domingo, setembro 18, 2016

Sobre "A civilização do açúcar", algumas palavras

"Todos os momentos do cotidiano do açúcar marcavam-se pela presença do escravismo".

Antes que iniciasse o processo de industrialização com o desenvolvimentismo de Vargas, na década de 30 do século XX, a história econômica do Brasil sempre foi marcada pela monocultura agrária. Essa monocultura revelava a ausência de projetos da Metrópole para a Colônia e, mais tarde, da burguesia nacional dependente para com o país. 

Até 1930, o café era o principal produto exportado. Com a quebra da Bolsa de 1929, veio também o naufrágio de um  arranjo político, ou seja, o próprio naufrágio da República Velha (1889-1930). Antes disso, por quase duzentos anos, o açúcar foi o produto que envidou os maiores esforços da Coroa Portuguesa em relação a uma otimização que forçasse uma superprodução da Colônia. 

O açúcar construiu uma dinâmica social na Colônia. Foi o produto que se alastrou por vastas regiões do Nordeste brasileiro. A produção demandava uma mão-de-obra considerável. E é justamente daí que notamos sair, do açúcar, um modelo social que até hoje possui os efeitos na sociedade brasileira. 

Ao chegar ao Brasil, em 1500, Portugal não se direcionou prontamente à exploração das novas terras americanas. Foi somente após trinta anos, que houve um encaminhamento administrativo a fim de tornar a Colônia em algo rentável. O Brasil não foi visto como um país em que se podia começar um projeto de construção social equilibrado. A vasta região com florestas densas, rios enormes, um litoral belíssimo, com paisagens exuberantes, com uma pluralidade climática, passou a ser visto como uma "mina" capaz de enriquecer a mambembe nobreza portuguesa. A espoliação foi a estratégia; o saque, o modo de condução. O pacto colonial sujeitou o Brasil a uma relação servil com a Metrópole. A relação estabelecida impedia que houvesse qualquer possibilidade de organização social e administrativa da Colônia. Sua função era enriquecer a todo custo Portugal. Era como uma galinha dos ovos de ouro, que tinha que produzir cada vez mais, alimentada com palha. Oswald de Andrade percebeu isso muito bem em seu genial, picaresco poema:

Quando o português chegou
Debaixo duma bruta chuva
Vestiu o índio
Que pena!
Fosse uma manhã de sol
O índio tinha despido
O português.

As terras nacionais foram fatiadas e entregues aos donatários no sistema chamado de capitanias hereditárias. A capitania era uma mera otimização geográfico-administrativa cuja finalidade era tornar a "empresa colonial" mais rentável. 

Assim, o primeiro produto que surgiu foi o açúcar. Junto com essa mercadoria, surgiu uma estrutura social em torno desse produto. O engenho, lugar de produção do açúcar, consolidou, organizou a sociedade entre aqueles que se beneficiavam do cultivo e produção da cana-de-açúcar e aqueles que viviam à margem, sendo explorados nessa produção. Desde o princípio, ficou bem claro que os sujeitos vindos de Portugal não estavam dispostos a realizaram qualquer trabalho braçal. A contratação de trabalhadores também não gerou interesses. 

Dessa forma, Portugal buscou arranjar de outras formas "os braços" que moveriam as engrenagens econômicas da Colônia. O escravo passou a ser essa força, transformada em animal que só produzia. Era arrancado de sua cultura de forma violenta e desafricanizado. O transporte nos navios negreiros era realizado de forma desumana. Uma vez na Colônia, chegava a trabalhar doze horas ininterruptas. Dormia em condições adversas. Comia mal. Não era respeitado como um ser humano. Era comparado aos animais. Era uma propriedade do seu senhor, assim como os bois e os cavalos que pastavam nos campos. A vida útil de um escravo era de, no máximo, dez anos de trabalhos intensos. O número de escravos definia o status de um branco, assim, como hoje, o carro que temos revela um dado padrão social. Do comer ao vestir; do amamentar ao deslocar-se em uma liteira, era o escravo a figura que movia a sociedade. O trabalho manual, transigente e braçal jamais era realizado por um sujeito branco, tido como livre. Buscava-se qualquer ocupação, menos aquela que fizesse confundir o sujeito branco e livre com o escravo. Talvez, venha desse fato a gradação em torno da ideia de trabalho no Brasil. Geralmente, o trabalho intelectual é visto como mais digno do que o trabalho manual. O arquiteto é melhor avaliado que a faxineira na escala social. Em determinadas profissões (direito, medicina, psicologia), o sujeito que as exerce recebe o título de "doutor". Alguns setores da sociedade, principalmente as elites e a classe média, sedimentam muito bem essa relação.

Criou-se, assim, aquela denominação que Gilberto Freire intitula em seu livro mais famoso - a casa-grande e a senzala. A casa-grande era o lugar aristocrático por excelência. Era um espaço amplo, com um alpendre largo; colocada em lugar alto e ventilado; aglutinadora da família do senhor de engenho, que possuía as suas regras e erigia a imagem do chefe da casa como um senhor feudal. Os engenhos eram mini-feudos.  Um espaço de suseranagem e vassalagem.

Ora, uma ordem social perversa como esta, não resultará em um país organizado e solidário para com os seus cidadãos. O intelectual Jessé Souza, autor de A ralé brasileira e A tolice da inteligência brasileira, afirma que reside na ordem social brasileira uma concepção fecundada em Santo Agostinho de forte influência platônica. Possuímos o mundo do espírito, das coisas sublimes e o mundo feio da matéria, cuja constituição se efetiva com as "coisas" de menor valor e virtude. De um lado temos as elites, que preconizam a virtude, o ideal de beleza, de virtude, de ética; nesse mundo habitado pelos ricos e senhores, tudo parece resplandecer em beleza, em uma forte afirmação daquilo que é bom e legitima o bem. Por outro lado, o mundo material é o mundo da carne, do sexo, dos escravos, do trabalho, da dureza cotidiana; o mundo habitado pela mulheres, pelos homossexuais, pelas periferias. É o mundo feio, pecaminoso, que provoca azo para repulsa. 

A sociedade brasileira é violenta e perversa nesse sentido. A desigualdade possui um fundamento econômico, mas possui um forte fundamento teológico. Ao escrever A civilização do açúcar, Vera Lúcia Amaral Ferlini queria revelar onde está a gênese de nosso modo de ser. É olhando o passado que encontramos os indícios daquilo que somos no presente. 

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