quarta-feira, julho 24, 2013

Memórias Póstumas de Brás Cubas e a genialidade de Machado de Assis

"Senhores vivos, não há nada tão incomensurável como o desdém dos finados" - Brás Cubas

Durante muito tempo alimentei dentro de mim uma oposição branda à genialidade de Machado de Assis. Questionava os laudatórios ufanistas que se faziam ao escritor carioca. Achava aquilo demasiado. Passei mais de dez anos sem lê-lo. Infelizmente. Essa negligência, creio, foi um prejuízo sem igual. Machado é daqueles escritores que precisam ser lidos de forma incansável, religiosamente. O autor de Memórias Póstumas não deve nada aos chamados grandes escritores do

mundo. Lê-lo com atenção é encontrar tesouros velados; ironias finas; críticas geniais à sociedade; impudências variadas; humor ríspido, bufônico; tiradas sensacionais; originalidade e ousadia.

Meus conceitos mudaram completamente em relação ao escritor este ano após ler dois de seus livros. Ainda bem. Em janeiro, enquanto estava de férias em João Pessoa-PB, li Quincas Borba, obra cujo nível de domínio da técnica do romance e dos personagens impressiona; sem falar na crítica terrível que desfere contra a sociedade hipócrita de sua época. E, agora, no mês julho, no meu recesso, tive a oportunidade de revisitar Memórias Póstumas de Brás Cubas. Passei dois dias - 13 e 14 - na cidade de Pontalina, município goiano, situado a 130 Km da capital. Sentado no banco da frente da casa da avô da minha esposa, eu pude constatar na leitura frenética que fiz das Memórias, que o livro é uma das coisas mais sensacionais que já foram produzidas. Pude captar dessa vez, boa parte daquele paisagem infinda que se espraia nos seus romances. E como diz muito acertadamente Roberto Schwarz em seu Um mestre na periferia do capitalismo, "a prosa narrativa machadiana é das raríssimas que pelo mero movimento constituem um espetáculo histórico-social complexo (...) Neste aspecto caberiam comparações com a prosa de Chateubriand, Henry James, Marcel Proust ou Thomas Mann".

Memórias Póstumas, escrito em 1881, inicia aquela grande fase que traria livros como, por exemplo, Dom Casmurro, Esaú e Jacó, Quincas Borba e Memorial de Aires; sem falar no conjunto de contos contidos em Papéis Avulsos. Especificamente em Memórias Póstumas, Machado firma um tipo de "impudência narrativa" que consegue dá um ritmo peculiar à obra. A epígrafe em forma de saudação já é um grande disparate literário: "ao verme que primeiro roeu as frias carnes do meu cadáver", deixa de forma clara a mensagem que ali não existe um narrador comum. Somente alguém com muita ousadia e domínio da forma para encetar algo assim. 

O narrador-personagem mostra-se como um clown, uma espécie de pândego. Todavia, essa perspectiva é construída a partir daquilo que foi. Mas tudo aquilo que diz busca construir um humor infame, como se a sua vida tivesse sido uma sucessão de quadros quixotescos, a qual o herói surge espoliado das qualidades  reluzentes necessárias à sua condição. Brás Cubas é um narrador cara-de-pau; é um basbaque; um piadista. Mas, um crítico severo. Seu humor é mordaz. Nesse sentido, as palavras de Machado ganham em grandeza, posto que cada palavra deve ser deslocada de seu sentido. Schwarz vai dizer que em Machado "não há frase que não tenha segunda intenção ou propósito espirituoso".

Aspecto curioso de Brás Cubas é o veio enciclopédico. Ele utiliza variadas citações e referências. Começa pelo Pentateuco, conjunto de cinco livros Gênesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio) considerados como sagrados pela religião judaico-cristã. Todavia, essas menções intertextuais se expandem dos tempos bíblicos à literatura clássica; dos romanos à Idade Média; da Reforma ao Renascimento; da Guerra Civil Inglesa às unificações alemã e italiana; de Stendhal a Lawrence Stern; de Verdi à esposa de João Caetano. Não são simplesmente alusões frias, pedantes, desnecessárias, empoladas. Não. O narrador o faz com tanta graça e leveza que, uma vez que fossem extraídas, traria prejuízo para o texto. 

