quarta-feira, outubro 31, 2012

31 de Outubro, Dia da Reforma - uma reflexão

Hoje a cristande protestante (principalmente os protestantes históricos) comemora(m) o Dia da Reforma. Segundo certo entendimento, foi nesse dia que Lutero pubilicou as suas 95 teses e teve início o movimento que culminaria na cisão com a Igreja Católica. No dia de hoje, pude perceber algumas manifestações a favor dessa data. E de fato, a Reforma se constituiu em um movimento complexo às quais algumas forças e influências estiveram associados. Todavia, percebo que a principal interpretação para o nascimento e a afirmação da Reforma aconteça por parte desses citados fiéis, unicamente, pelo viés moral e teológico. 

Quem assim o faz, desconsidera os tensionamentos das eras; desconsidera que não existe romantismos no fluir dos fatos históricos. História é luta. É a força do mais forte que se sobrepõe à fraqueza daqueles que não podem prevalecer. É um jogo de oportunismos. Olhando por esse ponto de vista, não podemos deixar de louvar uma afirmação de Marx: "o mundo religioso é apenas o reflexo do mundo real". Com isso, Marx está dizendo que a religião não é um evento à parte, desligado do mundo. As forças de interesse econômico também estão dentro dos movimentos religiosos. 

Ou como diz Corr. Barbagallo, historiador italiano, citado por Jean Delumeau, em seu extraordinário livro Nascimento e Afirmação da Reforma:

"Considera-se geralmente a Reforma como um processo de conversão religiosa de uma parte da Europa... Eu não consegui compreender como pode se pensar que multidões de pessoas, num ou noutro país, foram capazes de se interessar pela subtilezas teológicas de um Lutero, de um Zwinglio, de um Melanchton o ude um Ecolampado, que mal são entendidos pelos profissionais da teologia... Considerei a Reforma, não como um fenômeno substancialmente teológico, mas como expressão, aspecto, disfarce religioso da crise que cada país da Europa atravessa na segunda metade do século XVI, e como sintoma do mal-estar universal". 

A Reforma significou, do ponto de vista crítico, o primeiro golpe aplicado pela burguesia, já que a Igreja Católica defendia um modus operandis feudal. Não era interessante para a burguesia florescente ter uma sistema que coibia a livre iniciativa e o lucro. Assim, a burguesia viu na Reforma uma possobilidade de fortalecer as suas pretensões e tirar da mãos da Igreja de Roma o poder que lhe era peculiar por mais de, naquele momento, mil anos. 

Achar que a Reforma foi fruto do ato simbólico de Lutero afixar as teses na Catedral de Wintenberg é um ato simplista. A Reforma é o resultado de um jogo econômico. Afinal, outras tantas tentativas aconteceram durante a Idade Média, mas nem uma se consumou por não ter o grupo econômico florescente ao seu lado. Afinal, Huss tentou, os Wycliffe tentou, Savonarolla tentou e tantos outros iniciaram movimentos reformistas e acabaram sendo silenciados pelo rolo compressor do poder temporal da Igreja Romana. E questionamos: por que Lutero supostamente conseguiu? Ora, porque ele possuía a força dos príncipes (representantes dos interesses contrários à Igreja) alemães a seu favor. Mais uma vez: não há romantismos na História. A história segue um fluxo dialético. O tensionamento dos fatos leva à fecundação de uma outra realidade, mas sem excluir os elementos que deram origem aos tensionamentos.

O Protestantismo Reformado arroga para si 'o espírito da liberdade, da democracia, da modernidade e do progresso' em oposição à paralisia da Igreja Católica. Todavia, esses mesmos ideais são os ideais da burguesia. O golpe de misericórdia da burguesia viria com as Revoluções Liberais - principalmente, a Francesa. Mas, o embrião foi fecundado na Reforma.  Recorrentemente ouço um discurso contraditório por parte dos crentes protestantes. Afirmam eles que vivemos um período humanista, modernista ou até pós-moderno. Todavia, esse movimento foi fecundado no século XVI, pois os valores humanistas da modernidade tiveram início com a Reforma Protestante. De certa forma, a Reforma é um movimento estranho, pois naquilo que buscava fazer, que era trazer os crentes para uma nova consciência, acabou "dessacralizando o mundo". O individualismo, o secularismo e a ideia daquilo que é privativo teve início nesse momento da história. 

Penso que no dia 31 não deveria se comemorar o Dia da Reforma, mas sim da morte do espírito medieval e o nascimento daquilo que conhecemos como - ideal de liberdade, ciência, progresso, surgimento dos estados nacionais, individualismo, ou seja, um modo de ser. A Reforma é, em outras palavras, 'o início da incredulidade moderna e chave para se compreenderem todos os fenômenos monstruosos dos tempos modernos'.

