quinta-feira, setembro 08, 2016

"Como conversar com um fascista" (de Márcia Tiburi), algumas consideraçãos

Há alguns dias atrás, ao chegar ao trabalho, um colega me interpelou quando enxergou o título e a capa do livro que eu portava: "Você está lendo isso?" Num gesto de incredulidade, tentei explicar - ou propagandear - os méritos do livro. Depois fiquei refletindo sobre aquela pergunta ousada. Tratava-se de "Como conversar com um fascista - reflexões sobre o cotidiano autoritário brasileiro", de Márcia Tiburi. 

Não é saudável etiquetar as pessoas, reduzindo-as a meros cognomes empobrecidos que encerram grandes preconceitos. Mas, na indagação do meu colega não estava aquilo que o título do livro pretende tratar, lançar luz, abrindo possibilidades para reflexões? O gesto do meu colega não havia sido "fascista" ou "autoritário"? Certamente.

O livro de Tiburi, professora de filosofia e grande notória palestrante, conhecida pela agilidade mental e pela inteligência refinada, é um importante trabalho para entendermos esse momento nebuloso por que passa o Brasil. O Brasil não é um país fascista. Fascistas são ações de determinados setores da sociedade, que se deixaram levar por uma narrativa absurdamente perigosa como resultado da luta de classes existente no seio de nossa sociedade e que ganhou paroxismos dramáticos desde a reeleição de Dilma Rousseff, em 2014. 

Fascismo, aliás, é uma palavra com muitas nuances e que gera excessivas controvérsias. Conforme explica Rubens Casara na apresentação do livro, a palavra fascismo vem de fascio (do latim fascis), "símbolo da autoridade dos antigos magistrados romanos, que utilizavam feixes de varas com o objetivo de abrir espaços para que passassem (exercício de poder sobre o corpo do indivíduo que atrapalha o caminho). Em sua origem, portanto os feixes eram instrumentos a serviço da autoridade e, por essa razão, passaram a ser utilizados como símbolos do poder do Estado". 

Com o tempo, essa força anti-oposição, ou seja, que busca tirar da frente tudo aquilo que se mostre como obstáculo ou resistência, tornou-se em ideologia, em força que se alastra no tecido social. Assim, o fascismo é uma ideologia "da negação", pois condena e suplanta toda forma de resistência criativa e multicolorida. O fascismo é enviesado, cinzento, possui um esquema que busca a construção de uma ideologia total, que não respeita as diferenças. Por sua vez, a democracia é capacidade de reconhecimento do plural, do colorido, do movimento; a democracia é a celebração das liberdades e das garantias fundamentais. Enquanto o fascismo tende pelo imobilismo, pela afasia social, a democracia prima pela dança que celebra o direito que pertence a mim e que pertence ao outro. Assim, eu e outro, sujeitos de direitos, buscamos conviver e construir um pacto que eleva a nossa capacidade de sermos humanos. Ou seja, a democracia é a possibilidade mais elevada que já surgiu, capaz de dignificar o eu diverso que existe em mim e que existe no outro. 

É a partir dessa compreensão que o livro de Tiburi busca lançar suas reflexões. A democracia é o mapa que estrutura suas reflexões. A partir dessa referência, temas caros à vida democrática passam a ser pensados de forma instigante. O papel da mídia, o aborto, o direito das mulheres, o estupro como prática social - e "as mulheres como seres estupráveis") etc. 

Penso que a reflexão mais cara, mais densa e instigante - entre as muitas que o livro constrói - gira em torno da compreensão de quem é o outro e sobre o poder revolucionário da linguagem. O outro numa perspectiva fascista é um obstáculo relativo. Quando afirmo isso, quero dizer que existem dois caminhos para outro o numa perspectiva fascista: ou se é por nós, assumindo nossa agenda estreita e uniforme, ou se é destruído, disciplinado pela violência, seja ela física ou simbólica. Acredito que o que se tem visto no Brasil ultimamente passe por isso. A linguagem no mundo fascista é algo necessariamente importante. É justamente ela que cria dogmas, efeitos, impele às crenças, edifica heróis e constrói diabos. Ou seja, a linguagem é importante para erguer propagandas e criar consensos. Ela é é capaz de cimentar o prédio do edifício social e abalar ou fortalecer estruturas.
E nesse sentido é importante que se entenda que a compreensão de quem é o outro é imensamente importante, pois o outro é sempre o mistério, o incontido, o não revelado. Ou seja, aquilo que eu não sou, aquilo que é parte em que não habito. Habito em mim. Tenho a tendência de colocar as minhas feições naquilo o qual já estou acostumado. Tendemos a nos acostumar com os eventos. Isso gera conforto. Ao falarmos de determinado acontecimento, determinado lugar, determinada pessoa, buscamos sempre emitir uma opinião que mostra mais a mim do que aquilo de que busco falar. É velha máxima que "aquilo que Pedro fala de Paulo, diz mais sobre Pedro do que de Paulo". Mas o outro é sempre o outro. O outro é possibilidade.

Somos treinados a entendermos que o outro é o "errado", que outro é "o inferno". O outro é "o louco", o "suicida". O "burro", o que "nada sabe", "o imoral". E nós, os detentores da virtude. O outro é sempre território a ser colonizado pela minha ingerência, pela força de minha fala, de minha impulsividade. Assim, qualquer debate, possibilidade de diálogo torna-se algo impensado. Se o diálogo é um exercício praticado por sujeitos maduros e que praticam o respeito mútuo, o diálogo com o fascismo é algo impraticável. Pois a diversidade, o plural, as várias faces de uma ideia, de um assunto não cabem na agenda do fascista.

Dificuldade instala-se pelo fato, como afirma o livro, de que "a política é uma experiência da linguagem". Ela é gestada no encontro. Na sobriedade dialética de sujeitos que entrelaçam a possibilidade de compreensão em um mundo em que sujeitos celebram o entendimento. O diálogo é a celebração da capacidade de respeitar o outro. Quando não há diálogo, o potencial febricitante do conflito pode se tornar em violência, sendo que esta pode se ramificar de diferentes formas.

O livro de Márcia Tiburi é para ser pensado, debatido; para se tornar fonte para leituras constantes. à medida que ia lendo, marquei os capítulos que mais me chamaram a atenção. Pretendo voltar a visitá-los de forma avulsa em momentos não programados. A reflexão da Márcia é provocativa e necessária.

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