terça-feira, fevereiro 09, 2016

"Contos de Kolimá", um retrato implacável feito pelo homem - contra o homem

“A natureza no Norte não fica apática, indiferente: ela entra em conluio com aqueles que nos mandam para lá”. (p. 116)

"Cada minuto da vida no campo de prisioneiros é um minuto envenenado". (p. 239)

O livro Contos de Kolimá, de Varlam Chalámov, é uma revelação do asfixiamento moral e do desnudamento completo da natureza humana; de como o ser humano pode se transformar em criatura guiada pelo instinto de sobrevivência quando enxovalhado por condições que maculam a sua existência.

Kolimá é uma região desolada da imensa Sibéria. Era para lá que os prisioneiros políticos do regime soviético eram levados. Segundo Varlam Chalámov, em certas épocas a temperatura chegava a sessenta graus negativos ("o cuspe congelava antes de chegar ao chão"). As vestimentas precárias, a condição de vida miserável, a alimentação insuficiente e pobre, o trabalho excessivo no ambiente frio, aniquilavam o corpo e o espírito.

A prosa de Varlám Chalámov é fria, assim como a paisagem da Sibéria. A imersão que ele faz nos tipos humanos: a arrogância dos soldados do regime, a canalha acumulada aos magotes no campo de concentração, a comida capenga, o escorbuto a fazer cair a pele, a carunchar os tecidos epiteliais, os ambientes inóspitos da região gelada, a natureza que parecia se aliar aos algozes, fazendo aumentar os infortúnios; o trabalho excessivo, às vezes, chegando a turnos extremos de dezesseis horas diárias em minas de carvão e ouro para cumprir as sanções do regime stalinista.

Chalámov esteve por mais de vinte anos nesses campos de trabalhos forçados. A primeira vez foi para lá por ter ingressado em um grupo que pedia a renúncia de Stálin. Na segunda vez, escreveu um livro e acabou sendo preso, acusado de orquestrar atividades clandestinas. Filho de um sacerdote, sua família perdera os privilégios com a Revolução de Outubro. Com o recrudescimento dos expurgos de Stálin, quando passou a haver uma sistematização da perseguição aos opositores do regime e o "arranjo" humilhante da deportação para a Sibéria, Chalámov foi parar em Kolimá. A paisagem branca e severa da Sibéria é uma inimiga atroz da condição humana. E quando não se está preparado para ela, ela castiga mais que o ódio humano.

As autoridades soviéticas sabiam muito bem o porquê de enviar os prisioneiros para lá: não havia possibilidades de fugas ou expansões que permitissem revoltas. Subnutridos e humilhados, os prisioneiros iam sendo puídos pelas condições medonhas a que eram submetidos. A única alimentação medonha que, o escritor teve, de forma sobeja, foram os traumas que se sedimentaram como uma camada compacta, maciça, escabrosa, fossilizada, nos recantos escuros da memória. O escritor externou, a partir de 1953, o resultado daquele produto. O trabalho o absorveu por vinte anos. Desfazer-se daquilo foi uma tarefa arqueológica. Escoimou-se, por isso. Purificou-se. Ou simplesmente, narrou de forma dura a fim de exprimir com o realismo necessário a dureza sentida na pele e na alma.

Varlam Tikhonovitch Chalámov
Chalámov deixou um registro da brutalidade, da vilania direcionada a outro ser humano. Atualmente, os Contos são de leitura na Rússia. Acredito que sejam um dos documentos mais bem escritos sobre as condições de penúria da vida de qualquer ser humano. O homem submetido a juízos extremos tende a perder a casca desenhada pela civilização; um homem que tem a fome como companheira inseparável, tende a ganhar instintos selvagens; um homem que passa a ter sua dignidade der ser humano ameaçada, volta a um estado de natureza, ou seja, passa a desprezar a vida de si e do outro. Chalámov é um retratista atento desse quadro medonho. A vida humana não valia nada naquele lugar. A mão poderosa de um Estado invisível que se agigantava, tornava-se presente na ameaça implacável do fuzil. Os prisioneiros eram matéria imprestável e passageira para a essa burocracia mesquinha. Se morressem, eram jogados na paisagem fantasmagoricamente branca; alimentariam os lariços ou a taiga quando chegasse o verão ou a primavera.

Qualquer degrau social possui a sua característica. Os tipos humanos de cada geografia correspondem aos atributos do lugar. É curioso, por exemplo, perceber Chalámov citar Dostoiévski (Recordação da casa dos mortos) e apontar que o autor de Crime e Castigo ficou "enternecido" com os tipos criminosos da cadeia, quando estivera preso na Sibéria, no século XIX. Em Kolimá, Dostoiévski "não se permitiria a expressar nenhuma compaixão". Chalámov acrescenta: "O chefe é grosseiro e cruel, o educador mentiroso, o médico inescrupuloso, mas tudo isso são bobagens em comparação com a força corruptora do mundo da bandidagem. De qualquer modo, são pessoas, mas neles raramente se manifesta algo de humano. Os bandidos, portanto, não são humanos". Na prosa de Chalámov se encavalam monstros, bichos sórdidos que buscam sobreviver na tenacidade contrastável do submundo.

A Editora 34 lançou os Contos de Kolimá o ano passado. Pretende lançar outros cinco volumes com a prosa dura de Chalámov - Vol. 1 - Contos de Kolimá; Vol. 2 - A margem esquerda; Vol. 3 - O artista da pá; Vol. 4 - Ensaios sobre o mundo do crime; Vol. 5 - A ressurreição do lariço; e Vol. 6 - A luva, ou KR-2. Se assemelharem ao primeiro são, portanto, imperdíveis.


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