segunda-feira, abril 21, 2014

Qual Brasília faz 54 anos?

Brasília é uma miragem no meio do cerrado. Ainda possui lendas a seu respeito. Boa parte do Brasil ainda conserva a opinião de que, quem mora na Capital, dialoga com o Presidente da República quando quiser. É só acenar com um piparote que a coisa acontece. Depois de 25 anos morando em Brasília cheguei a algumas conclusões - talvez inamistosas - sobre a cidade. Como eu disse certa vez, as melhores palavras que expressam o que é Brasília foram pronunciadas por Marshall Bergmann, na introdução do seu livro Tudo o que é sólido desmancha no ar.

Ainda recordo as primeiras visões que tive da cidade, quando cheguei à Brasília em 1989. Ainda dentro do ônibus da Viação Itapemirim, com direção à antiga Rodoferroviária, avistei o Eixo Monumental. Vi a Torre de TV, suposto cartão postal da cidade. A impressão que tive foi de um descampado enorme com uma vegetação pródiga cobrindo todas as coisas. Os ônibus amarelos da Viação Pioneira passavam apressados. Tudo se consumia em meio à poeira do mês de agosto. A secura abria sucos nos lábios. Enfeiava a pele. Eu, animal acanhado, vindo da Zona da Mata de Pernambuco, pouco afeito a esses rebuliços citadinos, fiquei "bestificado" com a cidade. Cresci na cidade satélite de Ceilândia e poucas foram as vezes que visitei o Plano Piloto. O Plano Piloto se constituía apenas naquilo que via no itinerário dos ônibus.

Mesmo tendo morado por muito tempo, somente alguns anos depois fui visitar a Esplanada dos Ministérios, lugar do orgulho e da jactância modernista do ufanismo brasileiro. É ali que se espraia, que se derrama, que o poder semeia os seus ovos valiosos no coração Brasil. 

Há dois anos atrás, quando visitei João Pessoa, capital da Paraíba, tive a oportunidade de conhecer um mosteiro construído em 1589. Fiquei impressionado com o que vi. Era, simplesmente, o monumento mais antigo que eu havia visitado. Minhas referências eram pequenas. Quando olhei aquelas pedras; o altar da igreja; os bancos que já abrigaram tanta gente; o chão impregnado pela poeira do tempo, não deixei de pensar na exiguidade temporal que é Brasília. Ela não passa de uma senhora concebida do desvario "modernista" do entreguismo brasileiro. Juscelino, Niemayer e Lúcio Costa calcularam mal. Fundaram uma cidade sobre um sonho, sobre uma aspiração incipiente. Hoje Brasília é uma senhora manca. 

E não se deve deixar de mencionar que existem várias Brasílias. Consigo divisar duas pelo menos. A Brasília "resplandecente", orgulho dos "civilizados" moradores do Plano Piloto e dos Lagos Sul e Norte; do Sudoeste e Noroeste; do Park Way e dos medievais condomínios que escondem o medo e o individualismo burguês. A Brasília daqueles que vão de carro e que transformam as ruas da Capital em um inferno de buzinas e holofotes vermelhos quais olhos satânicos. E quando olhamos, avistamos apenas o condutor dentro de sua armadura, de sua máquina, que lhe protege das intempéries, do outro, da necessidade, do pedinte do semáforo. 

O sonho chamado Brasília é vendido para aqueles que consomem arte. Que têm a possibilidade de estudar na Universidade de Brasília, que fica afastada do povo, distante das cidades satélites. Desfrutada pelos filhos dos trabalhadores, que ficam no caminho da competição: (1) por estudarem em escolas públicas e serem apartados na refrega do vestibular; (2) por estarem distante fisicamente do campus; (3) pelas condições socio-econômicas que impedem o sujeito morador das cidades satélites gastarem além das possibilidades para chegarem até lá.

A outra Brasília que diviso é Brasília das cidades-satélites - atualmente, quase quarenta. Elas foram criadas como alternativas para aqueles que vieram construir Brasília. Muitas delas conseguiram se estabelecer economicamente. Elas não são municípios propriamente ditos. São descentralizações burocráticas ou administrativas. Existem para tornar mais fácil a governabilidade. Todavia, ganharam vida própria. Possuem personalidade. Gravitam em torno de Brasília. Assistem à distância o espetáculo da Casa-Grande, que é Brasília, sendo apenas Senzala. Possuem uma vida cultural apagada. A população precisa trabalhar, a maior parte, no Plano Piloto. As opções de lazer são escassas. Os jovens, geralmente filhos de trabalhadores, ficam sozinhos e expostos à marginalidade. Refiro-me aqui a cidades como Ceilândia, Samambaia, Planaltina, Santa Maria, Recanto das Emas, Paranoá, São Sebastião, Sobradinho II etc. É Brasília mostrada por Vladimir de Carvalho e seu fantástico documentário Conterrâneos Velhos de Guerra.

Brasília não me apetece. Do mármore não brota graça. Não nasce a vida. Apenas o sonho bambo e febril de que nos alinhamos com o progresso por termos construído uma cidade ex-nihilo. É uma cidade fria. Seus monumentos são desvetidos de sensibilidade. Leva-nos a uma escadaria íngreme de convencimentos instáveis. Faz brotar um sorriso molesto no canto dos lábios como se os nossos trilhos levassem a um futuro promissor, no qual a esperança, cantada no seu hino, fizesse nascer uma terra onde mana leite e mel. Brasília é a capital dos amadorismos. Mas, também, das especulações gananciosas que alimentam o ventre de plutocratas senis e insaciáveis.

Os filhos de Brasília, como são chamados aqueles que nasceram após a fundação da cidade, aprenderam a se inebriar, pois o nosso cérebro tem uma facilidade para se adaptar com aquilo que vivenciamos rotineiramente. Platão provou isso de forma genial na alegoria do Mito da Caverna, dizendo que aqueles que convivem com as sombras, acostumam-se com as mesmas sombras. 

Minhas palavras talvez revelem um amargor e uma falta de docilidade profunda. Mas é o que penso. São as impressões que fui colhendo nesses vinte cinco anos de convívio com a cidade. E corroboro com Marshall Bergmann: "Vista do ar, Brasília parecia dinâmica e fascinante de fato, a cidade foi feita de modo a assemelhar-se a um avião a jato tal como aquele do qual eu (e quase todas as outras pessoas que lá vão) a vemos pela primeira vez. Vista do nível do chão, porém, do lugar onde as pessoas moram e trabalham, é uma das cidades mais inóspitas do mundo". Ou seja, vê-la de longe, como os brasileiros a veem parece interessante, estimulante, todavia, está com ela é outra história. Por isso, a tese inicial de que Brasília é uma miragem. 

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