quarta-feira, setembro 29, 2010

Debate – sem nenhum caráter

Em período eleitoral notamos com maior nitidez a calamidade a que estamos submetidos. É o tempo em que os vampiros da política saem do túmulo das assembleias legislativas – câmara legislativa no caso do Distrito Federal (DF) - e dos castelos assombrados do executivo a fim de pedir votos. O intento é claro: dar continuidade à selvageria, ao ataque indiscriminado à coisa pública, à parasitagem ao sangue do povo.

Escrevo tais palavras, pois fui invadido por um profundo asco após assistir ao debate promovido pela Rede Globo com os candidatos ao governo do DF na noite de ontem, 28 de setembro de 2010. Ainda sinto os ecos aflitivos das falas postiças dos candidatos – Agnelo Quiroz (PT), Eduardo Brandão (PV), Wesliam? Roriz (PSC), que assumiu o governo no lugar do marido Joaquim Roriz, numa manobra desavergonhada[1]. Certamente vivemos uma séria crise política em nosso país. O que fica evidente nesses debates, supostamente democráticos, é a falta de inteligência, o estrangulamento das ideias e a leviandade resultante da mentira.

A palavra debate traz uma carga semântica que não se aplica à situação em comento. Não tivemos um debate. Debate sugere a discussão de um tema; a abordagem ou o desvelamento de um aspecto por duas ou mais pessoas. O que vi não foi um debate. Foi, sim, uma mediocrização sistemática, a materialização das venalidades. Ou seja, quem é quem no jogo político. Como cada patota, que muda apenas de cor, vai se apropriar do mesmo objeto: a galinha dos ovos de ouro – as verbas polpudas do Estado. E como distribuir os despojos após a lide eleitoral entre os marqueteiros, o empresariado por contratos lucrativos; com os setores da mídia, com as empreiteiras, com os políticos fisiológicos arrojados por uma síndrome fáustica – de quem vendeu a alma ao diabo.

Mário de Andrade retratou com brilhantismo a nossa saga em Macunaíma - o herói sem nenhum caráter, um estudo profundo de nossa etnicidade. Nascemos mudos. Fomos concebidos “no fundo mato-virgem”. Somos filhos do “medo da morte”. Em momentos como estes, a história de “nosso parto histórico” vem à tona. Não fomos concebidos em berço esplêndido. As intenções de nossa metrópole não era fazer do Brasil uma nação independente, civilizada, com valores nobres, como se deu na relação Inglaterra/Estados Unidos. Desde muito cedo fomos ensinados a sermos espertos. A nos apropriarmos pelo parasitismo das coisas alheias. Aprendemos a ver no outro ou no Estado a figura de um inimigo ou uma potencial mina de tesouros a serem saqueados. Crescemos com uma alma de pivete. Nossas propensões são vis. O nível de baixeza é alto.

Uma abastada minoria herdeira da Casa Grande continua a explorar uma maioria alienada. Essa minoria continua secularmente agarrada à jugular do país, bebendo-lhe o sangue. Para não perderem as rédeas a que estão acostumados, contam as piores mentiras ao povo. Gaguejam, abraçam, direcionam sorrisos maquiados de complacência.

Debates como os de ontem, apenas evidenciam a barbárie na qual estamos mergulhados. Os dias são de penúria. Exigem um protesto sábio. O melhor protesto é saber votar. A propalada democracia a qual temos que defender não é virtuosa. Esta democracia é o direito de alguns privilegiados serem e outros não serem. Emplastos não curam oncoses. A classe política brasileira, filhos da piveteria histórica, não debate, nos abate.

Data: quarta-feira, 29 de setembro de 2010, 18:29:55.


[1] Toninho, candidato pelo PSOL, também participou do debate.

terça-feira, setembro 28, 2010

Para que serve a literatura

Conta-se que no final da Segunda Guerra Mundial, quando chegaram num campo de concentração que contava com inúmeros prisioneiros inocentes, os soldados de uma das divisões das tropas aliadas surpreenderam alguns dos seus inimigos nazistas sentados e calmamente lendo uma das obras mais importantes e humanistas da literatura universal: nada menos do que Fausto, de Goethe.

A leitura daquele livro não tornava seus leitores menos culpados pelo horror que estava sendo cometido por eles próprios. Também não impedia que cada um daqueles soldados literatos cumprissem com suas atribuições de prender, torturar e matar seus semelhantes como nenhum outro animal além do humano é capaz de fazer.

Nada mais desconfortante para os defensores da literatura como forma de humanização do que a idéia de que o homem pode combinar a satisfação estética sentida após a leitura de uma peça de Shakespeare com uma prática anti-humana, perversa e cruel.

