segunda-feira, abril 28, 2025

Cruz e Sousa - impressões após uma leitura

 

“Por que estradas caminhei, monge hirto das desilusões, conhecendo os gelos e os fundamentos da Dor, dessa Dor estranha, formidável, terrível, que canta e chora Réquiem nas árvores, nos mares, nos ventos, nas tempestades, só e taciturnamente ouvindo: Esperar! Esperar! Esperar!” 

Cruz e Sousa

 Passei quase três meses lendo a biografia sobre o poeta catarinense Cruz e Sousa, escrita por Uelinton Farias Alves. O livro é sem sombras de dúvidas um dos melhores já produzidos sobre o autor simbolista. É fruto de uma pesquisa exaustiva, sóbria, profunda, crítica, honesta. Acredito que faça jus à importância do poeta. Há ainda inúmeros fatos enevoados sobre o “Dante Negro” como ficou conhecido pelo brilhantismo com que manejava a palavra.

Cruz e Sousa é um dos poetas mais marginais da história da literatura brasileira. Ao longo de sua curta existência, buscou incansavelmente o reconhecimento, que somente veio após a sua morte. Destinado a ser mais um negro em um país de escravos, Cruz e Sousa viola o determinismo histórico. Nascido em Santa Catarina, na cidade de Nossa Senhora do Desterro, atual Florianópolis (homenagem dada ao marechal Floriano Peixoto), de pais alforriados, Cruz e Sousa conseguiu, graças a uma boa educação patrocinada pelo ex-senhor dos seus pais, o marechal Guilherme Xavier de Sousa, um lugar de honra entre os intelectuais brasileiros. O militar lutara no Paraguai. O poeta também herdou dele o sobrenome Sousa.

O garoto João estudou no Liceu Catarinense, a melhor escola da província. Recebeu esmerada educação em latim, grego e francês. Além disso, estudou com alemão Fritz Müller, um botânico e entusiasta das ideias de Charles Darwin. É possível observar o quanto essa formação foi fundamental para o poeta. Sem isso ele não teria chegado tão longe na máquina de moer gente que era a sociedade escravista do século XIX, cujos índices de analfabetismo eram altos. As escolas eram frequentadas pelos filhos das elites – barões, militares graduados, donos de terra, políticos etc. Poucos negros conseguiam um lugar ao sol.

Um fato, por exemplo, execrável ocorreu em 1883. Recomendado como promotor para o município de Laguna, foi recusado por ser negro. Esses episódios se repetiriam ao longo de sua vida. É possível que tenha se dado mesmo com a sua literatura. Em um país de negros, mulatos e miscigenados, o preconceito era uma realidade experimentada em diversos setores da sociedade. Como conceber um negro culto, capaz de dominar francês e latim em país que experimenta um apagão nas letras?

Participou de diversos periódicos. Chegou a fundar um, mas que não teve vida longeva. Foi preciso sair de sua cidade natal e viver o desterro. Migrou para o Rio de Janeiro, capital do Império e, mais tarde, da República. Procurou participar do centro convulsivo da intelectualidade Brasileira. Afinal, no Rio de Janeiro viviam Machado de Assis, um mulato reservado e que, apesar da fama e da origem, prefere o indiferente silêncio a manifestar publicamente qualquer simpatia a Cruz e Sousa, mesmo nos momentos mais críticos da vida do poeta. No Rio, vivia Olavo Bilac, que“limava” os seus versos como parnasiano que vivia em torre de marfim. Os críticos José Veríssimo, Silvio Romero e Araripe Junior. Mesmo José do Patrocínio, é-lhe indiferente.

Todavia, não estava sozinho. Nestor Vitor e Oscar Rosa são figuras fundamentais. Eles sempre estão presentes dos momentos mais complexos da vida do poeta. Até mesmo na hora da morte, os dois acorrem para que o reconhecimento devido do poeta ocorra. No Rio de Janeiro, o poeta escreve incansavelmente. Sua produção era quase que industrial. Produzia textos em prosa e poemas. Era-lhe fácil, quase que corriqueiro sentar e escrever sonetos carregados de lirismo, de individualismo, de uma musicalidade incomum. Como nos famosos versos: 

Ah! plangentes violões dormentes, mornos,

Soluços ao luar, choros ao vento…

Tristes perfis, os mais vagos contornos,

Bocas murmurejantes de lamento.


Noites de além, remotas, que eu recordo,

Noites da solidão, noites remotas

Que nos azuis da Fantasia bordo,

Vou constelando de visões ignotas.