 O que a Reforma inaugurou não foi uma nova religião, mas uma forma nova de se gerenciar e se relacionar com a história. Nesse sentido, a afirmação de Marx é mais que certeira.

segunda-feira, outubro 29, 2012

Motivos para alegria

Quando cheguei do trabalho hoje cedo, fui abordado pelo porteiro do prédio onde moro. 
- Há uma encomenda para o senhor! - disse ele sorridente.
Não fiz perguntas. Vi o pacote azul com o nome da Livraria Cultura e entendi do que se tratava. Era a biografia sobre Graciliano Ramos, escrita por Dênis Moraes, que comprei na última sexta-feira pela internet. "Como os caras são ágeis" - pensei. Agora, os lábios faceiros exultam num contentamento.  Pego e livro e sinto aquele cheiro excitante de páginas intocadas e isso é um perfume delicado para a minha alma. Tenho motivos para alegria no feriado da próxima sexta-feira, dia 2. Vou para o interior de Goiás e lá poderei me refestelar com sorvete barato nas tardes quentes e a companhia do "Velho Graça".

sábado, outubro 27, 2012

Graciliano Ramos - 120 anos de literatura

Hoje, o Brasil comemora o nascimento de um dos seus filhos mais ilustres, Graciliano Ramos, o célebre escritor alagoano. O velho Graça (como era conhecido pelos mais íntimos) nasceu em 27 de outubro de 1892, no munícipio de Quebrangulo. Não é minha intenção falar da vida desse escritor fantástico que abriu as portas do mundo da literatura para mim. Quero apenas externalizar a minha devoção ao texto de Graciliano Ramos. 

No final do Ensino Médio, eu estava estudando o Modernismo Brasileiro. Entrei em contato com trechos de livros do escritor alagoano. Li trechos de São Bernardo e de Vidas Secas, principalmente. Acabei seduzido por aquela linguagem econômica, mas profundamente precisa; cortante como uma navalha. Fui à biblioteca da escola. E lá acabei me deparando com os livros as quais eu conhecia somente algumas passagens. Iniciei a leitura de Vidas Secas. Achei aquilo sério demais. Graciliano era capaz de universalizar os dramas humanos. Havia ali mais do que simplesmente um relato regional. Um mundo polifônico estava contido naquela obra. A caminhada cega da  família de retirantes que se arrasta por uma paisagem que acaba se alastrando no interior de cada personagem me impressionou. Depois de algumas leituras acabei percebendo que o mundo interior das personagens é resultado de uma transformação da consciência, como diria Marx em sua A Ideologia Alemã. A consciência do mundo se inseriu na consciência das personagens, Graciliano não queria apenas falar de seca, de privação. Ele queria fazer psicologia com a alma humana.


Os personagens de Vidas Secas são privados da palavra - e a palavra para o escritor possuía uma importância capital. Encontramos em outros textos escritos por ele uma espécie de explicação para o seu ofício. Na crônica "As lavadeiras", ele firma algo emblemático. Diz ele que 'a palavra foi feita para dizer e não deveria brilhar como um ouro falso'. Em seu extraordinário Infância, que conheci mais tarde, encontramos a seguinte afirmação: "Na escuridão percebi o valor enorme das palavras". É por causa dessa preocupação exarcebada com a palavra, que percebemos os seus livros como mosaicos. Não há execessos. Apenas o exato. Uma peça fora da estrutura derruba o restante do todo.

E é justamente munido dessa preocupação, que o velho Graça constrói aquele que um dos maiores romances já escritos em toda a história da tradição literária brasileira. A palavra que era a sua preocupação, torna-se um enigma para as personagens. Cena curiosa é aquela em que a família vai a uma festa de natal e os meninos ficam impressionados com a quantidade de coisas que havia ali. Ficaram bestificados, tentando entender se era possível todas as aquelas coisas terem nomes para que as pessoas dominassem. Como era possível a um ser humano dominar tantos nomes? O mutismo ou a realidade da não-palavra das personagens é um dos elementos mais impressionantes do livro. A palavra que é a porta de entrada para o mundo humano é negada aos personagens. Se as personagens são privadas da palavra, não é necessário  dizer que  elas são privadas de serem, de se comunicarem, de se projetarem; de se afirmarem enquanto sujeitos históricos; são privadas da possibilidade de enfrentar o mundo, de se humanizarem; de reivindicarem direitos perante o Estado (personificado pelo "Soldado Amarelo" que era, no fundo, alguém espoliado de direitos e que se ancorava apenas na farda que dava-lhe uma consciência de poder). 

Mais tarde li São Bernardo e aquilo me deixou com a impressão de que se tratava de uma obra filósofica sobre a natureza humana - novamente, Graciliano universaliza o regional. Os livros de José Lins do Régo ou Jorge Amado também trazem um regionalismo. Uma narrativa memorialística. Eivada de realismo. Mas o que difere Graciliano Ramos desses dois escritores é que ele trabalha perspectivas que amplificam valores por intermédio das personagens. Paulo Honório é uma figura que me fez pensar no quanto a natureza humana pode ser desmantelada pelo poder. Nele notamos a vontade-de-poder nietzscheana, mas que acaba por induzi-lo ao niilismo completo. O desejo fáustico de ser grande, de conquistar o mundo o transforma em monstro. Tudo ele transforma em algo a ser conquistado. Até mesmo Madalena, que acaba se suicidando. Paulo Honório acaba solitário. Com a alma dilacerada. E o último capítulo de São Bernardo é uma das coisas mais lindas que já li em minha vida. Paulo Honório enxerga dentro de si, por meio de uma reflexão amarga, os monstros do orgulho e da ganância. Ele pensa sobre si mesmo: "... a culpa foi desta vida agreste, que me deu uma alma agreste". 

