numa eclosão volumosa de sons e novamente a reflexão lenta, ciciosa. Esta reflexão imprime poderes profundos na alma.
Ainda hoje posso ouvi-la por inúmeras vezes. É uma das minhas peças favoritas. Bateu-me o desejo de escrever estas palavras após tê-la ouvido na manhã de ontem. Agora enquanto escrevo estas palavras, a sua música é reproduzida suavemente ali do meu aparelho de som. Devo ter cinco gravações da Oitava Sinfonia aqui em casa. Num dos encartes que tenho, gravado pela London Festival Orchestra, encontro as palavras:
A Inacabada foi terminada provavelmente durante o verão de 1822. Não foi revelada até 1860 e foi estreada em Viena em 17 de dezembro de 1865, Schubert morrera a quase quarenta anos.
A Sinfonia # 8, obra bastante enigmática quanto ao modo de organização das figuras musicais que desenvolve, colocou, aos musicólogos, o problema do seu estado incompleto. Apesar de não todos opinarem que tivesse de ter uma continuação. Para alguns – entre outros Brahms – Schubert, a trabalhar o scherzo, considerou que as duas primeiras partes formavam um todo completo, não se teria sentido obrigado a ter em conta a tradicional divisão quatripartida.
Aqueles que consideram que a obra está inacabada afirmam, duma parte, que isto não é nada extraordinário na criação schubertiana e doutra, que Schubert não conseguiu um final adequado para esta obra tão notável e decidiu abandonar. Outra suposição consiste em pensar que Schubert subestimou o valor da sua obra, ao considerá-la demasiado próxima do estilo de Beethoven.
Alguns ao contrário, elaboraram a hipótese de um final que teria decidido extrair, totalmente ou em parte, da música de intermédio número 1 de
Rosamunda, uma vez terminado o scherzo.
Ouvindo esta peça hoje, vem-me a convicção que ela não precisa de um terceiro movimento. Ela não está inacabada como o próprio nome sugere. Creio que ela está poética e romanticamente acabada. Ela é misteriosa por, justamente, ter somente dois movimentos vestidos do mais profundo mistério. Talvez não produzisse tantos efeitos caso tivesse três movimentos. A música passou a ter outros motivos para mim graças a esta peça do gênio singular de Franz Schubert.

Por Carlos Antônio Maximino de Albuquerque
Data: Sexta-feira, 16 de janeiro de 2009, 10:04:33