Cada capítulo é construído com uma liberdade de forma que põe Memórias Póstumas na esteira do moderno. Machado inova com isso. Temos assim uma obra com muitas polifonias. É isso que torna essa obra algo perene e inesgotável para as análises. Um exemplo da genialidade de Machado está, por exemplo, no capítulo 68, denominado "Vergalho". Transcrevo-o abaixo: 

"Tais eram as reflexões que eu vinha fazendo, por aquele Valongo fora, logo depois de ver e ajustar a casa. Interrompeu-mas um ajuntamento; era um preto que vergalhava outro na praça. O outro não se atrevia a fugir; gemia somente estas únicas palavras: — “Não, perdão, meu senhor; meu senhor, perdão!” Mas o primeiro não fazia caso, e, a cada súplica, respondia com uma vergalhada nova.

— Toma, diabo! dizia ele; toma mais perdão, bêbado!

— Meu senhor! gemia o outro.

— Cala a boca, besta! replicava o vergalho.

Parei, olhei... Justos céus! Quem havia de ser o do vergalho? Nada menos que o meu moleque Prudêncio, — o que meu pai libertara alguns anos antes. Cheguei-me; ele deteve-se logo e pediu-me a bênção; perguntei-lhe se aquele preto era escravo dele.

— É, sim, nhonhô.

— Fez-te alguma coisa?

— É um vadio e um bêbado muito grande. Ainda hoje deixei ele na quitanda, enquanto eu ia lá embaixo na cidade, e ele deixou a quitanda para ir na venda beber.

— Está bom, perdoa-lhe, disse eu.

— Pois não, nhonhô. Nhonhô manda, não pede. Entra para casa, bêbado!

Saí do grupo, que me olhava espantado e cochichava as suas conjeturas. Segui caminho, a desfiar uma infinidade de reflexões, que sinto haver inteiramente perdido; aliás, seria matéria para um bom capítulo, e talvez alegre. Eu gosto dos capítulos alegres; é o meu fraco. Exteriormente, era torvo o episódio do Valongo; mas só exteriormente. Logo que meti mais dentro a faca do raciocínio achei-lhe um miolo gaiato, fino, e até profundo. Era um modo que o Prudêncio tinha de se desfazer das pancadas recebidas, — transmitindo-as a outro. Eu, em criança, montava-o, punha-lhe um freio na boca, e desancava-o sem compaixão; ele gemia e sofria. Agora, porém, que era livre, dispunha de si mesmo, dos braços, das pernas, podia trabalhar, folgar, dormir, desagrilhoado da antiga condição, agora é que ele se desbancava: comprou um escravo, e ia-lhe pagando, com alto juro, as quantias que de mim recebera. Vejam as sutilezas do maroto!"

O capítulo acima atesta o quanto o autor sabia construir crítica social com humor. É curioso que aquele que fora castigado na infância de Brás Cubas, havia se tornado em carrasco. Uma ironia terrível. Machado aqui posiciona a sua crítica contra a sociedade escravista e contra os dilemas da natureza humana quando exposta à ganância e ao poder. 

Machado tem aumentado o seu prestígio internacional. É lamentável que isso não tenha ocorrido há mais tempo. Penso que ele não fique abaixo de qualquer outro grande romancista francês, russo, americano ou inglês como dito acima. Machado passou a ser reverenciado por nomes como Salman Rushdie, Martin Amis, Paul Auster e Woody Allen. Manguel - ainda vivo - e Carlos Fuentes - já falecido - elaboraram estudos sofisticados sobre o Bruxo do Cosme Velho. Susan Sontag elogia Machado em Questão de ênfase, colocando-o como o maior autor da América Latina. E Harold Bloom o coloca naquele rol dos cem maiores escritores da história.

Ou seja, Machado de Assis é um caso de gênio com uma galáxia de inesgotabilidade literária. Sua originalidade coloca-o entre os grandes. Entre os imortais.

P.S. Depois tentarei escrever sobre a parte final de Memórias Póstumas.

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