quarta-feira, dezembro 21, 2011

Anticristo, de Lars von Trier

Na última segunda-feira, fui à locadora aqui perto de casa e loquei Anticristo de Lars von Trier. Relutei ao máximo em vê-lo. Adiei o quanto pude a tarefa de assistir à película. Não gosto de filmes de terror nem de suspense. O estresse proporcionado por aquelas cenas tensas; as surpresas que são maquinalmente feitas para chocar o telespectador para mim são cacetes; a taquicardia, ao meu modo de ver, é desnecessária. Mas o filme de Trier me assediou por dois dias. Até que na manhã de hoje, eu resolvi vê-lo em meu notebook. Quis evitar maiores dissabores. E que surpresa me esperava. Descobri que o filme não é um terror. Poderia classicá-lo como um drama com fortes doses de suspense. Mas há apenas a utilização deste último artíficio para causar os efeitos possíveis, desejados pelo diretor.

O filme proporciona uma experiência tão densa que, após tê-lo visto, tenta-se reorganizar o caos mental, a experiência dorida a qual se enfrentou. De certa forma, ainda estou tentando ordenar os vários elementos, ou seja, cada peça que constitui a obra. Trier prende o telespectador, machuca-o, fere-o com cenas de violência, de uma eroticidade acachapante, de uma uma plasticidade quase que desnecessária. Mas como disse, nada no filme é desnecessário.

A príncipio, a história está colocada entre dois espaços, conectados a um "Prólogo" e um "Epílogo", momentos da mais intensa beleza surgida nos últimos tempos no cinema. O "Prólogo" e o "Epílogo" representam os dois espaços lumisos do filme. No intervalo desses dois espaços, está o escuro, o agonizante, o desespero e a depressão (“Luto", "Dor (Caos Reina)", "Desespero (Genocídio)" e "Os Três Mendigos"). Os cinco minutos iniciais do filme é de uma beleza e pureza enlevantes. O casal, representado pelo extraordinário Willem Dafoe e pela extraordinária Charlotte Gainsbourg, está fazendo sexo no banheiro. Trier busca ser realista. Mostra a genitália dos amantes - o pênis penetrando a vagina - talvez para sugerir o natural, o primitivo, a união profunda do homem e da mulher. As cenas se sucedem em câmera lenta. Tudo em preto e branco. Uma ária de Handel (Lascia Ch’io Pianga, com interpretação da soprano norueguesa Tuva Semmingsen) embala as emoções. A água do chuveiro cai. Fora da casa onde o casal está, a névoa despenca do céu em flocos suaves, como se fosse uma farinha celestial. O pequeno filho do casal sai do berço e ver a mãe e o pai realizando o gesto amoroso. Vira as costas. Faz uma cadeira de apoio e sobe até a janela. Brinca com a neve. E despenca. A queda parece ser uma poesia. Os pais não veem a queda do filho. Uma cena do filme, mais à frente, sugere que a mãe viu o filho caindo. Mas nada no filme de Trier é demasiadamente lógico.

Do evento trágico da morte do filho, desencadea-se o sofrimento para o casal. A mãe se ver aturdida pela dor e pelo desespero. É acometida por distúrbios psicológicos. E aqui começa de fato a viagem bíblica e psicanalítica proporcionada pela obra. Os personagens não possuem nome. Estão presente no filme a força do homem (a inteligência), contra o impulso da mulher (a demência). O marido mostra-se no filme como a energia racional, capaz de pensar os processos, de organizar o caos. É quem conduz, do ponto de vista da psicanálise, o tratamento psicológico da esposa. E é curioso o fato do casal se refugiar no interior de uma cabana chamada Éden, no coração de uma floresta. Éden segundo a Bíblia significa "paraíso" ou "jardim das delícias" e foi o local criado por Deus para que nele morasse e vivesse o primeiro casal humano - Adão e Eva. É somente após a queda, acepção bíblica, que a mulher recebe o nome de Eva. Ou seja, antes da queda ela não possuía nome. Já o homem é considerado "o pai de todos os homens" - Adão, do hebraico "adamar" ou "aquele que foi tirado da terra".

Éden, no filme de Trier, é o lugar da tentativa de cura, da busca pelas lembranças prazerosas e remidoras. Mas é em meio à natureza que os medos e reações mais intempestivas da esposa se voluntarizam. Cena curiosa e instigante é aquela que a esposa escuta um choro de uma criança. Ela procura em toda parte, mas não encontra nenhum personagem para protagonizar aquele vagido. De repente, a câmeta foca a netureza. A imensidão é mostrada. É a pópria natureza que chora. Uma agonia cósmica, metafísica, se insinua. A dor, então, é uma faceta natural do cosmos. Uma frase enunciada pelo marido no início do filme parece corroborar com esta ideia: "O sofrimento não é uma doença. É uma reação saudável e natural".

Na floresta, em meio à natureza, os instintos mais tenebrosos da esposa se avivam. Ela um ser frágil, vai adquirindo uma energia animalesca, pornográfica. Sua ânsia por sexo é um retrato curioso. Numa cena, ela atinge o falo do esposo com um objeto e este, com a dor, acaba desmaiando. E o que se sucede até o final é de uma audácia incrível. Numa cena de demasiada crueza, a esposa mutila o próprio clítoris com uma tesoura e tenta matar o marido. O marido como para se libertar da pulsão de destruição da esposa, acaba por enforcá-la e matá-la. Esse ato representa a liberdade. Ele fica livre da dor, da agonia, do selvagem que habita o feminino.

No "Prólogo", após ter matado a esposa: ele caminha cambaleante. Alimenta-se de frutas silvestres. É a harmonia com a natureza. Enquanto caminha, dezenas de fêmeas vêm ao seu encontro. Sobem o monte. O que seria esse monte? O Gólgota? - lugar da crucificação de Cristo. Mas essas mulheres não possuem rosto. E de repente, a película termina e por dois segundos, num fundo escuro, aparecem os dizeres: "Dedicado a Andrei Tarkovski (1932 a 1986)”. Tarkovski, nascido na antiga Uniãpo Soviética, foi um dos maiores diretores da história.

Lars von Trier tem gerado as mais distintas reações com os seus filmes. Polemista, "arengueiro", como se diz no Nordeste do Brasil, o diretor dimarquês tem arrancado uma beleza descomunal de suas obras. Os filmes de Trier possuem o poder de nos fazer pensar por dias. É daquelas obras que encerram efeitos densos. Deixando de lado maiores polêmicas quanto às suas afirmações sobre posicionamento político ou postura pessoal (o diretor se intitulou como o melhor do mundo e, em outro momento, disse admirar Hitler), Trier é um dos nomes mais importantes da arte cinematográfica da atualidade. Incensado por uns, odiado por outros, o diretor alimenta aquele tipo de sentimento que reside em torno dos grandes artistas.

Nenhum comentário: