sábado, julho 19, 2014

Rubem Alves e o meu aprendizado a respeito do tempo e da vida

  "Poesia é uma qualidade do olhar"/ "O mundo para mim é um instrumento cósmico onde dormem as mais belas melodias". - Rubem Alves

O tempo como agente

Diz Agostinho que "o tempo produz efeitos admiráveis dentro de nós". O tempo possui um cinzel invisível que vai nos esculpindo tanto física quanto espiritualmente. Recordo-me das frases iniciais de Erico Veríssimo em Solo de Clarineta, quando ele diz que "as marcas do tempo estavam impressas no pergaminho do seu rosto". Uma metáfora que define os enunciados do tempo escritos em nós. É trivial. É natural. Mas todos morrem. Já perdi tantas pessoas queridas - meu pai, meu avô materno, minha avó paterna, conhecidos, amigos. E cada novo dia, o movimento irrefreável do rio da vida dobra mais uma curva em sua viagem. O tempo é aliado da morte. É seu companheiro. Os dois caminham de mãos dadas como no filme de Ingmar Bergman. A morte aparece para jogar com a sua vítima. Ele tenta enganá-la. Tenta negociar, mas bastou o tempo para fulminá-lo. Quando ele menos esperava, ela apareceu com sua face fria e o tragou.

A morte nos machuca, pois aqueles a quem ela faz de vítima, sabemos, nunca mais se verá. É um "sequestro", uma violência abrupta, um laceração nas emoções. Uma cisão, um corte, um passar a esponja na existência de cada um de nós. Quem vai não volta. Quando se morre, tudo termina. A expectativa da morte é a realidade mais trágica para o ser humano. 

Hoje, o tempo trouxe consigo a sua companheira e ceifou a vida de uma das figuras responsáveis por um pouco de minha formação ontológica - Rubem Alves. Fiquei sabendo da morte de Rubem Alves no início da tarde de hoje. Há dias eu acompanhava o sofrimento pelo qual ele passava. Enquanto corria hoje no final da tarde, eu ouvia a End of the Road, de Eddie Vedder, que faz parte da trilha sonora do filme Dentro da Natureza  Selvagem, pensei sobre esse "fim da estrada" a qual todos nós chegaremos, enquanto olhava para as nuvens alaranjadas, com feições sanguinolentas. A aragem fria do início da noite produziu reverberações poderosas. Acabei ficando triste.

O tempo da descoberta

Descobri Rubem Alves nos idos de 2002. Estudava em um seminário. E ao conhecer as suas crônicas, impressionei-me com sua sensibilidade. De repente, passei a procurar para ler tudo que dizia respeito a ele. Contudo, percebia que quando falava de Rubem Alves, alguns dos meus colegas seminaristas me encaravam com certa desconfiança. Afinal, entendi o porquê de tanto medo dos meus colegas. Rubem havia sido um seminarista, assim como eu o era; chegou a ser pastor, mas sua liberdade de pensamento e sua forma de "caminhar" acabaram por criar problemas. Em plena Ditadura Militar, a Igreja Presbiteriana do Brasil o denunciou ao serviço de repressão do Regime. Se ele ficasse por aqui, certamente seria preso, torturado e teria um destino incerto. Enfim viajou para os Estados Unidos e lá fez mestrado e doutorado, contribuindo proficuamente para lançar as bases daquilo que se tornou conhecido como Teologia da Libertação. Sua Teologia da Esperança é o embrião que deu feições ao movimento que teria nomes como o peruano Gustavo Gutierrez e o brasileiro Leonardo Boff como ícones. 

O pensamento teológico de Rubem Alves, de certa forma, acabou por me influenciar. Desvinculei-me do dogmatismo da fé quando li Protestantimo e Repressão e Dogmatismo e Tolerância. Estes, acredito, são livros que me marcaram e que inscreveram em mim o discernimento filosófico e estético que tenho sobre a espiritualidade; me tiraram o"cabresto religioso" que estava em meu pescoço e me fazia olhar somente para o chão. Quando li Rubem Alves, pude olhar para o céu e me maravilhar com as cintilações de um azul que nunca enxergara. Os dois livros estão guardados carinhosamente em minha biblioteca e, de vez em quando, pego-os, admiro-os, folhe-os e termino tudo com um grande sorriso.