Mais tarde, eu li Memórias do Cárcere. E o turbilhão do testemunho de Graciliano Ramos produziu mais efeitos impressionantes. Vale mencionar que em Graciliano não notamos a criação da fantasia. O autor de Vidas Secas não criava mundos como um Machado de Assis, por exemplo. Sua literatura é resultado da observação. Desde Caetés, um retrato da vida provinciana, até Viagens, que é o seu testemunho sobre impressões colhidas no leste europeu, percebemos essa característica. Quando lemos, por exemplo, os seus relatórios administrativos da prefeitura de Palmeira dos Índios ao governador do estado de Alagoas, notamos que existe em Graciliano uma vocação - a de ter uma capacidade crítica para refletir sobre a realidade em que está inserido. Portanto, é assim que notamos o quanto as Memórias do Cárcere se constituem em um relatório feroz. O modo a qual Graciliano descreve a arbitrariedade de uma força invisível e que avilta, torna os seres humanos em pulgas e ratos. A condição humana, mais uma vez, é diminuída a níveis opressivos. Os presos políticos vivem a humilhão física, da dignidade humana, uma espécie de submissão moral. 

Li os outros livros de Graciliano Ramos (Angústia, Insônia, Infância, Linhas Tortas, Caetés etc) e acabei assimilando uma admiração ímpar pelo homem e pela sua obra. Há alguns meses atrás, li o livro Graciliano - Retrato Fragmentado, escrito pelo seu filho Ricardo Ramos. Pude perceber um pouco da intimidade narrada por Ricardo. Graciliano Ramos era alguém de disciplinado e com forte pendor político. Era um de poucas palavras e sempre dizia o que pensava. Ricardo escreve algumas experiências que aumentam-lhe a mítica de alguém que possuía um largo anedotário. Como este abaixo:

"E no cinquentenário do Correio da Manhã, comemorado com larga programação, transformado em feriado, meu pai ficou em casa de pijama, para no outro dia chegar ao jornal e ouvir de Paulo:
- Graciliano, você me fez uma!
- Quê?
- Não foi à missa.
- Eu sou lá homem de missa?
- Não foi ao banquete.
- Eu não sabia.
- Seu lugar ficou vazio, ao meu lado.
- Bem feito. Eu não me sento ao lado de patrão.
- Mas eu sou um patrão diferente.
- Você que pensa. Todo patrão é filho da puta
Paulo Bittencourt de uma gargalhada. Papai também. Depois, muito provavelmente, foram beber".

O fato é que Graciliano continua sendo para mim a mesma paixão de quando conheci. Sua obra será sempre atual, porque narra questões próprias do ser humano - a dor humana, a incompreensão a determinados fenômenos e a incapacidade de mudar os fatos do mundo exterior, que parecem determinados por uma força coercitiva e invisível. Graciliano transfigura o mundo com a palavra. Ele é um analista contumaz. Existe em seus textos um lirismo que não é música, mas voz calada, represada, uma angústia de seres que não são; um não dinamismo que dissolve o mundo agitado e fixa, estabilizando a realidade, como se fosse um quadro no qual cada detalhe é um mosaico constitutivo e significativo.

Esta semana comprei uma biografia do escritor, escrita por Dênis de Moraes ("O Velho Graça"). Comprei na Livraria Cultura e estou esperando, com certa ansiedade. Quero lê-la no feriado. 

Obrigado, mestre Graça! Você é uma inspiração!

quinta-feira, outubro 25, 2012

Apenas uma provocação


Um pensamento provocativo de Rubem Alves, extraído do livro "Entre a ciência e a sapiência".

"Frequentemente as pessoas ficam emburrecidas em decorrência das palavras que ficam grudadas em sua inteligência. Tenho notado, por exemplo, que a apalavra 'Deus' (vejam; eu disse 'a palavra' - não disse 'Deus'. Deus está além das palavras) é uma das palavras que mais se agarram à inteligência, fazendo com que as pessoas parem de pensar".

terça-feira, outubro 23, 2012

"O macaco nu" e a crise de não-ser ante a natureza

Quando o que está em jogo é o ser humano, torno-me bastante pessimista. Carl Sagan costumava dizer que "somos uma espécie nova e curiosa e talvez haja salvação para cada um de nós". Não faço uso do otimismo de Sagan. A sua elegância o impelia a verbalizações nobres. Admiro essa sua capacidade. Mas, volto-me para uma outra direção. A direção que nos aponta um caminho incerto, infausto. Talvez haja em mim um pouco de Schopenhauer.

Somos uma espécie que pratica a rapina. Nossa história sobre o Planeta Terra é relativamente recente. Certa vez vi Carl Sagan fazer uma comparação que me impressionou. O célebre cientista americano disse que se pudessêmos colocar a história da Terra e do Universo dentro de um campo de futebol, desde o Big Bang, a história humana não seria mais do que um palmo dentro desse campo hipotético. Ou seja, a nossa história é recente, mas deixamos marcas profundas na história do Planeta. Talvez nenhuma espécie tenha mudado tanto o Planeta como nós o fizemos - nem mesmo os poderosos dinossauros.

