segunda-feira, março 21, 2016

Algumas considerações sobre Graciliano Ramos e Memórias do Cárcere


"Quem dormiu no chão deve lembra-se disto, impor-se disciplina, sentar-se em cadeiras duras, escrever em tábuas estreitas". 

Graciliano Ramos, in Memórias do Cárcere, p. 34

Estabelecer contato com a literatura de Graciliano Ramos, permite-nos uma experiência indelével com a palavra. Para o escritor alagoano, a palavra é uma centelha poderosa capaz de produzir incêndios incontroláveis aos sentidos. Desde o fim de minha adolescência que tenho estabelecido um contato e uma admiração elevada pelo grande escritor. Desde o primeiro livro que li dele - São Bernardo ou Memórias do Cárcere? - que todos as vezes que vou aos seus textos, sou acometido por uma sensação de que estou diante de algo extraordinário; da alta literatura, da narrativa orquestrada por um maestro de gestos secos, ásperos e pouco afeito à lisonja. Conhecido pela discrição, pelas poucas palavras, pela biliosa relação que mantinha em algumas situações, é possível sentir a torrente de realismo, de honestidade e força da sua literatura. 

Quem quiser descobrir o efeito que as palavras possuem. Como elas devem ser limadas, esmerilhadas, catadas, lançadas na bateia da grande narrativa, é preciso recorrer ao Graça. Nele, percebemos a ausência de cortesia; o que há é a dureza contra os ademanes da bajulação, contra a blandícia escondida nas convenções sociais. Essa seriedade, esse vigor, extraído da vida, foi posto em sua literatura. Graça é um nome que traduz aquilo que João Cabral de Melo Neto expressou de forma arrojada em seu antológico Educação pela Pedra:

No Sertão a pedra não sabe lecionar,
E se lecionasse, não ensinaria nada;
Lá não se aprende a pedra: lá a pedra,
Uma pedra de nascença, entranha a alma.

Sim! Havia uma pedra em sua literatura, de "carnadura concreta", de adensamento compacto; capaz de infundir "a lição de moral"; de malear lâminas com sua "resistência fria". A facticidade é realidade que não se pode negar, por isso, a pedra simplesmente declara a sua presença. Diz-se enquanto realidade no mundo. Em Graciliano, a palavra é pedra; e ela diz mais que qualquer coisa, é sólida, promove uma experiência concreta. Ele não buscava se meter em grandes divagações, em digressões, em perambulações elogiosas. Sua preocupação era narrar o fato. Dizê-lo. Assumi-lo enquanto realidade inolvidável. 

Essas impressões se renovaram após a terceira - irrequieta e deliciosa - leitura que realizei de Memórias do Cárcere, livro cuja singularidade me permitiu enxergar o inconfundível sabor da literatura. Foi com ele, ainda no final do ensino médio, que desejei aprender a escrever. Todo aquele comedimento, o método, a frase perfeita, o período curto às vezes, mas, lancinante, a esmiuçar o tecido nervoso da realidade. Sim! Foi com essa literatura que corta como um bisturi; que não está preocupada com os brincos e maquiagens que escondem a face nua do mundo e de suas amarras, que desejei aprender a usar a palavra. As palavras são tijolos que constroem catedrais invisíveis de discursos. São elas que dão sentido ao mundo humano. Elas distorcem fatos verdadeiros. Maximizam acontecimentos irrelevantes e a depender do locutor, pode transformar poças de água, em grandes oceanos. Saber usá-las. Medi-las com diligência. Apascentá-las com o labor e diligência de um pastor é um dever de todo sujeito que se propõe a enunciá-las. Graça aprendeu isso como ninguém. Talvez, pelo fato de ter crescido em ambiente hostil à palavra. Os pais eram duros. A mãe, Maria Augusta Ferro, revelava dureza até no nome. Essa dureza fica evidente, por exemplo, no capítulo Inferno, de Infância. Ou no outro capítulo do mesmo livro - Um cinturão - que narra a surra que tomou do pai, um sujeito de "modos brutais, coléricos". Neste livro encontramos uma afirmação bastante emblemática que serve de fórmula metalinguística à sua literatura: "Na escuridão percebi o valor enorme das palavras". 

