quarta-feira, abril 21, 2010

Brasília 50 anos

Nestas duas últimas semanas, muitas foram as reportagens mostradas pela televisão sobre os 50 anos de Brasília. Em todas essas reportagens, destacou-se um forte senso civista, sacralizante. As reportagens mostravam a Brasília dos grandes monumentos; a cidade que parece ter surgido como um evento ex nihilo; a cidade que se destaca pelas suas largas avenidas; a cidade de construções com curvas sinuosas, sensuais; a cidade que se destaca pelo verde que se alastra nas quadras, criando um misto de prédios arquitetados entre as alamedas; de árvores frutíferas – jaqueiras, mangueiras, amoreiras, abacateiros e etc. A Brasília do poder – da Esplanada dos Ministérios. Da Praça dos Três Poderes. A Brasília imponente, vestida pela glória. Ou seja, pintava-se a Brasília dos cartões postais.

E, de fato, Brasília é uma cidade sui generis. Sua estrutura física diferencia-se das demais cidades brasileiras. Eu, por exemplo, quando vou à Goiânia, cidade situada a pouco mais de 200 quilômetros da Capital Federal, penso está em outro mundo. As ruas estreitas, a sensação encurralamento, de asfixia urbana é incomparável. O trânsito amalucado, tenso, de desrespeito e imprudência parece ser uma prática constante. A estrutura, o modelo arquitetônico de Brasília, não permite que se experiencie tais aspectos.

O que a televisão esqueceu de mostrar foi a Brasília dos contrastes. Das invasões que grassam por todos os lados. Da esperteza dos especuladores de terra; a Brasília, sonho das grandes construtoras, que fazem “encarecer” o custo de vida, dificultando a existência do trabalhador de baixa renda. A Brasília dos caciques políticos. Dos coronéis que ainda praticam o voto de cabresto em pleno século XXI. Que se utilizam da máquina pública para se perpetuarem no poder às custas da ignorância do povo. A Brasília dos escândalos, da ineficiência. A Brasília de monumentos frios. A Brasília dos desencontros. A cidade que parece ter sido feita para “afugentar” qualquer possibilidade de arregimentação social.

O simbolismo do que é Brasília acontece num entroncamento das Asas Sul e Norte – a Rodoviária. Por ali passam milhares de pessoas todos os dias, vindas das mais diversas regiões do Distrito Federal e das cidades do entorno, aqueles que formam um cinturão de necessidades ao redor do “sonho chamado Brasília”. É possível distinguir todo Brasil na Rodoviária do Plano Piloto. Afinal, ali estão sulistas, nordestinos, pessoas vindas da Região Sudeste entre outras cidades brasileiras. Todos “se encontram ali”, mas ninguém se conhece. Estão todos atomizados. É a Brasília fria e impessoal. Que foi feita para que os seus habitantes não se encontrem. O homogenismo de Brasília e superficial e heterodoxo.

O sonho chamado Brasília é patente, existente, para os moradores do Plano Piloto ou dos Lagos Sul e Norte; ou do Setor Sudoeste, Park Way ou qualquer condomínio, a medievalização da modernidade – a Brasília dos burgueses. Para os moradores das cidades-satélites, principalmente as surgidas da “grilagem” de terras ou da imposição de “alastramento” forçado, Brasília não está vestida de sonho, de fantasia. Não se constitui numa ilha, num paraíso em meio ao cerrado. A Brasília dessa gente está vestida por um realismo cruel, o realismo do dia a dia – a Brasília do proletariado. Do ônibus lotado. Do morar na periferia – cidades dormitórios, que revela a sua face na exclusão social – criminalidade alta, juventude sem perspectivas, do uso indiscriminado de drogas (álcool e crack), pelos jovens.

As melhores palavras que encontrei para definir o que é Brasília estão escritas no livro Tudo o que é sólido desmancha no ar[1], do escritor americano Marshall Berman:

Tive a oportunidade de vivenciar e mesmo participar de um choque muito intenso entre modernismos quando estive no Brasil em agosto de 1987 para participar de um debate sobre o presente livro. Minha primeira escala foi Brasília, a capital criada por decreto, ex nihilo, pelo presidente Juscelino Kubitschek, no final dos anos de 1950 e início dos anos 1960, exatamente no centro geográfico do país. A cidade foi planejada e projetada por Lúcio Costa e Oscar Niemeyer, discípulos esquerdistas de Le Corbusie[2]r. Vista do ar, Brasília parecia dinâmica e fascinante de fato, a cidade foi feita de modo a assemelhar-se a um avião a jato tal como aquele do qual eu (e quase todas as outras pessoas que lá vão) a vemos pela primeira vez. Vista do nível do chão, porém, do lugar onde as pessoas moram e trabalham, é uma das cidades mais inóspitas do mundo. Não caberia aqui uma descrição detalhada do projeto da cidade, mas sensação geral que se tem – confirmada por todos os brasileiros que conheci – é a de enormes espaços vazios em que o indivíduo se sente perdido, tão sozinho quanto um homem na Lua. Há uma ausência deliberada de espaços públicos em que as pessoas possam se reunir para conversar, ou simplesmente olhar uma para outra e passar o tempo. A grade tradição do urbanismo latino, em que a vida urbana se organiza em torno de uma grande praça, é rejeitada de modo explícito.