Essa reflexão amarga se aprofundou ainda mais após a leitura que fiz do livro "O macaco nu", do zoólogo inglês Desmond Morris. Esse livro foi escrito na década de 60 do século passado. É profundo e arraigadamente científico em suas sentenças. Morris faz uma análise contundente sobre os hábitos dos seres humanos - sua origem, a questão da sexualidade, do crescimento, o poder de exploração tão próprio do ser humano, o alto grau de agressividade, a importância da alimentação e busca pelo conforto. O zoólogo não deixa passar nenhum dos hábitos daquele que ele cognominou de maneira irreverente como "macaco pelado". Tal classificação se deve ao fato de que, entre as 193 espécies de símios e macacos (da família dos primatas), a espécie humana é a única que não apresenta o corpo coberto por pelos. Mas tal fato não deve ser visto apenas como obra do acaso. Morris vai dizer que existe uma alta função para essa condição.

É no final da obra, que Morris profere uma frase belissimamente perturbadora: "...apesar de todos os nossos progressos tecnólogicos, continuamos a ser sobretudo um simples fenômeno biológico". Com isso ele está dizendo que não nos diferimos dos outros seres no que tange às necessidades vitais. Somos animais moldados pela evolução. Se no passado a atividade de caça nos ocupava a maior parte do tempo, hoje, é o trabalho, principal motor de troca da sociedade criada por esse mesmo ser gregário, que toma o nosso tempo. De modo que o nosso estilo de vida parece ter "sacralizado" o existir desse mesmo criador. Parece que perenizamos a realidade. Vivemos como se fossêmos eternos. Todavia, existe o esquecimento de que a natureza é lenta e as suas mudanças se perpetram de modo processual.

E baseado nisso, achamos outra afirmação desconcertante do cientista inglês: "Houve muitas espécies formidàveis que se extinguiram no passado, e nós não somos a exceção. Mais cedo ou mais tarde, teremos de partir e deixar lugar para qualquer outra coisa". E aqui, corroborando com Morris, penso que isso seja um fato mais que incontestável. Quanto tempo mais teremos? Mil anos? Dez mil anos? Um milhão de anos? Não se sabe! O fato é que somos uma espécie engenhosa. E essa capacidade de engenho não nos livrará da inexorabilidade do tempo. Chegará um tempo em que não mais seremos. E nem mesmo as nossas religiões nos "salvarão".

Somos um "fenômeno biológico", mas, somos, também, um fenômeno cultural. Tudo aquilo que construímos e fazemos está associado à necessidade de realizarmos aos instintos animais. Temos um forte impulso a buscar a sobrevivência e tirarmos vantagens de todas as coisas. Fomos moldados assim pela evolução. Nossos instintos sexuais, territoriais e agressivos não serão dominados e flexibilizados, pois somos, acima de tudo, seres biológicos que buscam a perpetuação. Até mesmo quando temos um filho, buscamos, nele, continuar a existir. Ora, para finalizar, o que são as religiões, senão uma necessidade de continuar a existir mesmo quando o nosso mais terrível  inimigo chegar - a morte - e militar contra a nossa sede territorial de continuar a ser?


terça-feira, outubro 16, 2012

Stand Up - disco fantástico do Tull

Stand Up (1969) é o segundo disco de estúdio do Tull. Posso dizer que é uma das coisas mais viscerais que já ouvi. O experimentalismo de Anderson me sugere que o sujeito brincava de fazer música. A primeira faixa A new day yesterday é um blues assombrado; possui um baixo fantasmagórico e um riff de guitarra pegajoso. Anderson brinca até com a "Bourée"de Johann Sebastian Bach. Deu-lhe um arranjo típico. Todas as composições do disco têm a mão de Anderson. O álbum marcou a cisão do vocalista com Mick Abrahams e definiu aquilo que seria o Tull dali para frente. Abrahams desejava um Tull fincado na tradição do blues e do rock. Anderson, por sua vez, queria explorar outros formatos musicais.


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A new day yesterday ___________________________________


   
Look into the sun

segunda-feira, outubro 15, 2012

Memórias - como se deu o meu primeiro contato com a escola (homenagem ao dia do professor)

Escrevi este texto há muito tempo atrás. Faz parte de umas memórias que principiei a escrever em 2006. Naquela época, eu havia lido o livro "Infância", de Graciliano Ramos, pela segunda vez e acabei me entusiasmando. O texto abaixo constitui um dos trechos dessas memórias. Fala como se deu o meu primeiro contato com a escola e como a minha primeira professora foi marcante para mim. Agradeço a todos os demais professores que logo em seguida eu conheci na minha caminhada como estudante. Todos eles foram fundamentais. Eis alguns nomes que eu consigo lembrar: Marina, Ivanete, Geovanete, Ana Sueli, Adalbertos, Popó de Magalhães, Paulo, Luis Fernando, Mário Bispo, Carlos Mota, Ricardo, Cíntia, Consuelo, Soraia, Francisca, Dioney, Veruska e tantos outros que a memória não consegue fazer o exercício de lembrar. Obrigado a todos vocês!

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Recebi um livro corpulento... Papel ordinário, letra safada. Apesar disso emaranhei-me em regras complicadas, resmunguei expressões técnicas e encerrei-me num embrutecimento admirável.

