terça-feira, dezembro 17, 2013

As viagens de Gulliver - algumas considerações pós-leitura

Consegui, após três meses de jejum, terminar a leitura de um romance. E não se trata de qualquer romance. Consegui concluí a leitura de As viagens de Gulliver. Tratava-se de um projeto antigo, mas que consegui realizá-lo esta semana. O livro está entre aqueles clássicos imortais da literatura universal. Foi escrito por Jonathan Swift em 1726 e revisado em 1735. Swift escreveu uma espécie de relato de viagem, muito comum à época, com a finalidade de realizar uma crítica cáustica à sociedade europeia - principalmente a inglesa.

É um livro leve, de texto agradável e de uma agudeza mordente. Swift narra as diversas viagens realizadas pelo personagem principal, Gulliver, e a visita inevitável a personagens curiosos que personificavam a sociedade do seu tempo. Com o primeiro naufrágio, Gulliver chegou a um lugar chamado Lilliput, cuja significação pode ser "o país tanto de mentes pequenas quanto de corpos pequenos". Os moradores de Lilliput mediam em média 15 cm. E eram marcados pela pequenez moral. Perdiam bastante tempo com fatos insignificantes. Gulliver acaba sendo traído pelos lilliputianos. Assim, o autor traça um retrato do seu país: da mediocridade e da pequenez que assolava a sua terra; da sociedade firmada em convenções, com um rei bobo e suscetível a influências variadas e perniciosas.

Em Lilliput
 Em seguida, visita a ilha de Brobdingnag, país que constitui uma antítese em relação a Lilliput.  Brobdingnag é a terra dos gigantes. É terra dos sujeitos autossuficientes. Pode ser interpretado que esses gigantes eram os realizados financeiramente e que, consequentemente, constituíam-se em  donos da verdade. Gulliver passa bastante tempo entre Brobdingnag. É exibido como uma animal de estimação.

A terceira viagem se dar a Laputa. Laputa era uma ilha voadora, cujos habitantes viviam assoberbados pelo pensamento, imersos nos cálculos matemáticos e na música. Com relação a Laputa, nota-se claramente a crítica feita aos intelectuais frívolos, que se alimentam de questiúnculas a fim de perpetuarem, com a necessidade de se autoafirmarem. Swift se dirige ao racionalismo científico alienado, mas essa reflexão é trans-histórica, pois em todas as épocas encontramos sujeitos enfatuados por causa  do saber, revestidos de perversidade e presunção. O muito conhecimento  ao invés de vestir determinados indivíduos de candura e humildade, pode fazer com estes mesmos sujeitos se tornem arrogantes e de má índole.
Em Laputa

Na sua quarta viagem, Gulliver encontrou os Houyhnhm, uma espécie de cavalos nobres que cultivavam a inteligência, os ideais de verdade e razão. E aqui nota-se que o livro vai assumindo um tom cético e niilista. No país dos Houyhnhm, Gulliver encontra os yahoos, uma metáfora clara dos seres humanos, movidos por instintos primitivos, gananciosos e irracionais. Nesse quarto bloco da história, Swift não constrói sua crítica apenas contra a sociedade inglesa ou francesa, mas à humanidade como um todo. Os yahoos exatificam aquilo que de mais brutal, banal, frívolo e baixo existe no ser humano. As viagens de Gulliver nesse sentido sai do campo da literatura infantil, como é classificado por muitos, para se tornar numa daquelas sátiras à la Luciano de Samósata, o filósofo romano do segundo século.
Entre os Houyhnhms

No último capítulo do livro, encontramos a seguinte passagem, a qual notamos a crítica explícita ao mundo europeu: "Navios são enviados na primeira oportunidade, os nativos são confinados ou destruídos, seus príncipes são torturados para que entreguem seu ouro; uma licença é dada a todos os atos de desumanidade e lúxuria; a terra fica fedendo com o sangue dos seus habitantes e aquela execrável tripulação de açougueiros empregadas em tão pia expedição é uma colônia moderna enviada para catequizar e civilizar um povo idólatra e bárbaro".

As viagens de Gulliver, dessa forma, tecem uma contundente crítica ao processo colonial e imperialista da sociedade inglesa - e extensível às demais nações europeias, que pilharam os continentes asiático, africano e americano. Há uma citação explícita ao nome de Fernando Cortez, espanhol que foi responsável pelo massacre às civilizações encontradas no México. Cortez subjugou o México em menos de dois anos. A crítica ferrenha à sociedade arrogante e irracional, fundada na moral capitalista, e em pleno auge da Revolução Industrial é clara.
Jonathan Swift

Tendo desenvolvido uma ojeriza aos yahoos (metafóra dos "seres humanos"), Gulliver passou a viver de acordo com as filosofias dos Houyhnhms. Aqui nota-se uma referência à razão iluminista, que tinha o objetivo de reformar a sociedade europeia por meio da razão e fundar uma época baseada na liberdade, igualdade e fraternidade. O resultado nós conhecemos. Assim, a crítica realizada contra os yahoos continua viva, permanente.

P.S. Segundo informação extra-oficial (li isso em algum lugar), As viagens de Gulliver era um dos livros prediletos de George Orwell, que o teria lido mais de onze vezes. 

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