Sutis palpitações à luz da lua,

Anseio dos momentos mais saudosos,

Quando lá choram na deserta rua

As cordas vivas dos violões chorosos.


Quando os sons dos violões vão soluçando,

Quando os sons dos violões nas cordas gemem,

E vão dilacerando e deliciando,

Rasgando as almas que nas sombras tremem.



Harmonias que pungem, que laceram,

Dedos nervosos e ágeis que percorrem

Cordas e um mundo de dolências geram

Gemidos, prantos, que no espaço morrem…


E sons soturnos, suspiradas mágoas,

Mágoas amargas e melancolias,

No sussurro monótono das águas,

Noturnamente, entre ramagens frias.


Vozes veladas, veludosas vozes,

Volúpias dos violões, vozes veladas,

Vagam nos velhos vórtices velozes

Dos ventos, vivas, vãs, vulcanizadas.


Tudo nas cordas dos violões ecoa

E vibra e se contorce no ar, convulso…

Tudo na noite, tudo clama e voa

Sob a febril agitação de um pulso.


Que esses violões nevoentos e tristonhos

São ilhas de degredo atroz, funéreo,

Para onde vão, fatigadas do sonho,

Almas que se abismaram no mistério. […] 
 
Era notável a capacidade do poeta para criar sinestesias. Ele consegue isso por meio de aliterações, recurso que costumava usar em seus poemas. A aliteração é um recurso fônico que intensifica a musicalidade.

Mais tarde, o antropólogo francês Roger Bastide diria que Cruz e Sousa foi um dos grandes simbolistas do mundo. E a grande questão é: como Cruz e Sousa conseguiu tão grande proeza? Como já afirmado, o poeta só conseguiu o reconhecimento após a sua morte, aos 36 anos de idade. Tuberculoso, em um gesto de desespero procurou as serras de Minas Gerais, junto com a sua esposa Gavita, grávida de quatro meses, a fim de procurar uma melhora para o seu estado deplorável de saúda. Hospedou-se em uma pensão, mas veio a óbito. Foi transladado em um vagão de trem que transportava animais. No cubículo fechado, sem janelas, o chão conspurcado pelas ejeções dos animais, o corpo violado pela tuberculose pesava cerca de 40 quilos. Apenas coberto por tecido ordinário, o trem descia tal qual uma serpente trazendo os restos mortais de um dos mais geniais poetas da língua portuguesa. Recebeu a alcunha de Dante Negro, de Cisne Negro, Diamante Negro, Magoado Eleito, Tedioso e Torturado Sonhador, Grandiosos e Imaculado Cenobita, Arcanjo Rebelado. 
O livro de Uelinton Farias Alves

Conhecendo a sua vida, entendemos a afirmação de Bastide. A afirmação de que Cruz e Sousa fazia referências à cor branca por ser preto é uma grande aberração. Uso da palavra para o poeta seguia um método. Como diz Alfredo Bosi, o poeta era esquemático. Costumava usar “substantivos abstratos” e “processos sinestésicos” e o encadeamento de construções que mais o aproximava dos parnasianos. Cruz e Sousa não é parnasiano no conteúdo, mas o é na forma. Seus poemas são rigorosos. Se fazia poemas rigorosos e quase parnasianos, por que o poeta não logrou sucesso em vida? Responder essa pergunta não é tão fácil, mas existem algumas pistas:

(1)    A questão racial. Cruz e Sousa era um homem negro. É possível que esse aspecto tenha chamado atenção e a barreira da cor tenha sido um elemento que criou um inevitável impedimento.

(2)    O fato de o poeta não ser do Rio de Janeiro. Era um tipo de forasteiro. O julgamento talvez surgisse em forma de pergunta: “Quem é esse negro que veio de longe?” “Chegou ao nosso meio querendo causar”. A intelectualidade que domina também é formada por panelinhas.

(3)    O fato de os poemas simbolistas não encontrarem lugar em um meio eivado de parnasianismo. À época de Cruz e Sousa, além do parnasianismo na poesia, o realismo e o naturalismo eram concepções estéticas que estavam em voga. O simbolismo era um tipo marginal de expressão estética. Enquanto na França havia capturado os intelectuais, no Brasil, ele ficou como elemento estético periférico. Além disso, os intelectuais brasileiros flertavam filosoficamente com o positivismo, rechaçado pelos simbolistas. O simbolismo procurava enfatizar o irracionalismo, a morte, o misticismo, a religiosidade, o satanismo, a sensualidade, a subjetividade acentuada (individualismo), a musicalidade, as sinestesias. Enquanto o naturalismo e o realismo fincavam o pé no mundo real, o simbolismo era transcendentalista à procura da forma, da intuição, do vago, do impreciso. Apalpava-se o vazio, um vazio repleto de elementos intangíveis, impermeáveis. Cruz e Sousa manifesta-se assim em seus famosos versos:

"Ó Formas alvas, brancas, Formas claras

De luares, de neves, de neblinas!...