Graciliano Ramos, in Infância, p.120

            Aos sete anos de idade, numa certa tarde, minha mãe me relatou que eu iria à escola. Meu primeiro contato que tive com as letras se deu por uma curiosidade assistida, por uma observação imaginosa. Minhas tias estudavam numa escola rural. Todos os dias eu as via preparadas para ir à escola. Precisava de um ritual: banhos, cabelos penteados, sapatilhas, saias pinçadas – os homens com shorts que iam até os joelhos – camisa branca impecável. Às vezes pegava o caderno e me aturdia na letra miúda e embaraçosa. Certamente aqueles códigos impressos na folha branca do caderno fazia parte de uma gente superior. Estudar era privilégio. Decodificar as regras, também. A escola com certeza era um local de pessoas limpas, de aprendizado para aqueles que queriam ser gente. Eu andava descalço. Meus pés haviam adquirido uma camada grossa no chão quente. Os espinhos não me fustigavam mais. Os tocos da chã eram-me insensíveis. Menino afeito à rusticidade, queriam me introduzir no local das regras civilizadoras.
             Eu iria à escola. Como seria esse mundo de pessoas limpas, de gente que desembrulhava códigos, que aprendia regras para ser gente? Possivelmente – imaginava – eu nem brincaria mais. Não andaria mais descalço. Deixaria de tomar banho no riacho. Atinaria para a repreensão dos mais velhos. Conceitos poderosos seriam alinhavados na minha mente. A notícia de minha mãe gerou ansiedade. Possivelmente, eu ingressaria num local de gente sabida. Sairia da classe dos iletrados e me alistaria no exército dos doutos. Leria livros. Minha avó me solicitaria a fim de que eu escrevesse cartas para os meus tios que tinham ido para São Paulo. Teria importância pelo fato de me tornar um menino sabido como meu primo Roberto que estudava na cidade e lia livros debaixo das mangueiras e jaqueiras nas tardes quentes da Zona da Mata pernambucana.
            A primeira impressão funda que se apresentou a mim foi a necessidade surgida de esfregar as unhas dos pés e das mãos; limpar os ouvidos; tirar os cascões dos pés rachados; pentear os cabelos. Minha mãe dizia que menino educado tinha que mudar a postura. Dali para frente, dizia minha mãe, todos os dias eu teria que andar bem vestido, com os cabelos alinhados e com as unhas impecáveis. Hoje penso em regras militares. Metodismo draconiano.
            Minha mãe engomou a minha roupa. Comprou alpercatas. Meteu-me dentro de um uniforme limpo e de calçados apertados. A princípio caminhei desenvolto, mas aos poucos o calçado ordinário maltratou-me os pés. Primeiro dia: minha mãe acompanhou-me. Foi entregar-me à professora. Fazer recomendações. Falar quem eu era. A professora olhou-me gentilmente. Não tinha mais que a oitava série. Era a instrutora dos “bichos” acanhados colocados na sala de aula. Filhos de agricultores que viviam da subsistência. Matutos. A maioria, homens que mal sabiam assinar o nome. Totalmente cegos para a escrita. Entrevados para os livros. Desde cedo haviam sido treinados na tarefa rude. Ajuntaram-se com mulheres como eles. Tiveram proles como os coelhos e agora os enfiavam numa escola rural. Saga cruel. A maior parte do dias esses meninos passavam na roça, carpindo, plantando, adubando e na outra parte se dedicavam à escola. Eu seria mais um integrado ao grupo.
Olhava curioso para a sala. A casa onde funcionava a escola era tosca. Não se distinguia muito da que eu morava. A diferença se estabelecia no fato de que esta tinha vãos, e, aquela, não. Era uma sala pejada de bancos duros, chãos. Ali, mais de cinqüenta seres se emaranhavam na tarde quente e seca  – as aulas eram sempre à tarde. No turno da manhã a escola não funcionava. Ali estavam os alunos da primeira à quarta série. Todos ajuntados como bichos-de-ruma. Os mais adiantados já sabiam assinar o nome e ostentavam desembaraço ao recitar a cartilha.
Minha mãe deixou-me. Fiquei sozinho na selva desconhecida. Algumas criaturas eu conhecia de brincadeira. Ali estava o filho de Antônio Fragoso, o filho de João da Horta, de Bil Nunes, de seu Suneca. Olhos a me despirem. A professora gorda, de cocó enorme no meio da cabeça, vestido florido, alegre, de rosto fino, nariz aquilino e óculos capenga, disse:
-          Gente, olha só... esse é o Carlos. Ele é o novo colega de vocês.
Procurei um lugar para sentar e me escondi. Afundado em mim mesmo, tentava capturar a explicação ininteligível para os alunos mais adiantados. O seu modo tranqüilo de professora enfeitiçava os meus olhos. Parecia uma fada madrinha a ensinar receitas de mágicas para os aprendizes. Distribuía tarefas. Finalmente, aproximou-se de mim e me entregou uma cartilha de folhas amarelas. Cartão interessante. Ainda lembro das frases: “Rui tinha uma rede”. “O rato roeu a roupa do rei de Roma”. Frases cantadas, sibiladas, densamente musicais. Pareciam feitas para serem decoradas. Fiquei impotente ali parado com aquele papel que continha códigos estranhos.
Os primeiros aprendizados se deram com força e resistência. Linhas semidesenhadas precisavam ser cobertas. Ficava ali mergulhado naqueles códigos pontilhados a cobrir o “a”, o “b”, o “c”, o alfabeto. A mão emperrava. Parecia resistir arduamente à domesticação. Resignava-me. A professora pegava-me as mãos e ajudava o lápis a correr pela folha pardacenta. Minhas mãos eram pesadas. Ficava ali o tempo inteiro a memorizar o alfabeto; repeti-lo, grifá-lo na mente; riscá-lo; sublinhá-lo no interior. Escrevê-lo à lápis nas folhas alvas da memória. Aquilo era exorbitante. Doía-me o juízo. Certamente aprender era tarefa difícil.
À hora da tabuada, a mente enchia-se de espaços, de branquidão total. Os números se emaranhavam num cipoal desconexo.
- Quanto que é 4x4? – perguntava-me a professora de régua na mão.
A sensação de que levaria um bolo me afundava ainda mais num embrutecimento enorme. A professora olhava-me. Penalizava-se do meu desconcerto. Indicava-me, ajudava-me com sua pachorra que promovia grandes torturas.
-          Quanto que é 4x1?
-          Quatro – respondia.
-          4x2?
-          Oito – respondia.
-          4x3? – perguntava de novo.
-          Doze, professora.
-          Então, quanto que é 4x4, Carlos? - Olhos lacrimejavam no esforço incontido.
-          Dezesseis!!!!
Eu, criatura tímida, percebia o suor se empastar na testa. Após cada teste, saía como de uma luta. Para livrar-me da palmatória era preciso entregar-me ao estudo. Deve ser por isso que gosto tanto de estudar e ler. São as reverberações de um tempo que eu me via premido a aprender por conta da férula da professora Marina. A mestra dizia do alto da sua autoridade:
- Vocês estão muito fracos. Aqueles que não estudarem vão levar um bolo na mão – sentado no meu banco desconfortável, olhava o objeto longo, de madeira, ao lado da criatura enorme.
Todas as tardes, nós somente íamos para casa após recitar a cartilha ou mostrar que estávamos com a tabuada na ponta da língua. Não sabia ler ainda, mas havia decorado, pelas figuras que a cartilha apresentava o que cada um dos desenhos queria dizer. Uma palavra que repetia muito era “árvore”. Ao enunciar esta palavra, geralmente a citava, não por saber o que os morfemas significavam, mas por causa da prática comum, de saber que os vegetais graúdos que davam frutos eram chamados de árvores. A professora corrigia-me:
- Você falou errado. Não se diz árvore e sim arvore. Ia para casa com aquela sentença na algibeira da desconfiança. Certamente havia um equívoco na pronúncia da professora. Os mestres poderiam errar! Aquele “arvore” pronunciado sem o acento agudo, como vim a saber mais tarde, dava uma identidade nova à palavra. A “árvore” que eu conhecia não era a “arvore” repetida com tanta contumácia pela professora todas as vezes que recitava a cartilha. Era tudo um grande desconcerto. Resignava-me ao engano da professora.
Até hoje me concentro nesse erro daquela professora. Porque ela dizia “arvore” ao invés de “árvore” eu não sei até hoje. Olhava para os vegetais maiores não como arvores, mas como árvores. Certamente a minha professora estava errada. Entendi que a escola nem sempre ensina a ler o mundo corretamente.

