“Por que estradas caminhei, monge hirto das desilusões, conhecendo os gelos e os fundamentos da Dor, dessa Dor estranha, formidável, terrível, que canta e chora Réquiem nas árvores, nos mares, nos ventos, nas tempestades, só e taciturnamente ouvindo: Esperar! Esperar! Esperar!”
Cruz e Sousa
Passei quase três meses lendo a biografia sobre o poeta catarinense Cruz e Sousa, escrita por Uelinton Farias Alves. O livro é sem sombras de dúvidas um dos melhores já produzidos sobre o autor simbolista. É fruto de uma pesquisa exaustiva, sóbria, profunda, crítica, honesta. Acredito que faça jus à importância do poeta. Há ainda inúmeros fatos enevoados sobre o “Dante Negro” como ficou conhecido pelo brilhantismo com que manejava a palavra.
O garoto João estudou no Liceu Catarinense, a melhor escola da província. Recebeu esmerada educação em latim, grego e francês. Além disso, estudou com alemão Fritz Müller, um botânico e entusiasta das ideias de Charles Darwin. É possível observar o quanto essa formação foi fundamental para o poeta. Sem isso ele não teria chegado tão longe na máquina de moer gente que era a sociedade escravista do século XIX, cujos índices de analfabetismo eram altos. As escolas eram frequentadas pelos filhos das elites – barões, militares graduados, donos de terra, políticos etc. Poucos negros conseguiam um lugar ao sol.
Um fato, por exemplo, execrável ocorreu em 1883. Recomendado como promotor para o município de Laguna, foi recusado por ser negro. Esses episódios se repetiriam ao longo de sua vida. É possível que tenha se dado mesmo com a sua literatura. Em um país de negros, mulatos e miscigenados, o preconceito era uma realidade experimentada em diversos setores da sociedade. Como conceber um negro culto, capaz de dominar francês e latim em país que experimenta um apagão nas letras?
Participou de diversos periódicos. Chegou a fundar um, mas que não teve vida longeva. Foi preciso sair de sua cidade natal e viver o desterro. Migrou para o Rio de Janeiro, capital do Império e, mais tarde, da República. Procurou participar do centro convulsivo da intelectualidade Brasileira. Afinal, no Rio de Janeiro viviam Machado de Assis, um mulato reservado e que, apesar da fama e da origem, prefere o indiferente silêncio a manifestar publicamente qualquer simpatia a Cruz e Sousa, mesmo nos momentos mais críticos da vida do poeta. No Rio, vivia Olavo Bilac, que“limava” os seus versos como parnasiano que vivia em torre de marfim. Os críticos José Veríssimo, Silvio Romero e Araripe Junior. Mesmo José do Patrocínio, é-lhe indiferente.
Todavia, não estava sozinho. Nestor Vitor e Oscar Rosa são figuras fundamentais. Eles sempre estão presentes dos momentos mais complexos da vida do poeta. Até mesmo na hora da morte, os dois acorrem para que o reconhecimento devido do poeta ocorra. No Rio de Janeiro, o poeta escreve incansavelmente. Sua produção era quase que industrial. Produzia textos em prosa e poemas. Era-lhe fácil, quase que corriqueiro sentar e escrever sonetos carregados de lirismo, de individualismo, de uma musicalidade incomum. Como nos famosos versos:
Soluços ao luar, choros ao vento…
Tristes perfis, os mais vagos contornos,
Bocas murmurejantes de lamento.
Noites de além, remotas, que eu recordo,
Noites da solidão, noites remotas
Que nos azuis da Fantasia bordo,
Vou constelando de visões ignotas.
Sutis palpitações à luz da lua,
Anseio dos momentos mais saudosos,
Quando lá choram na deserta rua
As cordas vivas dos violões chorosos.
Quando os sons dos violões vão soluçando,
Quando os sons dos violões nas cordas gemem,
E vão dilacerando e deliciando,
Rasgando as almas que nas sombras tremem.
Harmonias que pungem, que laceram,
Dedos nervosos e ágeis que percorrem
Cordas e um mundo de dolências geram
Gemidos, prantos, que no espaço morrem…
E sons soturnos, suspiradas mágoas,
Mágoas amargas e melancolias,
No sussurro monótono das águas,
Noturnamente, entre ramagens frias.
Vozes veladas, veludosas vozes,
Volúpias dos violões, vozes veladas,
Vagam nos velhos vórtices velozes
Dos ventos, vivas, vãs, vulcanizadas.
