domingo, agosto 31, 2014

A naturalização do cotidiano e a política

















Karel Kosik diz em sua Dialética do Concreto algo essencial: "O indivíduo não é apenas aquilo que ele próprio crê nem o que o mundo crê; é também algo mais: é parte de uma conexão em que ele desempenha um papel objetivo, supra-individual, do qual não se dá conta necessariamente". (KOSIK, 1976, p. 62). Com isso, o pensador marxista nos deixa a ideia de que existe uma realidade a qual o homem comum perde o contato em seu cotidiano. Mas o que é essa cotidianidade? 

Na cotidianidade vivem todos os homens. Cotidianidade não é o espaço privado prevalecendo sobre o espaço público. Para ele "a vida de cada dia tem sua própria experiência, a própria sabedoria, o próprio horizonte, as próprias previsões, as repetições, mas também as exceções". Os homens vivem esses fatos e se acostumam a tais eventos, entendendo, que as coisas são aquilo que são. Que não existe uma outra forma de ser. Ou seja, a vida objetiva passa a criar uma instintividade mecânica em relação às coisas e ao mundo. 

O homem, assim, acaba criando um para si, em que considera a realidade como o seu próprio mundo, pois sua visão sobre as coisas se tornam eventos familiares. O sujeito acostumado com o aparente não consegue divisar a existência de outro mundo, de outra forma de ser possível à realidade. A vida calcada no cotidiano e fincada no aparente, sem que tenha uma expectativa da essência, leva o homem a naturalizar determinados acontecimentos. A naturalização dos fatos, leva o sujeito ao comodismo; à incapacidade para fazer julgamentos sobre qual a relação que o seu cotidiano tem com a história.

Um exemplo disso é o hábito que o sujeito moderno tem de colocar o dedo no interruptor de luz e acender ou apagar, sem se dar conta de que por trás de tal ação existe uma cadeia histórica. Ou quando liga a torneira e ver a água jorrando, sem se dar conta do processo que trouxe a água até à sua casa. Sartre menciona esse processo de naturalização tão comum da vida burguesa em seu romance existencialista A Náusea. Os jovens de hoje naturalizaram a consciência de que o mundo é da forma que eles veem; que os celulares são um elemento que acompanha a humanidade desde as mais remotas datas. Não saberiam viver sem os aparelhos, pois acabaram naturalizando a existência desses objetos portadores de fetiche. 

Quando penso estas coisas, me vêm à mente uma afirmação de José Carlos Libâneo em sua famosa Didática. O educador afirma em tom althusseriano que "O sistema educativo, incluindo as escolas, as igrejas, as agências de formação profissional, os meios de comunicação de massa, é um meio privilegiado para o repasse da ideologia dominante". Poderíamos completar afirmando: "para a naturalização do mundo". Em seguida, o educador nos propõe que desconfiemos nas seguintes afirmações:

(1) O Governo sempre faz o que é possível; as pessoas é que não colaboram;
(2) Os professores não têm que se preocupar com política; o que devem fazer é cumprir sua obrigação na escola;
(3) A educação é a mola do sucesso, para subir na vida;
(4) Nossa sociedade é democrática porque dá oportunidades iguais a todos. Se a pessoa não tem bom emprego ou não consegue estudar é porque tem limitações individuais;
(5) As crianças são indisciplinadas e relapsas porque seus pais não lhes dão educação conveniente em casa;
(6) As crianças repetem de ano porque não se esforçam; tudo na vida depende de esforço pessoal;
(7) Bom aluno é aquele que sabe obedecer (LIBÂNEO, 2008, p.20)

As afirmações são aplicadas no contexto do mundo da educação, mas, na vida cotidiana, poderíamos ampliar a lista, sem esquecer que muitas dessas premissas são construídas pelos meios de comunicação de massa e acabam ganhando um grau de verdade inquestionável:

(1) Política não presta; político é tudo corrupto; 
(2) Se passou na televisão é por que é verdade; não há o que se discutir;
(3) A violência é um problema que é resolvido pela presença da polícia;
(4) Os menores são os responsáveis pela violência nas grandes cidades;
(5) O Brasil é um país que não dar certo; nada presta por aqui;
(6) Comunismo, marxismo e socialismo são símbolos de ditaduras; 
(7) Manifestação ou reivindicação social é um movimento orquestrado por "vândalos" e "vagabundos";
(8) Você é capaz de ter sucesso na vida; para isso é só se esforçar que você consegue;
(9) Só é pobre quem quer, pois é só trabalhar;
(10) Deus sempre ajuda aquele que ora;
(11) O mundo sempre foi assim; não tem como mudá-lo; 
(12) "Sou brasileiro e não desisto nunca";
(13) Somos uma democracia racial; 
(14) A desigualdade social é um problema de gestão;
(15) O mundo pode ser "consertado"; para isso, basta eu fazer a minha parte; 

A lista poderia continuar. Esses são apenas algumas frases que me ocorreram. Kosik ainda afirma: "A alienação da cotidianidade reflete-se na consciência, ora como posição acrítica, ora como sentimento do absurdo. Para que o homem possa descobrir a verdade da cotidianidade alienada, deve conseguir dela se desligar, liberá-la da familiaridade, exercer sobre ela uma "violência"".(p.78). Por violência, entenda-se a capacidade de "ver a própria face e conhecer o próprio mundo", destruindo de uma vez por todas a naturalização - a pseudoconcreticidade. 

2 comentários:

Vinícius Pessoa disse...

Este blog é um espetáculo. São estonteantes essas reflexões acerca do nossa realidade. E não satisfeito, os textos sempre estão abarrotados das mais diversas referências, sejam literárias, acadêmicas, cinematográficas ou musicais. Se não me falha a memória, foi por meio deste blog que descobri Anton Tchekhov, que hoje é um dos meus autores favoritos. Só tenho a agradecer por manter esse espaço formidável. Meus parabéns!

Carlinus disse...

Obrigado, Vinícius!

Fico feliz pelo fato do blog ser útil para você!

Abração!