Ó Formas vagas, fluidas, cristalinas...

Incensos dos turíbulos das aras..."

Ou seja, filosófica e esteticamente o poeta não atendia aos requisitos para entrar no clube dos intelectuais cariocas. É preterido quando da formação da Academia Brasileira de Letras. Machado, o grande idealizador da confraria, imitando a Academia Francesa, não realiza nenhuma distinção ao poeta. Desse modo, a vida do poeta foi marcada pela preterição. Ao longo do tempo, sua obra ganhou visibilidade graças aos esforços dos amigos.

Após sua morte, houve uma espécie de conversão de alguns intelectuais à sua obra, embora outros permanecessem indiferentes e solenes, como é o caso de Machado de Assis. Sua alma angustiada e solitária alçava voos imaculados à procura da indizível forma. Em um mundo maculado pela indiferença, pela injustiça, pelo orgulho, sua rebelião se fazia por meio de seus versos trabalhados com disciplina e paixão.

terça-feira, abril 01, 2025

Um encontro

Cena do filme "Rapsódia em agosto", de Akira Kurozawa
 

               “Não existe morte natural. Nada que acontece a um homem é natural, já que sua presença coloca o mundo em questão”.

Simone de Beauvoir

Nestes dias iniciais de 2025, estou passando alguns dias na minha terra de nascimento; aquilo que os antigos chamavam de “pátria”, “a terra dos pais”. É muito representativo realizar esse tipo de visitação. Ajuda-me a entender certos fenômenos, certos pensamentos; a organizar os sentimentos; a compreender a maneira como ajo; meus silêncios, minhas dúvidas, medos e minha disposição incansável para a casmurrice. Alguns fatos são admitidos ou compreendidos após o trabalho do tempo.

Esta semana, fui com minha mãe visitar aquela que é considerada minha madrinha. Há uma tradição entre os nordestinos e, talvez, em outras regiões do Brasil de, por estimação, dar o filho, quando este nasce, para que alguém seja padrinho ou madrinha. Tal escolha reflete um tipo de honra e potencializa laços de fraternidade. Evidencia-se nessa ação um certo lastro virtuoso, pois certas qualidades precisam ser analisadas. Geralmente, a escolha solidificará ainda mais a amizade entre as partes envolvidas. As gerações mais novas não entendem o significado desse tipo de escolha. O costume tem se perdido ao longo do tempo.

Não atribuo muita relevância a esse tipo de tradição, mas respeito o seu significado. Convocado por minha mãe, fui de maneira cordata. Era uma questão de honra que eu fosse visitar a comadre Bil. Cheguei à casa pequena, no bairro do Cajá, em Vitória de Santo Antão – minha cidade. A casa onde já estivera antes, é pequena, acanhada, despojada de conforto, espremida entre outras casas semelhantes. A rua de pedra irregular é estreita. Ao chegar, os vizinhos ficaram observando quem eram os forasteiros. Suas três filhas nos recepcionaram. Depois das amenidades iniciais, fui conduzido ao quarto para poder falar com ela. Em um espaço pequeno, abafado, sentada sobre uma cama, ela se encontrava. Acometida por uma cegueira, resultante de um glaucoma, comadre Bil aguardava com o seu aspecto pequeno e frágil. Falamos rapidamente. Dei a benção a pedido de minha mãe – um gesto que indicador de respeito. Aquiesci por entender o que o momento representava. Minha mãe – parece que intencionalmente saiu; fiquei sozinho com aquela figura pequena, habitada por memórias e vivências. Fazia um bom tempo que eu não dirigia a palavra àquela pessoa que se encontrava sobre cama, em um espaço exíguo, de aspecto encurvado. Olhei buscando resgatar outras memórias. Imagens dela ainda jovem. A memória não realizou exercício tão promissor.

