sexta-feira, julho 15, 2011

A festa de Babette e a poética da alegria

Ontem à noite eu tive uma experiência curiosa. Vi ao filme A festa de Babette. Trata-se de um filme dinamarquês do final da década de oitenta. Era um projeto antigo, mas que somente ontem eu consegui realizá-lo. Resultado: a experiência foi melhor do que toda expectativa que alimentei durante esse tempo. É como naquela frase de O Pequeno Príncipe de Saint-Exupéry: "Quando você diz que vem às 4 da tarde, eu começo a me alegrar desde às 3" - estou citando a frase de cabeça.

O filme é uma experiência estética prazerosa. Sua mensagem é uma metáfora cristã. Mas nem por isso impede que aqueles que são alheios à fé cristã não possam se alegrar com ele. O livro de Apocalipse diz que um dia o Cordeiro, Cristo, sentar-se-á com todos os povos em torno de uma mesa. Todos serão convidados para aquilo que a Bíblia chama de "As Bodas do Cordeiro". Diante da mesa as diferenças serão suplantadas. Todos os povos, etnias e nações falarão a mesma língua. Talvez isso queira significar o elemento de igualdade, como sacramento da fé. Afinal, a religião em grande parte é um sonho da mente humana. Uma semente de esperança que é lançada no chão da história. Viver num mundo de desigualdades e injustiças levou os homens a formularem esquemas espirituais, sonhos ideais num outro mundo.

A festa de Babette celebra a possibilidade da igualdade em torno da mesa. Num pequeno vilarejo, em pleno século XIX, as fofocas, intrigas e desentendimentos grassam por todos os lados. Mas, em determinado dia, Babette a cozinheira que possui poderes mágicos, a artista que é talentosa consegue criar beleza. Sua imaginação é cheia de sabores. Esses sabores antes de serem transportados para os pratos que são preparados, já existem em sua mente. Babette é uma alquimista que metamorfoseia possibilidades com o espelho de sua consciência. Edifica pratos que são obras de arte. Todos estão à mesa. Sentados. Todos os convivas já são avançados em idade. Calejados pela vida. Envergados pelo peso da prostração física. Mas os sentidos, portais que nos fazem ver, experimentar, sentir o mundo, ainda estão vivos. E é por essa via dimensional que Babette inocula o sabor da poesia. Começam a comer e os seus semblantes vão sendo iluminados. Os olhares vão sendo transformados. Vinhos, iguarias; a estética dos pratos são um convite ao prazer. De repente, aquilo que a religião já não era capaz de fazer é feito pelo sabor da culinária.

Ao final, uma cena belíssima enche os olhos. Os velhinhos dão as mãos em dançam uma ciranda como se fossem crianças. Celebram na noite escura, de céu estrelado os efeitos do prazer. Num dos últimos diálogos do filme, Babette diz: "Um artista jamais será pobre". Ela entregara os seus dez mil francos para preparar o jantar. Fora rica, mas decidiu ficar pobre pelo simples prazer da poética da cozinha que pode despertar gestos adormecidos. Assim, como na mensagem cristã, que diz que Cristo entregou tudo o que possuía para que todos fossem enriquecidos e experimentassem a graça (eis aí outra similitude), a alegria de Babette é costurar acertos, transformar sorrisos, nutrir de esperança e gratidão o coração dos homens.

Abaixo segue um pequeno trecho de uma crônica escrita por Rubem Alves para o Correio Popular de Canpinas. Chama-se A festa de Babette:

(...) Quem pensa que a comida só faz matar a fome está redondamente enganado. Comer é muito perigoso. Porque quem cozinha é parente próximo das bruxas e dos magos. Cozinhar é feitiçaria, alquimia. E comer é ser enfeitiçado. Sabia disso Babette, artista que conhecia os segredos de produzir alegria pela comida. Ela sabia que, depois de comer, as pessoas não permanecem as mesmas. Coisas mágicas acontecem. E desconfiavam disso os endurecidos moradores daquela aldeola, que tinham medo de comer do banquete que Babette lhes preparara. Achavam que ela era uma bruxa e que o banquete era um ritual de feitiçaria. No que eles estavam certos. Que era feitiçaria, era mesmo. Só que não do tipo que eles imaginavam. Achavam que Babette iria por suas almas a perder. Não iriam para o céu. De fato, a feitiçaria aconteceu: sopa de tartaruga, cailles au sarcophage, vinhos maravilhosos, o prazer amaciando os sentimentos e pensamentos, as durezas e rugas do corpo sendo alisadas pelo paladar, as máscaras caindo, os rostos endurecidos ficando bonitos pelo riso, in vino veritas... Está tudo no filme A Festa de Babette. Terminado o banquete, já na rua, eles se dão as mãos numa grande roda e cantam como crianças... Perceberam, de repente, que o céu não se encontra depois que se morre. Ele acontece em raros momentos de magia e encantamento, quando a máscara-armadura que cobre o nosso rosto cai e nos tornamos crianças de novo. Bom seria se a magia da Festa de Babette pudesse ser repetida..."

Por Carlos Antônio M. R. Albuquerque

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