sexta-feira, abril 01, 2016

"O Castelo" de Kafka e a anunciação: "algo falta"

"O Castelo, cujos contornos começavam já a diluir-se, continuava silencioso como sempre; K. ainda não tinha visto o menor sinal de vida; talvez fosse absolutamente impossível reconhecer qualquer coisa a distância, e no entanto os olhos o exigiam e não podiam suportar aquela atitude. Quando K. olhava para o castelo, frequentemente lhe parecia estar observando alguém, sentado tranquilamente lá, olhando para ele, não perdido em pensamentos e esquecido de tudo, mas livre e despreocupado, como se estivesse só, sem ninguém a observá-lo; e no entanto não podia deixar de perceber que estava sendo observado" Franz Kafka, in O Castelo, p. 144

Passei mais de um mês lendo O Castelo, de Kafka. A leitura seguiu lenta. Em alguns momentos larguei o livro e me fiei por outro texto. Não é que estivesse achando a história "chata". Havia em mim uma tentativa de tentar assimilá-la, degluti-la, processá-la; desejo de penetrar em seu tema; não me perder em seus labirintos. O fato é que O Castelo não é uma obra para leitores neófitos. Quem deseja gostar de ler, não comece por essa obra do escritor tcheco. Haverá abismos enormes pelo caminho. E, certamente, indisposições compulsórias surgirão. 

Novamente, Kafka flerta com a inverossimilhança. Se em A Metamorfose Gregor Samsa se transforma em um inseto asqueroso e acaba sendo repelido pela família, passando a ser uma espécie de câncer social; em O Processo, Joseph K. recebe dois misteriosos visitantes que avisam haver um processo inexplicável contra ele, em O Castelo, Kafka trabalha com uma redução ainda mais gravosa. A personagem chama-se apenas K. É o suficiente. Uma letra seca, mínima; um código tentando burlar os obstáculos para entrar no Castelo. A construção fica na distância como gigante intransponível. Ele está presente em todo canto por meio dos seus subordinados - secretários, chefes de gabinetes, autoridades várias, que impedem K. de ter acesso ao Castelo. O conde West-West, dono do castelo, ramifica-se por meio do espectro de subordinados que dificultam a existência de K. 

Franz Kafka
Nesse sentido, é importante dizer que Kafka foi um visionário, alguém que criou narrativas grotescas a fim de revelar a modernidade. Walter Benjamin, que escreveu um importante ensaio sobre o escritor tcheco (Franz Kafka - a propósito do décimo aniversário de sua morte), diz que "o mundo das chancelarias e dos arquivos, das salas mofadas, escuras, decadentes, é o mundo de Kafka" (2012, p.148). Kafka constrói cenários absurdos para exemplificar o quanto a vida do homem nas grandes cidades, metido dentro do labirinto das burocracias estatais, perdido nas incongruências de uma rede invisível, que possui o controle do olhar; um deus que é ubíquo, mas que não é alcançado. Ele se faz presente, pois vemos aqueles que agem em seu nome, mas não podemos enxergar-lhe o rosto. É nesse sentido que a obra de Kafka ganha dimensões insondáveis. 

Em O Castelo a narrativa é permeada pelo caos, pelas digressões impossíveis que quebram o fluxo narrativo; vemo-nos perdidos em meio a personagens que surgem do nada. Todos eles parecem ser cúmplices das autoridades do Castelo. Dos três romances que li do escritor, ficou a sensação de que as ações narradas por Kafka sempre insinuam algo que falta. As personagens estão numa grande busca. Samsa não entende o porquê de ter se metamorfoseado em um inseto; Joseph K. procura encontrar uma resposta para o processo e K. procura romper os muros invisíveis que impedem a sua entrada no castelo do conde. O escritor parece direcionar o seu olhar para a existência asfixiada dos homens modernos, controlados, medidos, contidos, premidos pelo poder invisível. As enormes estruturas dos aparelho estatal. O controle com mãos habilidosas. A força que coage, que reprime e aplica sanções, quando o sujeito não atende aos reclames dos tentáculos burocráticos.

Curiosamente, o livro termina do nada. A história é interrompida sem que a personagem consiga ingressar no castelo. Leandro Konder em seu "Kafka - vida e obra", diz que que Thomas Mann premeditou um final para o livro. 

"Ao se interromper o original d'O Castelo, vemos o seu herói, o agrimensor K., sozinho, cansado, obrigado a executar tarefas domésticas para a criadagem do hotel, a fim de não morrer de fome. Segundo afirma o escritor alemão Thomas Mann, o romance deveria terminar com a morte de K. e, minutos após o seu falecimento, a chegada de uma mensagem autorizando-o a se apresentar no Castelo para a tão ansiada entrevista pessoal com um dos inacessíveis comparsas do conde West-West" (1974, p. 175).

Sei que isso seria uma digressão ou, talvez, uma comparação esdrúxula, mas o esdrúxulo é a
argamassa que Kafka utilizava para erguer os seus monumentos literários. Imagine um paciente que precisa de um transplante de rim ou que esteja com uma doença que demanda cuidados urgentes. Não tendo dinheiro para pagar um tratamento em um serviço particular, a pobre criatura recorre ao serviço público. Dorme na fila a fim de conseguir uma consulta. Na primeira vez não consegue o que pretendia. Recebe apenas a indiferença de servidores públicos acostumados com a insensibilidade da máquina emperrada da burocracia estatal. Tenta mais uma, duas, três... cinco vezes até conseguir. Ele quer o hospital (o castelo?). Ele precisa entrar ali. Entrevistar-se com um médico de cara dura. Consegue marcar a consulta. Precisará esperar quatro meses para ser atendido. Todavia, nesse espaço, a sua saúde complica e o infeliz paciente acaba falecendo a um dia da consulta. 

Outra situação é um preso que acabou sendo condenado injustamente. Ele é de periferia. É pobre. Sabe que o Estado está em dívida com ele. O único advogado que consegue é da Defensoria Pública. Mas, nas idas e vindas, o seu caso acaba passando pela mão de cinco defensores. Cada defensor que analisa o caso, precisa voltar a estaca zero. O réu precisa de uma apelação. Ele deseja um novo julgamento. Não tem êxito. Sua solicitação é indeferida por juízes frios, entricheirados no regulamento. Os anos vão passando - cinco, dez, quinzes anos. A única coisa que o condenado deseja é provar a sua inocência. Quer um novo julgamento. Estar diante do juiz e da promotoria (o castelo?) com um advogado honesto, probo, comprometido. Finalmente, consegue. A audiência é marcada. Mas, uma rebelião explode em seu pavilhão. Os presos amotinam-se. Fazem reféns. A polícia tenta negociar. O charivari aumenta. E no meio do ensadecimento, dois dos reféns são mortos. Um deles é o condenado, que morre a um dia do seu julgamento. 

Por mais que sejam excêntricas essas histórias, elas são kafkianas. Penso que essa monumental obra que é o Castelo, aponte para esses casos. Kafka olhava para o mundo e ele estava  vestido pelo grotesco.

Livros citados:

BENJAMIN.Walter, Magia e Técnica, Arte e Política - ensaios sobre literatura e história da cultura - Obras Escolhidas I, Brasiliense, 2012, 271 pp.

KAFKA.Franz, O Castelo, Nova Cultural, 2003. 446 pp.

KONDER.Leandro. Kafka - vida e obra, José Alvaro/Paz e Terra, 1974, 217 pp.

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