Narrou-me com sua fala ordeira e contada, uma multidão de fatos. Passeamos pelo passado. Ela contou sobre como se tornou vizinha do meu avô, quando tinha dezenove anos de idade. Descreveu pormenores sobre os meus tios com uma desenvoltura bíblica. Falou sobre as árvores frutíferas que cultivara em seu sítio, antes da mudança para Vitória de Santo Antão, algo que se deu há quase quarenta anos.

Tenho memórias esparsas de como era a sua casa. A sala com plantas. Algumas trepadeiras. Suas filhas costumavam passar óleo de soja nas folhas para que elas brilhassem. O chão limpo. Os sofás rústicos. A imagem dela e do meu padrinho desenhada na parede. O bigode desenhado do meu padrinho. O corredor que levava à cozinha. Na caminhada que se fazia da sala à cozinha, era possível passar por dois ou três quartos. Um pano ordinário fazia o papel de cortina. Não era possível enxergar nada. Eram furnas misteriosas. Minha memória não consegue fixar nenhuma forma naquele espaço. A cozinha também é um espaço, em minha memória, sem móveis; não consigo formular qualquer silhueta de qualquer coisa.

A porta era daquelas com dois compartimentos. Era possível abrir a parte de cima e deixar a parte de baixo fechada. Da cozinha, era possível enxergar, do lado direito, uma ampla porção do sítio. Em certa ocasião, em um mês bastante chuvoso, aconteceu um episódio que permanece em minha cabeça. João Severo, meu padrinho, plantou um pé de banana nanica. Com a chuva, o adubo e a boa terra, a planta deu um cacho de banana enorme. A planta inclinava-se para o chão. O pé da planta era sustentado por uma estaca, que foi providenciada para que a planta não viesse abaixo. Em um dia qualquer, uma torrencial chuva, seguida de um vento uivante, ameaçava derrubar o pé de banana. Seria uma grande perda. Estávamos todos na cozinha. João Severo ao constatar o que estava para acontecer, saiu em disparada a fim de remediar o que parecia inevitável. Ele desejava firmar outra estaca. A chuva grossa e o vento vigoroso davam a aparência ao meu padrinho de uma figura pequena que lutava contra forças ancestrais. A camisa aberta e o chapéu de palha conferiam à sua aparência o aspecto de um xógum que enfrentava as forças naturais com bravia inteligência e resistência. Não lembro qual foi o desfecho da luta.

Relaciono a cena de João Severo em sua luta particular, épica, para não permitir que o pé de bananeira viesse a pique, por causa dos golpes lancinantes que tomava das forças naturais, com imagem da senhora pequena e frágil que caminha empunhando um guarda-chuva, em meio à tempestade, do filme “Rapsódia em agosto”, de Akira Kurozawa. A delicada figura curvada avança inexpugnável, decididamente. Tudo é grande para ela. Associo o meu padrinho a essa imagem. Sua teimosia resistente contra o vento rodopiante e a chuva espessa era a luta do pescador de “O velho e o mar”, de Ernest Hemingway. Enquanto conversava com ela, esses temas passavam pela minha cabeça como cenas de um filme.

Com 78 anos de idade, impedida de caminhar (perdeu o movimento das pernas, após uma queda e uma cirurgia sem sucesso), cega, ela depende das filhas. A certeza que me ficou é que há memórias vivas dentro dela. Sua lucidez é um farol na noite escura em que vive. O corpo impôs certos condicionamentos. Impedida de ver, ela lembra; sem possibilidades de locomoção, ela demonstra uma ambivalência entre a necessidade e a suficiência.

Fiquei com sua imagem pequenina. Impactou-me vê-la daquela forma. Daí, volto à frase de Beauvoir: “nada que aconteça ao homem é natural”. Somos mais que os determinismos biológicos do corpo. Todavia, só podemos ser no corpo. Dessa forma, somos a mistura da fragilidade corpórea com a potência dos afetos, ou seja, daquilo que nos faz ser e existir.

Suas filhas disseram à minha mãe que ela chorou bastante quando fomos embora. Disse que gostou de ter conversado comigo. Verbalizou que gostaria de ter me visto, constatado como eu estou fisicamente.

Escrito em janeiro de 2025, em Vitória de Santo Antão-PE

segunda-feira, março 10, 2025

"O primo Basílio", de Eça de Queiroz.


Terminei a leitura de o “O primo Basílio”, de Eça de Queiroz. Confesso que estava precisando ler algo como o texto do escritor português. O livro é uma radiografia sobre os costumes da época em que foi escrito. Dentro das produções do autor português, o livro foi o segundo escrito pelo autor. O primeiro foi “O crime do padre Amaro”, de 1876. “O primo Basílio” é do ano de 1878.