domingo, outubro 14, 2012

O UFC e a violência de uma sociedade contraditória

Ontem à noite fui à casa de um colega professor. Conversamos e rimos muito. Cheguei à minha por volta de uma hora da manhã. Vi pela janela que o meu vizinho estava assistindo, com outras pessoas, a uma luta. Liguei a TV. Tentei entender o motivo para aquela reunião intempestiva. Quando liguei a TV, surpreendi-me com o que vi. Tratava-se de uma luta de UFC. Achei aquele combate simplesmente sofrível. Dois figurões seminus numa jaula (o chamado octógono), protagonizando uma luta de rinha. Dois "galos" musculosos e vitaminados (vale lembrar que a legislação brasileira criminaliza as rinhas com animais).  Não consigo entender o motivo pelo qual o UFC impressiona tanta gente. É a violência explícita. A sacralização do golpe que fulmina o outro. 

Curiosa é a descrição do colunista do site O Globo: Vale observar como ele prima por usar termos que sugerem violência e beligerância: "Spider" ("aranha", aquele qu salta, que elimina o adversário pela estratégia); "pressionar"; "queda", "golpes", "oponente", "psicopata" (que sugere anomalia psíquica); "lutar"; "joelhada"; "devastadora"; "socos".

"No primeiro round, Bonnar seguiu a linha de Chael Sonnen dentro do octógono, pressionando Anderson contra a grade e tentando a queda, mas sem ter sucesso. O americano soltava golpes, mas se desgastava, e o Spider quase surpreendeu derrubando seu oponente. O brasileiro se livrou da pressão do Psicopata Americano, mas voltou e encostou na grade como forma de provocar. Parecia que o Spider não queria lutar, só se esquivando. Mas a genialidade apareceu quando ele quis. Uma joelhada devastadora em Bonnar, que caiu. Mais alguns socos e fim de luta. Mais uma vitória para a conta".