Apesar disso, como nos ensina o crítico literário Antônio Cândido, a literatura contribui para que se confirmem em cada um de nós “…aqueles traços que reputamos essenciais, como o exercício da reflexão, a aquisição do saber, a boa disposição para com o próximo, o afinamento das emoções, a capacidade de penetrar nos problemas da vida, o senso da beleza, a percepção da complexidade do mundo e dos seres, o cultivo do humor”.

A literatura serve, por certo, para dar prazer e satisfação para todos, mas só os bons levam a sério suas mensagens humanistas: os demais permanecem indiferentes. Bons livros não convencem uma pessoa má a melhorar. Pode-se supor que alguém que tenha sido pago para assassinar, na sua infância tenha sido um leitor entusiasmado de Monteiro Lobato.

As mensagens humanistas dos livros só atingem as pessoas predispostas para a sua recepção. É provável que os romancistas estejam condenados a “pregar aos convertidos”, a convencer aos convencidos, como tinha o costume de escrever o sociólogo Pierre Bourdieu.

Mesmo assim, um pioneiro investigador dos segredos humanos como Freud não dispensava os conhecimentos propiciados pela literatura. Para o fundador da psicanálise “…os poetas e romancistas são aliados preciosos, e seu testemunho deve ser tido em alta estima pois eles conhecem, entre o céu e a terra, muitas coisas com as quais nossa sabedoria escolar não poderia sequer sonhar. Eles são para nós, que não passamos de homens vulgares, mestres no conhecimento da alma, pois se banham em fontes que ainda não se tornaram acessíveis à ciência.”

Com tudo isso, não deixo de pensar que após a leitura de um livro como Levantado do Chão, de Saramago, que descreve o sofrimento e a luta dos trabalhadores rurais portugueses, nenhum dirigente do Fundo Monetário Internacional deixará de impor aos países devedores as medidas econômicas que levam a fome e o sofrimento para milhões de pessoas em todo o mundo.

Talvez a literatura sirva mesmo é para convencer os convencidos a permanecerem contra todas as formas de opressão do humano. Se servem para tanto, isso já é um grande bem, pois, embora aqueles que não praticam o bem continuem difundindo o mal, não conseguirão jamais impor a idéia de que ser humano é ser apenas como são.

Por Walter Praxedes - Doutor em Educação pela USP e professor do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Estadual de Maringá. Publicado na REA nº 15, agosto de 2002, disponível em http://www.espacoacademico.com.br/015/15wlap.htm

Extraído DAQUI

Justificar

quinta-feira, setembro 23, 2010

Primavera, mas não ainda

Hoje, 23 de setembro de 2010, teve início a primavera. É uma das estações que mais admiro – juntamente com o outono. A primavera é a estação do cio da natureza. É a estação das flores. Do colorido multifacetado. Das aquarelas alegres - vermelhas, roxas, brancas, amarelas. É como se a natureza fosse um daqueles paraísos descritos nos quadros de Bosch.

Aqui em Brasília, especificamente, surgem os ipês – roxos, amarelos, brancos. Os cachos generosos revelam uma beleza frágil e efêmera. Sempre enxerguei nos ipês uma metáfora da candura da beleza. Como dizia Nietzsche, ‘a beleza não é para todos’. Ela é cândida, acanhada, habitada por pudores virginais. Os ipês enunciam essa característica. Passam o resto do ano escondidos, incógnitos, no meio das demais árvores, mas de uma hora para outra, em pouco mais de uma semana (quando muito), poetizam o esplendor que alegra os olhos da alma. Ficam expostas com suas cores vivas, destacadas, como que a dizerem: “Olhem para mim!”. Mais algumas semanas e surgirão os flamboyants com suas cabeleiras inflamadas, incendiárias. Vermelhos, imponentes, a encherem os olhos de quem vê.
Mas, Brasília por estes dias tornou-se num grande deserto. Já se passaram 119 dias sem chover. A primavera não surgiu trazendo o canto dos pássaros, como em “As Quatro Estações” de Vivaldi. Ela trouxe mais um dia quente, cheio de vapores mornos. A gramínea da cidade crestou. O céu é um cobertor cinza, com cores em tons ensangüentados ao final do dia. Faz lembrar o céu pintado na tela “O grito” do norueguês Edvard Munch. E, de fato, Brasília grita, agoniza, com sua condição de insuportabilidade climática.
A Capital Federal transformou-se numa versão habitada do Deserto do Atacama. Nós, animais humanos, revelamos nossa fragilidade. A pele abre sucos quando não untada. Os lábios sofrem com a constância do tempo seco. O sol queima implacavelmente como se não houvesse atmosfera para filtrar a radiação. Corremos de um lado para o outro como bichos assustados, mas, somos azorragados pelo nosso implacável algoz.