Memórias do Cárcere é um livro póstumo. Foi escrito nos anos finais da vida do grande escritor. Sua saúde já estava bastante combalida quando começou a escrevê-lo. Graciliano trabalhou por árduas semanas. Não chegou a concluir o último volume. Interrompeu para escrever Viagens, livro que narra suas impressões da visita que realizou à União Soviética e aos países da Cortina de Ferro. São livros que ele não teve tempo de revisar. Se tivesse o tempo necessário, por exemplo, para analisar as Memórias do Cárcere, certamente teria arrancado uma quantidade enorme de fatos. Sua função era "dizer", simplesmente "dizer", a palavra mal empregada, mal assentada no edifício do texto, comprometia qualquer obra do arquiteto.

Para escrever as Memórias, Graça conta os fatos que sucederam nos anos de 1936 e 1937. Foi acusado pelo Governo de Vargas de que era um conspirador, um agente vermelho a serviço do comunismo. Todavia, eram apenas suspeições. Não havia provas materiais contra o escritor. Ela assumia o papel de K. da obra O processo, de Kafka. Existe uma acusação, mas aonde está o libelo material? Acusado pelo aparelho estatal totalitário, o alagoano se ver diante de personagens variadas. Percebe a ausência conexão entre os fatos e as intenções revolucionárias dos presos políticos. Como fazer revolução em país "cheio de beatos de Padim Cícero"? Ou como reunir a malta sub-letrada de um país afundado na indigência intelectual? Graça fora vitimado pela intrusão da burocracia varguista. O país estava mergulhado num estado de exceção. Vargas flertava com Mussolini e com Hitler. O Integralismo era um câncer social. O obscurantismo crescia por todos os lados. Graça falava em "fascismo tupinambá". Como se defender? E num erro de cálculo, os comunistas haviam tentado iniciar um levante revolucionário em 1935. Eram razões mais que óbvias para a burguesia do país referendar a perseguição. Sujeitos como Graciliano Ramos pareciam oferecer perigo. Mas que perigo? O próprio Graça ria do senso revolucionário tupiniquim e das momices do governo. Nossa anemia intelectual nos impelia a construções extemporâneas, sem que houvesse considerações da sociedade em que se vivia. Em Alagoas, ele encontrou em um muro: "Índios, uni-vos!". A afirmação incongruente alargava a indigência teórica dos revolucionários de nossa terra.

Carlos Vereza no papel de Graciliano. Memórias do Cárcere, filme de Nelson Pereira dos Santos

Graça ficou preso em um quartel no Recife. Depois, foi embarcado em um navio. Costeou o Nordeste e, finalmente, chegou ao Rio de Janeiro - Ilha Grande e Colônia Correcional. A latrina que se constituiu o porão do navio era um amostra de como a burocracia totalitária e insensível de Vargas tratava os prisioneiros políticos, em sua maioria sujeitos que haviam ingressado em uma esparrela revolucionária. Eram colocados em um submundo. Tornavam-se como bichos, jogados de um lado para outro. Sendo ruídos pelos piolhos, percevejos e pela mucurana. Alimentado-se mal. Sem um lugar satisfatório para dormir, Graça definha. Emagrece. Fuma desvairadamente. Observa a fauna humana. Seus ritos. Caprichos. A contradição nos gestos. Os muros erguidos. Os chefetes legitimados por uma farda. Criaturas inexpressivas. Insetos sociais, que se agigantavam quando escudados pela força autoritária do Estado. Mas, às vezes, a cordialidade aparecia. E esmaecia por trás das nuvens dos interesses. Como o próprio Graça vai dizer: "Éramos cupins dentro do edifício burguês".

O livro é dividido em quatro partes. Cada uma das partes tem o propósito de narrar um lugar em que esteve o autor de Vidas Secas. Quando penso em experiência em prisões, não devo deixar de citar três livros imprescindíveis para mim: "Memórias do Cárcere", "Recordação da Casa dos mortos", de Dostoiévski e "Os contos de Kolimá", de Varlam Chalámov. São retratos de como a esterilidade de pensamento político pode transformar seres humanos em resíduos, em peças de uma engrenagem que desumaniza, que espolia a dignidade necessária que nos coloca numa posição que, nós humanos, julgamos especial. A exploração do homem pelo homem é um dos fatores que levam ao emprego dos mais variados tipos de violência. 

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