Eça não é original. É possível observar que há forte influência do romance francês. Flaubert dita-lhe o esquema. Zola também é uma outra força que usa para criar os seus personagens. Não poderia ser diferente. Essas forças estéticas estão presentes em boa parte das produções romanescas do final do século XIX. Com Eça não poderia ser diferente. Ele procura ser um crítico, um dissecador dos costumes morais. Procura desnudar os vícios ocultos da burguesia e da pequena burguesia lisboeta. Nesse sentido, pode-se afirmar que ele senta à mesa e olha a paisagem como um observador cientificamente atento. O romance traz um narrador onisciente e em terceira pessoa.

A história possui um esquema. E isso pode ser observado no primeiro capítulo. Ele procura apresentar ao leitor quem são as personagens, os ideais, os vícios e os maneirismos. De alguma forma, a tese se desenha ali. Como em outros escritores realistas, Eça aborda o adultério e com isso procura colocar em destaque o papel da mulher. Flaubert já fizera isso – em 1856 – com Madame Bovary, um dos casos de adultério mais famosos da literatura. Nesse sentido, não há originalidade no romance eciano. Ele transporta para Portugal a estética realista a fim de expor provincianismo lisboeta, bem como suas doces contradições. O realismo propunha-se a isso.

O escritor realista é objetivo. Era sua intenção retratar da maneira mais fiel os vícios de determinada sociedade. Ele pode fazer isso de maneira sutil, realizando insinuações, como bem fez Machado de Assis aqui no Brasil. Dom Casmurro é um exemplo disso. Não há descrições de adultério, mas há a tese do adultério, há a rebaixada condição da mulher. O realismo de Eça segue para outra direção. Ele se apropria de elementos naturalistas para descrever certas passagens do romance. O objetivo dessa estratégia é inserir o leitor em uma atmosfera crua, em que a realidade se mostra da maneira mais eficaz. Com o realismo, escuta-se que, quando se está doente, é necessário que se faça uma cirurgia. Com o naturalismo, o interlocutor é levado ao próprio local da cirurgia a fim de que ela seja explicitamente constatada. Assim, O primo Basílio é um romance realista, mas repleto de passagens de crueza naturalista.

A história aborda a traição de Luísa. Bonita, ingênua, Luísa é o protótipo da personagem romântica. Ela acredita na paixão, nos arroubos, nas promessas feitas pelo indivíduo apaixonado, no caso, seu primo denominado Basílio. Jorge, esposo de Luísa, engenheiro bem-sucedido, viaja a trabalho. Passa largos meses fora de casa. Nesse ínterim, Luísa recebe a visita de seu primo recém-chegado do Brasil, onde enriquecera. Voltava luzidio. É evidente o seu desejo de possuir Luísa com quem já tivera um namorico em tempos passados. O reencontro fê-los reavivar o estampido da paixão. Luísa entrega-se completamente a ele. Trocam cartas apaixonadas.

Algumas dessas cartas são interceptadas por Juliana, uma das personagens que melhor demonstram um aprofundamento psicológico por parte do autor. O narrador procura nesse ponto torná-la uma opositora. Sua posição é de firme contraste, de ódio e ressentimento contra a patroa. Juliana representa os pequenos humilhados. Sua intenção com a perpetrada chantagem contra a patroa é conseguir valores financeiros que pudessem dar a ela uma certa tranquilidade na velhice. Inicia-se um jogo complicado entre as duas personagens.

Basílio, por sua vez, é o dândi vazio, oportunista. Assume o papel do canalha, do embusteiro. Ele responsabiliza Luísa pelo fato de a empregada ter furtado as correspondências. Sua preocupação é em poder usufruir das belezas do corpo de Luísa. Não seguirei com desfecho da relação entre os dois para que não sejam entregues os desfechos da obra.

Há outros personagens relevantes e marcantes que aparecem como fatos sociais. Um deles é conselheiro Acácio. Vale mencionar que conselheiro era um título ofertado pela nobreza portuguesa. Ele recebeu tal encômio pelos serviços prestados ao Estado. Acácio é a representação do banal, do inexpressivo. Veste-se de uma pompa sem conteúdo. Gosta das frases eloquentes, mas de pouco valor. É hipócrita em seu moralismo exemplar. Julião, o estudante de medicina, que procurava um lugar ao sol. É invejoso e interesseiro. Leopoldina é a adúltera assumida e, por isso, recriminada; possui uma má reputação.