Hoje, ao receber a notícia da chegada de minha musa, fiquei com um imenso cenho de melancolia. Os lábios encolheram. Os olhos enxergam apenas uma paisagem cinza, manchada pela poeira. Não há flores nos jardins. As árvores estão nuas, despojadas, mostrando galhos pardacentos e tortos. Não há zumbido de insetos. Eu não ouvi “As Quatro Estações” de Vivaldi. Lembro-me apenas de “O grito” de Munch. Não há poesia no mundo – nem em mim.

Data: 23 de setembro de 2010, 20:00 hs.

terça-feira, setembro 14, 2010

Por que lemos literatura?

Lemos porque queremos entender a realidade de outro ponto de vista ou porque precisamos fugir dela por um momento para voltar mais lúcidos. Lemos livros de ficção porque queremos saber como os outros vivem, enfrentam os problemas, como vencem ou como sucumbem. Lemos porque queremos ver refletido nosso eu no mundo dos personagens. A força do teatro é o arroubamento emocional, a participação grupal – que alimente, além do instinto estético, o instinto gregário do ser humano. Os espectadores estão na mesma sala assistindo à peça.

Ao contrário do teatro, a leitura é atividade solitária. Podemos falar sobre um livro com um amigo, familiar ou colega de trabalho. Mas lemos e nos emocionamos sozinhos. Contudo, um bom livro nos ajuda a suportar melhor a solidão. Por isso, os livros foram chamados de “bons amigos”. Estão sempre esperando os leitores. No teatro, os personagens estão diante do espectador, podemos olhar os personagens. A leitura, ao contrário, coloca em jogo a imaginação do leitor. No teatro as reações de qualquer pessoa da plateia podem ser observadas pelos outros.

A leitura dá lugar a expressões – como rir, chorar ? que muitas vezes, a pessoa oculta em público. Tanto a leitura de obras ficcionais quanto o teatro têm função catártica, mas as estradas são diferentes. No final de uma peça, o público aplaude. Ao terminamos de ler um livro também podemos sentir desejos de aplaudir ou de criticar. Mas aplaudimos ou criticamos mentalmente.
Também podemos escrever nossas impressões ou procurar outras pessoas para fazer comentários ou trocar opiniões. Por isso é tão importante a criação de clubes de leitura. O ser humano é gregário e precisa de outros para dialogar e crescer. Podemos entender que o esforço do escritor é ciclópeo. Ele precisa encontrar caminhos para chegar à mente do leitor e despertar o interesse. O importante é cultivar o hábito da leitura seja como fonte de informações, como caminho de autoconhecimento ou simples entretenimento.

Em síntese, lemos literatura para interpretar o mundo, para esquadrinhar a alma humana, para conhecer, para compreender, para sair do dia a dia rotineiro. Ítalo Calvino, Julio Cortázar e outros aconselham ler os clássicos. Os clássicos passam valores enquanto desenvolvem histórias.O escritor Jorge Luiz Borges dizia que ler deve ser um ato prazeroso. Ler é vital para nosso desenvolvimento como seres humanos.

Por que escrevemos?

A criação literária é como a frágua de Vulcano. Escrever nunca é morno. Escrever é angústia, raiva, incêndio, esperança, fingimento e desespero. É criar castelos de areia com palavras e temer a ventania. Escrever é emoção primitiva, instinto de autoexpressão. É gritar, usando corretamente a linguagem. É, então, grito medido, sofisticado – chamo isso de fingimento – pois é grito visceral, mas contido. Educado para expressar-se através de figuras estilísticas, discursos e silêncios, focos narrativos e personagens.

Escrever é colocar rédea nos cavalos da emoção. Civilizar a cólera. Contê-la para não expor em demasia esse eu paradoxal que deseja expressar-se e ora aparece, ora volta-se sobre si mesmo. Escrever é, às vezes, um ato de coragem e outras, um ato de estupidez. Mas sempre uma busca de catarse.

O texto é o produto do transbordar de um eu – Netuno, escondido nas águas do inconsciente. E é esse eu desconhecido que brinca com as palavras... deleita-se com as próprias histórias e incentiva o leitor a navegar no tempestuoso mar da literatura.

Por Isabel Furini

Extraído DAQUI

quarta-feira, setembro 08, 2010

Comentário de uma carta de Mário de Andrade a Fernando Sabino

Sou um grande admirador da genialidade de Mário de Andrade. Acredito que ele tenha sido um dos maiores brasileiros que já passaram por esse país cheio de dificuldades e incoerências. Hoje pela manhã, li alguns fragmentos de uma carta que ele escreveu ao escritor mineiro Fernando Sabino - à época - um aprendiz literário. O texto me fez lembrar Rainer Maria Rilke, no livro Cartas a um jovem Poeta. Passagem magnífica do livro de Rilke é aquela em que ele fala da necessidade daquele que escreve: "Ninguém pode dar-lhe conselhos nem ajudá-lo - ninguém! Só existe um caminho: penetre em si mesmo e procure a necessidade que o faz escrever. Observe se essa necessidade tem raízes nas profundezas do seu coração. Confesse à sua alma: 'Morreria, se não me fosse permitido escrever?'"

