domingo, julho 28, 2013

Ceilândia "confronta" Brasília - e vice-versa

Foto da Caixa d´Água, Ceilândia Centro
Ontem, consegui correr 15 quilômetros. Foi um momento de bastante satisfação. Já estava há certo tempo querendo atingir essa meta. Coloquei a seguinte frase no Facebook: "15 quilômetros de corrida pelas ruas de Ceilândia. Que beleza! Sigamos..." Entre os vários comentários que surgiram, um me chamou a atenção, talvez, pelo nível de crítica contra a escolha de correr pelas ruas de Ceilândia, uma das cidades-satélites mais violentas do Distrito Federal: "fala sério pela ceilândia meu deus" (ipsis litteris), disse um dos comentaristas, professor e colega de trabalho da escola onde leciono.

Não que esteja criticando o meu colega, mas fiquei pensando sobre as posturas que tomamos a respeito de alguns fatos. Respondi para o meu colega da seguinte forma: 

"Minha mãe mora lá. Fui visitá-la e, como sempre faço, aproveitei para correr. Fui da Ceilândia Sul à BR-070. Fiz alguns volteios pelo Setor-"O" e retornei à Ceilândia Sul, chegando até à Via Estádio. É uma delícia! A administração construiu aquelas pistas para ciclistas e a coisa ficou "simpática". É bom correr por lá. Além do quê, eu fui criado em Ceilândia. Conheço bem a cidade. Saiba que Ceilândia já foi matéria de poema para Carlos Drummond de Andrade. O nome do poema é "Confronto". A exata expressão crítica drummondiana que expressa o orgulho da "suntuosa Brasília", com o seu pasto verdejante de empáfia marmórea e a ressequida e "esquálida Ceilândia", todavia com muita gente séria e trabalhadora, a se mirarem num conflito social muito sério: Olhe que beleza o poema do Drummond: 

"A suntuosa Brasília, a esquálida Ceilândia
contemplam-se.
Qual delas falará primeiro?
Que tem a dizer ou a esconder uma em face da outra?
Que mágoas, que ressentimentos prestes a saltar
da goela coletiva e não se exprimem?
Por que Ceilândia fere o majestoso orgulho da flórea Capital?
Por que Brasília resplandece
ante a pobreza exposta dos casebres de Ceilândia,
filhos da majestade de Brasília?
E pensam-se, remiram-se em silêncio
as gêmeas criações do gênio brasileiro"
Foto do Centro de Ceilândia, ainda na década de 1970. Ao fundo, o barracão onde hoje é Feira Central

Esse fato me levou refletir como os conceitos enviesados são formados. Algo assim está lá na Bíblia. Diz um dos evangelhos que quando Jesus chegou a Jerusalém e começou a ensinar às multidões, os líderes religiosos, que constituíam a elite da época, passaram a questionar o lugar de nascimento de Jesus. Quando souberam que ele era do Norte de Israel (Galileia), pergutaram: "E por acaso daquele lugar pode sair algumas coisa boa?". Ou seja, uma afirmação que atrela o lugar de nascimento ao fato de ser "bom" ou "mal"; como se uma metafísica se estabelecesse como código moral formador do sujeito.

Como diz o poema do Drummond, Brasília é uma cidade em "confronto". É uma cidade na qual a sua delimitação cria uma cinturão de antagonismos. A arquitetura moderna é contrastante em relação às muitas cidades-cidades. Ceilândia é uma dessas cidades. Formada na década de 70, recebeu o nome augural de "Centro de erradicação de invasões" (daí o epíteto "CI" e o posterior nome "Ceilândia, que nos passa a ideia daquilo que o próprio nome preconiza - "terra das invasões"). A cidade é constituída por migrantes e filhos de migrantes vindos de muitos locais do Brasil para construir e ser construído pelo "sonho" chamado Brasília, sendo os nordestinos sua massa motriz. Essa influência nordestina está na fala, nas músicas, nos comportamentos, nas vestimentas e, principalmente, na Feira Central de Ceilândia, que ainda conserva a tradição gastronômica - buchada, mocotó, dobradinha, etc. É, atualmente, a cidade mais populosa do Distrito Federal e uma daquelas que apresenta o maior número necessitados da Capital Federal.

Foto da atual Ceilândia a partir de Ceilândia Sul
Ceilândia é um desses casos de nosso país, como diz o poema do Drummond, em que mostra a capacidade do "gênio brasileiro" de criar paradoxos. Encontramos o suntuoso, o nababesco, o babélico, mas ao mesmo tempo, retrato de nossos abismos sociais, criamos voluntariamente o inesoto, o esquálido.

Fui criado em Ceilândia. Morei lá boa parte da minha vida. Gosto da cidade. Quando passo pelos locais onde fui criado, onde brinquei, uma porta dimensional se abre no tempo e me vejo ainda criança. Impossível esquecer. Ou seja, um pouco de minha ontologia está lá colocada, plasmada, tatuada.

Então, o fato de correr em Ceilândia se estabelece como algo poético e revitalizador. O sujeito nascido no centro de Brasília corre no Parque da Cidade, lugar feito para a fauna aburguesada exercitar-se, e julga isso como sendo natural. Ou seja, naturalizamos algumas coisas e estranhamos aquelas para as quais não estamos acostumados, sem percebermos que tudo é parte de um jogo de discursos. 

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