A luta terminou quando um dos contendores encaixou um golpe ("a joelhada devastadora") no queixo do adversário. Naquele instante, ouvi as manifestações de aprovação por parte do meu vizinho. Indago-me que sociedade é essa em que vivemos. Somos vitimados pela violência diária. A mídia sobrevive à custa da violência. Muda perfomaticamente quando anuncia em seus jornalões o último caso nefasto do final de semana. Os seus noticiários estão "ensanguentados". Fechamos hermeticamente as nossas casas. Andamos pelas ruas desconfiados. Fugimos dos estranhos. Mas aprovamos a violência propagandeada numa luta transmitida pela TV. Tal violência é resultado de uma sociedade estratificada, desigual, modelada pelas diferenças sociais.

É como se os dois elementos que, estão na "jaula", representassem as frustrações coletivas. Muitos gostariam de estar ali. Protagonizando aqueles golpes; aqueles socos; aquelas munhecadas com finalidades atordoantes. Custa-me entender tão grande otimismo, se não analisar por essa ótica crítica.

domingo, outubro 07, 2012

"Animals" (do Pink Floyd) e sua mensagem política

Ultimamente tenho ficado sem muito tempo para escrever o que quer que seja neste espaço de sensaborias. Mas, hoje, resolvi deixar aqui algumas garatujas sobre um dos discos mais incríveis da história do rock: "Animals", do Pink Floyd. "Animals" destoou de tudo aquilo que o Pink Floyd produziu até 1977. É um disco conceitual. Sua força está na crítica firme e contudente contra as condições sócio-políticas da sociedade inglesa - e, quiçá, do mundo que estava mergulhado na Guerra Fria. Roger Walters, um grande socialista, baseou o disco na obra de George Orwell, "A Revolução dos Bichos". 

Outro elemento que impressiona é a capa fantástica: um porco enorme, flutuante entre duas chaminés de uma fábrica com matizes apocalípticos.  A central elétrica de Battersea serviu de inspiração para a capa.

O disco possui apenas cinco faixas. Dura aproximadamente 41 minutos. Todavia, três dessas faixas possuem mais de dez minutos ("Dogs", "Pigs" e Sheep") e as letras que levam a mensagem política e filósofica. Estou simplesmente viciado neste disco nos últimos dias. Tenho-o ouvido diariamente. A música "Dogs" (video abaixo) torce nossa compreensão. 

Como enunciei acima, a humanidade é dividida nesses três grandes animais - cachorros, porcos e ovelhas. "Dogs" seriam os burgueses ávidos por poder e influência. O desejo dos "Dogs" era se tornarem "Pigs". Os "Pigs" são aqueles que exercem o poder político como no livro de Orwell. São aqueles que dominam, pela força hegemônica, as outras classes. Nesse sentido, o disco faz uma crítica a Margareth Thatcher, uma desafeta do grupo, e que mais tarde se tornaria a Primeira Ministra da Inglaterra. Como no livro "A Revolução dos Bichos", "Pigs" e "Dogs" possuem uma aliança. Todavia, o que é curioso é que na mensagem conceitual do disco, "Pigs" eliminam "Dogs", restando apenas "Sheep". "Sheep" são aqueles seres que levam os meios de produção nas costas, que vendem a sua força de trabalho. São os seres dóceis, que foram dominados e seguem os seus líderes sem questionar o porquê de tal ação. O início da música "Sheep" sugere uma paisagem tranquila, repleta de paz. As ovelhas balem tranquilamente, evocando uma paisagem rural e campestre. E de repente irrompe o aviso: "Inocentemente passando seu tempo no pasto/ Apenas vagamente ciente de um certo desconforto no ar/ É melhor tomar cuidado, /Pode haver cães por perto /Eu olhei para lá do [rio] Jordão e já ví. /As coisas não são o que parecem ser / O que você ganha fingindo que o perigo não é real? /Submissos e obedientes vocês seguem o líder".

Finalmente, Walters deixa bem claro que o mundo está dividido em dois nichos estanques: "Pigs" (dominadores) e "Sheep" (dominados). Assim, instala-se um estado de submissão, de opressão. Walters desfere ainda sua crítica à religião. Tal crítica estaria centrada no fato que a religião busca anestesiar e "docilizar" as relações entre "Pigs" (opressores) e "Sheep" (oprimidos). Isso pode ser observado numa clara referência ao Salmo 23 na música "Sheep". 

A mensagem política é incontestável. "Animals" é de uma contundência açambarcante. Revela a genialidade criadora de Walters e propensão para a suavidade de Gilmour. Um disco para ouvir, re-ouvir e para se impressionar a cada nova audição.