Voltando ao escritor modernista. Os dois (Mário e Fernando) trocaram cartas. Nas correspondências, Mário deu instruções de como Sabino deveria proceder para se tornar um arguto pensador e, se possível, um grande escritor. Em carta de 21 de março de 1942, Mário escreveu mais ou menos assim para Fernando Sabino:

"Você me pede que lhe aconselhe algumas leituras... Isso é difícil como o diabo... Você precisa de uma cultura literária geral, que não deve ser feita duma vez só, mas dentro de um programa que pode durar ponhamos seis anos... Ler os brasileiros... Meu Deus! Aqui também entra a noção da dignidade do indivíduo. Me parece um pouco canalha a gente conhecer Anatole France e não ter lido as 'Cartas Chilenas'; falar de Proust e não falar de Gregório de Matos ou Cruz e Souza. É mais uma questão humana de proximidade. E, já falei, creio, você precisa ler muito Machado de Assis, mas ler como reler, roubando ele, plagiando ele, não no estilo nem no espírito mas na delicadeza de sentimento.

Machado de Assis não deve ser para você uma companheiro de vida, mas apenas um tesouro onde você vai roubar. Roube dele tudo quanto possa ser útil a você, jogando o resto fora. Mas sempre não esquecendo que você pode roubar errado. O problema é delicadíssimo. Veja o problema do estilo: se você escrever, chegar a escrever no estilo de Machado de Assis você si esculhamba por completo, si perde. Mas você precisa chegar a um estilo que fosse em você e em 1942 o correspondente do que foi o estilo de Machado de Assis pro tempo dele.

(...)

As leituras imprescindíveis não podem ser devoradas. E fazendo uma mistura bem equilibrada de tudo, acho que você consegue uma boa cultura literária. E não é possível um intelectual sem filosofia, sem orientação social. (O destaque é meu).

Achei a frase em destaque extraordinária. Acredito que a semântica empregada por Mário na frase seja um dos principais problemas do nosso tempo. O intelectual da atualidade vive em torre de marfim sem refletir com engajamento o mundo. Claro, não reflitamos com ideias curtas algo com tamanha compelxidade.

Leia os textos do Mário. Necessitamos de outros "mários".

*Ler outra carta de Mário de Andrade a Fernando Sabino - AQUI
* Exclente resenha sobre as cartas de Mário a Fernando, reeditadas em livro pela Editora Record AQUI

sábado, setembro 04, 2010

Perguntas de um operário que lê

Quem construiu Tebas, a das sete portas?
Nos livros vem o nome dos reis,
Mas foram os reis que transportaram as pedras?
Babilònia, tantas vezes destruida,
Quem outras tantas a reconstruiu? Em que casas
Da Lima Dourada moravam seus obreiros?
No dia em que ficou pronta a Muralha da China para onde
Foram os seus pedreiros? A grande Roma
Está cheia de arcos de triunfo. Quem os ergueu? Sobre quem
Triunfaram os Césares? A tão cantada Bizâncio
Sò tinha palácios
Para os seus habitantes? Até a legendária Atlântida
Na noite em que o mar a engoliu
Viu afogados gritar por seus escravos.

O jovem Alexandre conquistou as Indias
Sòzinho?
César venceu os gauleses.
Nem sequer tinha um cozinheiro ao seu serviço?
Quando a sua armada se afundou Filipe de Espanha
Chorou. E ninguém mais?
Frederico II ganhou a guerra dos sete anos
Quem mais a ganhou?

Em cada página uma vitòria.
Quem cozinhava os festins?
Em cada década um grande homem.
Quem pagava as despesas?

Tantas histórias
Quantas perguntas



Por Bertold Brecht

Foto 1 - Bertolt Brecht.

Foto 2 - Trabalhador negro em frente ao Congresso Nacional, sede do Legislativo Federal. É a torre que representa uma das "pernas" do poder da República. É a metáfora do progresso, da pujança arquitetônica. Mas, quem construiu tal torre com suor e sangue? Brasília completou 50 anos. As honras foram direcionadas a JK. Todavia, quem fez tudo isso?

Texto "Brasília 50 anos" AQUI

Poema Extraído do livro Antologia Poética, Elo Editora, Rio de Janeiro, 1983, p. 31