sexta-feira, julho 24, 2015

Registro crônico V

Nos jardins de La Chascona
Hostis cordilheiras, 
céu duro, 
estrangeiros, esta é,
esta é a minha pátria,
aqui nasci e aqui vivem os meus sonhos
Pablo Neruda, in Navegações e Regressos


Como deixei claro na última postagem, tive a privilegiada oportunidade de visitar duas das casas em que viveu Pablo Neruda. A primeira delas fica na mítica cidade de Valparaíso, na costa chilena e se chama La Sebastiana. A residência fica no alto da empertigada cidade, que está assentada em seu trono de pedra, com o seu olhar repleto de cintilações crepusculares, contemplando o infinito mar. Em Valparaíso, como em Santiago, as casas foram transformadas em museus administrados pela Fundação Pablo Neruda. 

Na sexta-feira, dia 17 de julho, tive a chance de visitar a sua casa que fica em Santiago, chamada de La Chascona. Paga-se uma quantia módica de 3000 mil pesos chilenos, o equivalente a quinze reais e se pode visitar todos os cômodos da casa. O passeio dura em média uns trinta minutos. Todas as quinquilharias e artefatos que se ligam diretamente ao poeta ainda estão conservados na sala. A sala, os quartos, parte da biblioteca, a escadaria, o bar; os talheres, pratos, quadros, móveis, ainda estão conservados graças ao excelente trabalho que a Fundação realiza. 

La Chascona foi construída para esconder o caso de amor entre Pablo e Matilde Urrutia. Quando o poeta a conheceu ainda era casado com sua primeira mulher. Pablo e Matilde precisaram de bastante discrição. Buscaram encontrar um lugar afastado e que despertasse o mínimo de curiosidade. Escolheram para isso um terreno longe do centro, próximo onde hoje funcionam o zoológico de Santigo e o Cerro de São Cristovão, uma das vistas mais privilegiadas da cidade. Em La Chascona, Pablo erigiu um espaço que fugia das convencionalidades. Como era propenso a "pequenas extravagâncias e excentricidades", por causa de seu ar de colecionador, mandou trazer mesas de cafés franceses; quadros com aquarelas chinesas; prataria inglesa. A tampa da mesa do bar foi feita a partir de uma peça de navio. A forma dessa mesa busca repetir as ondas do mar, por quem nutria profunda e existencial paixão. Em La Chascona está a medalha que ganhou em 1971, ao receber o Prêmio Nobel de Literatura, dois anos antes de sua morte eivada por contradições.

Quando o Golpe Militar trouxe anos de escuridão para o Chile, em 1973, a casa foi depredada - claro, além das outras. Mudaram o curso de um rio que passa pelas proximidades para inundar a La Chascona. Queriam apagar a memória referente ao poeta. Pablo era um comunista militante. Sua presença no Chile traria problemas para o regime fascista de Pinochet. Graças à persistência e perseverança destemida de Matilde, conseguiu-se preservar a memória do poeta.

Na última quarta-feira, fui ver Neruda - Fugitivo, no Espaço Itaú Cinema, aqui em Brasília. O filme é bonito por mostrar a relação telúrica do poeta com a sua terra. Foi a partir da fuga e de sua viagem pelos Andes, que ele escreveu o seu famoso Canto Geral (que já comprei pela Estante). O livro é um verdadeiro mergulho poético, uma exaltação ao continente americano e sua latinidade. Nesse livro, Neruda descortina a sua visão para as questões sociais. Sua linguagem poética se tonifica, ganha profundidade. Deixa os hermetismos da juventude e busca como um rio cristalino e profundo o mar da justiça e da equidade.  

E após a viagem que fiz, após conhecer um pouco da cultura e o simpático povo chileno, penso que não somente Neruda, mas Salvador Allende e Victor Jara, sejam vozes de uma pujante liberdade, de uma força indômita como o silêncio que se espraia da Cordilheira; da densidade bruta dos minerais que fermentam riquezas e exaltam a orgânica pureza e majestade da natureza. Neruda representa a beleza profunda do povo chileno - sua solidadriedade, sua alegria, seu humor fino; seu desejo pela dignidade, seu mistério intransigente, como as brumas teimosas que escondem a cabeça branca das montanhas, tornando-as apaixonantes.

Lendo algumas poesias do seu livro Navegações e Regressos, encontrei um poema que me deixou boquiaberto pela relação que estabelece com esse espaço entre o silêncio e a palavra; e, após a tempestade, um outro silêncio, pois, em Neruda, passamos a entender que os silêncios têm natureza, gosto, cores, personalidades e uma mística que transfigura o momento em que vivemos e o lança em direção às infinitas significações do existir. 

Tempestade com silêncio

Troveja sobre os pinheiros
A nuvem espessa debulhou suas uvas,
caiu a água de todo o céu vago,
o vento dispersou sua transparência
encheram-se as árvores de anéis,
de colares, de lágrimas errantes.

Gota a gota
a chuva se reúne
outra vez na terra.

Um só trovão voa
sobre o mar e os pinheiros,
um movimento surdo:
um trovão opaco, escuro,
são os móveis do céu
arrastados.

De nuvem em nuvem caem 
os pianos da altura,
os armários azuis,
as cadeiras e as camas cristalinas.

Tudo o vento arrasta.
Canta e conta a chuva.

As letras de água caem,
rompendo as vogais
contra os tetos. Tudo
foi crônica perdida,
sonata dispersa gota a gota:
o coração da água e sua escritura.

Terminou a tormenta.
Mas o silêncio é outro. 

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