Passei a perceber que em Rubem Alves se torna fato aquela frase dele: "As palavras têm o poder de fazer acordar os desejos adormecidos dentro do corpo". É como se o corpo fosse uma lápide, um jazigo, onde estão congelados os rios simbólicos. As palavras são sóis capazes para dar vida a esse mundo inóspito. São elas, tão próprias do mundo humano, elementos capazes de fazer morar em nós a faculdade da alegria. A palavra é capaz de fazer ressuscitar o corpo. Ela é a eucaristia vivificadora. O corpo é uma realidade biológica, orgânica, mas o que nos torna humanos é a capacidade de criação dos símbolos. Criamos, pois isso é inerente aos seres humanos. Portanto, esse corpo é o espaço gerador de novas ideias, da capacidade de apreensão do mundo. Ou seja, tudo mora no corpo. A vida e a morte. Os abismos e as montanhas. Os jardins e os pântanos. O céu e o inferno. Os dias e as noites. E para subverter a logicidade da matéria, é necessário treinar o olhar. Rubem costumava repetir uma frase do poeta inglês William Blake: "O tolo ao ver uma árvore, enxerga somente uma árvore; o sábio, por sua vez, ao ver uma árvore, enxerga uma poesia". 

Após entender que existe um jogo simbólico por traz das coisas, transformei isso em uma realidade para os meus devaneios teológicos e espirituais. Rubem costumava apontar para o ritual cristão da santa ceia, dizendo que ali estava "o símbolo de uma ausência" - o pão e o vinho. Observem como ele conseguia fazer poesia com as mínimas coisas. E que o mundo estava repleto de metáforas. "E toda metáfora é um salto sobre o abismo". É esse jogo com a palavra que torna o universo de Rubem Alves tão encantador. Flertar com o seu pensamento é passar a viver com os arco-íris, com os arrebóis mais encarnados, com os jardins mais coloridos, com a sensação de que estamos saboreando as carnes delicadas de um caqui.

O pensamento de Rubem Alves se funde com um dos seus mestres - Nietzsche. Diz o alemão: "Estou convencido de que a arte representa a tarefa realmente metafísica do homem... A existência do muno só se justifica como um fenômeno estético". Acredito que estas palavras definam o que foi e como deve ser compreendido Rubem Alves.

O tempo do real (tempus fugit)

Ao saber da notícia nefanda, fez-se uma noite escura dentro de mim. Fiquei com um mal-estar horrível. É como se eu tivesse perdido alguém muito querido e que vivia comigo todos os dias. Fiquei triste por saber que não teremos textos inéditos; as palestras sempre encantadoras; as palavras embriagadas pelo cheiro de capim gordura, pelos ipês floridos, pelo barulho dos carros de boi, dos mistérios da terra de Riobaldo - Minas Gerais. Rubem nunca se afastou completamente de suas origens. Apesar de viver boa parte de sua vida em Campinas, interior de São Paulo, trazia em sua alma as aprendizagens iniciadas em Boa Esperança-MG - sua cidade natal. É como aquele poema ontológico de Carlos Drummond de Andrade, Confidência do itabirano.

Seu corpo, onde morou tantas poesias, será cremado e possivelmente as cinzas serão atirados ao vento, para que possam polinizar as flores a fim de que elas se tornem mais belas; para que as pintagueiras surjam mais vermelhas e atraentes; para que os flamboyants e ipês surjam como cabeleiras inflamadas a produzir beleza; para que os jardins sejam fecundados e possam se fortalecer. 

Em um país e em um tempo como o nosso, perder Rubem Alves é algo de muita seriedade. Mas ficarão as suas palavras, que virão como revoadas de pássaros e farão morada em mim, em nós... Marcharão numa procissão em direção ao interior de catedrais secretas. Proferirão discursos, declamarão poesias e atestarão com um verso de Manuel de Barros - repetido tantas vezes por ele: "É mais presença em mim aquilo que me falta". 

Obrigado, Rubem! Se eu não tivesse encontrado os seus textos, talvez eu não fosse aquilo que sou. O rio continua a correr e suas águas são sempre novas. Olhemos para as árvores e encontremos poemas.

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