Abaixo, a música "Dogs". Os solos de guitarra de David Gilmour são cortantes:


quinta-feira, outubro 04, 2012

A espetacularização e a ideologização do Judiciário, por Leonardo Boff

O que me deixa impressionado com relação ao julgamento do suposto Mensalão do PT é o quanto a opinião da maior parte da sociedade brasileira está assentada no lugar-comum; o quanto o público se muniu com "setas maquiadas", atirando para um alvo político. Parece que o único sujeito que está dentro do turbilhão e que não baseou suas convicções em querelas meramente políticas; que não leu a Veja, a Folha de São Paulo, O Estado de São Paulo ou O Globo para balizar as suas convicções foi Ricardo Lewandowski. Há muito que deixei de simpatizar com o PT. Mas é drástico quando percebemos o protesto do opressor dentro da garganta do oprimido, evocando Paulo Freire. É lamentável quando a interpretação dos fatos é repetida com homogeneidade, sem distinções claras, por meio de reificações. É preciso protestar contra o óbvio. Lewandowski levantou-se ousadamente e contrariou a voz de determinados setores privilegiados da sociedade brasileira que utiliza ventríloquos para coadunar com a sua vontade. A extraordinária reflexão de Leonardo Boff (abaixo) fala sobre isso.
 A espetacularização e a ideologização do Judiciário
É com muita tristeza que escrevo este artigo no final da tarde desta quarta-feira, após acompanhar as falas dos ministros do Superemo Tribunal Federal. Para não me aborrecer com e-mails rancorosos vou logo dizendo que não estou defendendo a corrupção de políticos do PT e da base aliada, objeto da Ação Penal 470 sob julgamento no STF. Se malfeitos foram comprovados, eles merecem as penas cominadas pelo Código Penal. O rigor da lei se aplica a todos.

Outra coisa, entretanto, é a espetacularização do julgamento transmitido pela TV. Ai é ineludível a feira das vaidades e o vezo ideológico que perpassa a maioria dos discursos.

Desde A Ideologia Alemã, de Marx/Engels (1846), até o Conhecimento e Interesse, de J. Habermas (1968 e 1973), sabemos que por detrás de todo conhecimento e de toda prática humana age uma ideologia latente. Resumidamente, podemos dizer que a ideologia é o discurso do interesse. E todo conhecimento, mesmo o que pretende ser o mais objetivo possível, vem impregnado de interesses.

Pois, assim é a condição humana. A cabeça pensa a partir de onde os pés pisam. E todo o ponto de vista é a vista de um ponto. Isso é inescapável. Cabe analisar política e eticamente o tipo de interesse, a quem beneficia e a que grupos serve e que projeto de Brasil tem em mente. Como entra o povo nisso tudo? Ele continua invisível e até desprezível?

A ideologia pertence ao mundo do escondido e do implícito. Mas há vários métodos que foram desenvolvidos, coisa que exercitei anos a fio com meus alunos de epistemologia em Petrópolis, para desmascarar a ideologia. O mais simples e direto é observar a adjetivação ou a qualificação que se aplica aos conceitos básicos do discurso, especialmente, das condenações.

Em alguns discursos, como os do ministro Celso de Mello, o ideológico é gritante, até no tom da voz utilizada. Cito apenas algumas qualificações ouvidas no plenário: o mensalão seria “um projeto ideológico-partidário de inspiração patrimonialista”, um “assalto criminoso à administração pública”, “uma quadrilha de ladrões de beira de estrada” e um “bando criminoso”. Tem-se a impressão de que as lideranças do PT e até ministros não faziam outra coisa que arquitetar roubos e aliciamento de deputados, em vez de se ocuparem com os problemas de um país tão complexo como o Brasil.

Qual o interesse, escondido por detrás de doutas argumentações jurídicas? Como já foi apontado por analistas renomados do calibre de Wanderley Guilherme dos Santos, revela-se aí certo preconceito contra políticos vindos do campo popular. Mais ainda: visa-se a aniquilar toda a possível credibilidade do PT, como partido que vem de fora da tradição elitista de nossa política; procura-se indiretamente atingir seu líder carismático maior, Lula, sobrevivente da grande tribulação do povo brasileiro e o primeiro presidente operário, com uma inteligência assombrosa e habilidade política inegável.

A ideologia que perpassa os principais pronunciamentos dos ministros do STF parece eco da voz de outros, da grande imprensa empresarial que nunca aceitou que Lula chegasse ao Planalto. Seu destino e condenação é a Planície. No Planalto poderia penetrar como faxineiro e limpador dos banheiros. Mas nunca como presidente.

Ouvem-se no plenário ecos vindos da Casa Grande, que gostaria de manter a Senzala sempre submissa e silenciosa. Dificilmente, se tolera que através do PT os lascados e invisíveis começaram a discutir política e a sonhar com a reinvenção de um Brasil diferente. Tolera-se um pobre ignorante e mantido politicamente na ignorância. Tem-se verdadeiro pavor de um pobre que pensa e que fala. Pois, Lula e outros líderes populares ou convertidos à causa popular como João Pedro Stedile, começaram a falar e a implementar políticas sociais que permitiram uma Argentina inteira ser inserida na sociedade dos cidadãos.

Essa causa não pode estar sob juízo. Ela representa o sonho maior dos que foram sempre destituídos. A Justiça precisa tomar a sério esse anseio a preço de se desmoralizar, consagrando um status quo que nos faz passar internacionalmente vergonha. Justiça é sempre a justa medida, o equilíbrio entre o mais e o menos, a virtude que perpassa todas as virtudes (“a luminossísima estrela matutina” de Aristóteles). Estimo que o STF não conseguiu manter a justa medida. Ele deve honrar essa justiça-mor que encerra todas as virtudes da polis, da sociedade organizada. Então, sim, se fará justiça neste país.

Leonardo Boff é teólogo e escritor.
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