O projeto de Brasília talvez fizesse sentido para uma ditadura militar, comandada por generais que quisesse manter a população a certa distância, isolada e controlada. Como capital de uma democracia, porém, é um escândalo. Para que o Brasil possa continuar democrático, declarei em debates públicos e aos meios de comunicação, ele precisa de espaços públicos democráticos aonde pessoas vindas dos quatro cantos do país possam convergir e reunir-se livremente, conversar uma com as outras e dirigir-se a seus governantes – porque numa democracia, afinal de contas – o governo pertence às pessoas – para discutir suas necessidades e desejos, e para manifestar sua vontade.

Depois de algum tempo, Niemeyer respondeu. Após uma série de comentários pouco lisonjeiros a meu respeito, ele disse algo mais interessante: Brasília simbolizava as aspirações e esperanças do povo brasileiro, e qualquer ataque ao projeto da cidade era um ataque ao próprio povo. Um dos seus seguidores acrescentou que era sinal de meu vazio interior ou pretender ser modernista e ao mesmo tempo tacar uma obra que figura entre as maiores encarnações do modernismo.

Tudo isso me fez pensar. Num ponto Niemeyer estava certo: quando foi concebida e planejada, nos anos de 1950 e início dos anos de 1960, Brasília de fato representava as esperanças do povo brasileiro, em particular seu desejo de modernidade. O grande hiato entre essas esperanças e sua realização parece dar razão ao homem subterrâneo: para homens modernos, pode ser uma aventura criativa construir um palácio, e no entanto ter de morar nele pode virar um pesadelo.

Esse problema é particularmente crucial para um modernismo que impede ou hostiliza a mudança – melhor dizendo, um modernismo que busca uma única grande mudança, e depois não aceita mais nenhuma. Niemeyer e Costa, tal como Le Corbusier, acreditavam que o arquiteto moderno deve usar a tecnologia para concretizar certas formas ideais , clássicas, eternas. Se isso pudesse ser feito na escala de uma cidade inteira, ela seria perfeita e completa; suas fronteiras poderiam se estender, mas ela jamais deveria se desenvolver a partir de dentro. Tal como o Palácio de Cristal imaginado por Dostoievski, a Brasília de Costa e Niemeyer não deixava a seus cidadãos – e aos outros brasileiros – “nada mais a fazer”.

Em 1964, pouco depois da inauguração da nova capital, a democracia brasileira foi derrubada, sendo instaurada uma ditadura militar. Durante o período de governo militar (ao qual Niemeyer se opôs), a população teve de enfrentar crimes muito mais sérios do que as falhas no projeto da capital. Mas quando os brasileiros reconquistaram a liberdade, no final dos anos de 1970 e início dos anos de 1980,, era inevitável que muitos deles manifestassem seu descontentamento com a cidade, que parecia ter sido projetada com o fim de mantê-los calados. Niemeyer deveria ter percebido que uma obra modernista que negava alguma das mais básicas prerrogativas modernas dos cidadãos - falar, reunir-se, discutir, manifestar suas necessidades – fatalmente conquistaria muitos inimigos. Em meus pronunciamentos no Rio, São Paulo e Recife, terminei atuando como porta-voz de uma indignação generalizada a respeito de uma cidade que, muitos brasileiros me disseram, não tinha lugar para eles[3].

Por Carlos Antônio M. Albuquerque

Data: 21 de abril de 2010, 12:40



[1] BERMAN, Marshall. Tudo o que é sólido desmancha no ar. São Paulo: Companhia de Bolso. 2007. 463p.

[2] Arquiteto, urbanista e pintor francês de origem suíça, nascido em 1887 e morto em 1965. A sua influência estendeu-se principalmente ao urbanismo. Foi um dos primeiros a compreender as transformações que o automóvel exigiria no planejamento urbano. A cidade do futuro, na sua perspectiva, deveria consistir em grandes blocos de apartamentos assentes em pilotis, deixando o terreno fluir debaixo da construção, o que formaria algo semelhante a parques de estacionamento. Grande parte das teorias arquitectónicas de Le Corbusier foram adoptadas pelos construtores de apartamentos nos Estados Unidos da América. Le Corbusier defendia, jocosamente, que, "por lei, todos os edifícios deviam ser brancos", criticando qualquer esforço artificial de ornamentação. As estruturas por ele idealizadas, de uma simplicidade e austeridade espartanas, nas cidades, foram largamente criticadas por serem monótonas e desagradáveis para os peões. A cidade de Brasília foi concebida segundo as suas teorias. Depois da sua morte, os seus detractores têm aumentado o tom das críticas, apelidando-o de inimigo das cidades. É, no entanto, absolutamente, um nome de referência na história da arquitectura contemporânea. Disponível em http://pt.wikipedia.org/wiki/Le_Corbusier. Acessado em 21 de abril de 2010.

[3] BERMAN. Op. cit. p. 12-14

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