Tudo nas cordas dos violões ecoa
E vibra e se contorce no ar, convulso…
Tudo na noite, tudo clama e voa
Sob a febril agitação de um pulso.
Que esses violões nevoentos e tristonhos
São ilhas de degredo atroz, funéreo,
Para onde vão, fatigadas do sonho,
Almas que se abismaram no mistério. […]
Mais tarde, o antropólogo francês Roger Bastide diria que Cruz e Sousa foi um dos grandes simbolistas do mundo. E a grande questão é: como Cruz e Sousa conseguiu tão grande proeza? Como já afirmado, o poeta só conseguiu o reconhecimento após a sua morte, aos 36 anos de idade. Tuberculoso, em um gesto de desespero procurou as serras de Minas Gerais, junto com a sua esposa Gavita, grávida de quatro meses, a fim de procurar uma melhora para o seu estado deplorável de saúda. Hospedou-se em uma pensão, mas veio a óbito. Foi transladado em um vagão de trem que transportava animais. No cubículo fechado, sem janelas, o chão conspurcado pelas ejeções dos animais, o corpo violado pela tuberculose pesava cerca de 40 quilos. Apenas coberto por tecido ordinário, o trem descia tal qual uma serpente trazendo os restos mortais de um dos mais geniais poetas da língua portuguesa. Recebeu a alcunha de Dante Negro, de Cisne Negro, Diamante Negro, Magoado Eleito, Tedioso e Torturado Sonhador, Grandiosos e Imaculado Cenobita, Arcanjo Rebelado.
![]() |
O livro de Uelinton Farias Alves |
Conhecendo a sua vida, entendemos a afirmação de Bastide. A afirmação de que Cruz e Sousa fazia referências à cor branca por ser preto é uma grande aberração. Uso da palavra para o poeta seguia um método. Como diz Alfredo Bosi, o poeta era esquemático. Costumava usar “substantivos abstratos” e “processos sinestésicos” e o encadeamento de construções que mais o aproximava dos parnasianos. Cruz e Sousa não é parnasiano no conteúdo, mas o é na forma. Seus poemas são rigorosos. Se fazia poemas rigorosos e quase parnasianos, por que o poeta não logrou sucesso em vida? Responder essa pergunta não é tão fácil, mas existem algumas pistas:
(1) A questão racial. Cruz e Sousa era um homem negro. É possível que esse aspecto tenha chamado atenção e a barreira da cor tenha sido um elemento que criou um inevitável impedimento.
(2) O fato de o poeta não ser do Rio de Janeiro. Era um tipo de forasteiro. O julgamento talvez surgisse em forma de pergunta: “Quem é esse negro que veio de longe?” “Chegou ao nosso meio querendo causar”. A intelectualidade que domina também é formada por panelinhas.
(3) O fato de os poemas simbolistas não encontrarem lugar em um meio eivado de parnasianismo. À época de Cruz e Sousa, além do parnasianismo na poesia, o realismo e o naturalismo eram concepções estéticas que estavam em voga. O simbolismo era um tipo marginal de expressão estética. Enquanto na França havia capturado os intelectuais, no Brasil, ele ficou como elemento estético periférico. Além disso, os intelectuais brasileiros flertavam filosoficamente com o positivismo, rechaçado pelos simbolistas. O simbolismo procurava enfatizar o irracionalismo, a morte, o misticismo, a religiosidade, o satanismo, a sensualidade, a subjetividade acentuada (individualismo), a musicalidade, as sinestesias. Enquanto o naturalismo e o realismo fincavam o pé no mundo real, o simbolismo era transcendentalista à procura da forma, da intuição, do vago, do impreciso. Apalpava-se o vazio, um vazio repleto de elementos intangíveis, impermeáveis. Cruz e Sousa manifesta-se assim em seus famosos versos:
"Ó Formas alvas, brancas, Formas claras
De luares, de neves, de neblinas!...
Ó Formas vagas, fluidas, cristalinas...
Incensos dos turíbulos das aras..."
Após sua morte, houve uma espécie de conversão de alguns intelectuais à sua obra, embora outros permanecessem indiferentes e solenes, como é o caso de Machado de Assis. Sua alma angustiada e solitária alçava voos imaculados à procura da indizível forma. Em um mundo maculado pela indiferença, pela injustiça, pelo orgulho, sua rebelião se fazia por meio de seus versos trabalhados com disciplina e paixão.