Além disso, é importante refletir sobre a condição da mulher no século XIX a partir das lentes do autor português. O romance faz-nos refletir sobre como o casamento funcionava como um excelente negócio para os homens. Observe-se que, na obra, Jorge empreende uma relação extraconjugal, no período em que se encontrava fora de casa, a trabalhar no Alentejo. Todavia, ele passa desapercebido. Não faz parte do debate. O homem possui quase que um direito natural quando realiza essa incursão fora do casamento. Ele é compreensivelmente justificado. Luísa, por sua vez, é a figura que sofre as agruras da prisão psicológica. Recai sobre ela todo o peso das cobranças sociais.

Luísa é uma personagem frágil, sonhadora, sentimental; ela encarna o padrão feminino da mulher que esperava, quando jovem, juntar-se ao seu homem e experimentar os idílios somente encontrados nos romances de cavalaria. Percebe-se no romance que Luísa é uma grande leitora do escritor Walter Scott. O escritor inglês ficou famoso pelos romances ambientados na Idade Média, repletos de ideais heroicos. Afastadas da vida pública, da vida produtiva, do comércio, da cultura, da vida política, as mulheres eram ensinadas – desde cedo – a esperarem pelo “príncipe encantado”; ou seja, pela figura imarcescível que a conduziria ao ideal paraíso da felicidade.

Basílio desperta a paixão em Luísa pelo fato de ter acendido esses sentimentos de que ela era a mulher mais perfeita. O ludibrio a abocanhou por tudo de doce que ouviu do primo mau-caráter. Assim, Eça constrói personagens femininas repletas das estereotipias típicas do século XIX. As personagens femininas – no geral – carregam consigo uma disposição moral questionável e mobilizada a partir daquilo que esperavam dela e do papel social que passam a ocupar – Luísa é a adúltera; Juliana é a figura magra, feia, ossuda, chantagista, ambiciosa e que nunca se casara; Leopoldina é a adúltera e pervertida; D. Felicidade vive à cata de um casamento aos cinquenta anos, o que demonstra, do ponto de vista moral e social, uma perversão digna de ser reprovada.

O romance demonstra, na pessoa de Luísa, alguém que não se rebela. Eça mirou para os costumes da burguesia lisboeta, mas quem pagou um altíssimo preço foi Luísa. Ela morre de uma “febre mental”. A personagem é atravessa pelo remorso. Em “O primo Basílio”, os costumes de uma sociedade caduca e contraditória são expostos. Todos os personagens padecem; mas, as personagens femininas padecem mais que os outros.

quarta-feira, março 05, 2025

De que são feitos os dias? | Cecília Meireles

De que são feitos os dias?
– De pequenos desejos,
vagarosas saudades,
silenciosas lembranças.

Entre mágoas sombrias,
momentâneos lampejos:
vagas felicidades,
inatuais esperanças.

De loucuras, de crimes,
de pecados, de glórias
– do medo que encadeia
todas essas mudanças.

Dentro deles vivemos,
dentro deles choramos,
em duros desenlaces
e em sinistras alianças…

 

Acredito que este seja um dos poemas que mais concentram o mistério de que é feita a vida. Cecília consegue criar paralelos, oscilações, fluxos antitéticos, que englobam o conteúdo da existência. Camus diz em "O mito de Sísifo" que só 'vive quem toma consciência do absurdo'. Sim. Vive quem consegue lidar com o absurdo das perdas proporcionadas pelo tempo; que consegue administrar as "vagarosas saudades" e as "silenciosas lembranças"; que se escancara - incompreensível - diante de si.

A existência só se torna plena para quem reconhece ser um vulcão gerador de "mágoas sombrias", mas que é capaz de "pequenos lampejos", de "vagas felicidades" e de "inatuais esperanças". Somos feitos de contradições, de movimentos inconscientes, gestados da cumplicidade daquilo que, muitas vezes, não controlamos e não sabemos da sua textura. A vida absurda é feita "de loucuras", "de crimes", "de pecados", "de glórias", de fracassos, de avanços... e retrocessos. Somos feitos "de medo". Misturamos muitas substâncias em nosso ser. Distraímo-nos a maior parte do tempo. Dentro dessa realidade "vivemos", avançamos, "choramos" com as resoluções desencontradas e, com isso, forjamos "sinistras alianças".



domingo, março 02, 2025

"Ainda estou aqui" - livro e filme

Li em janeiro "Ainda estou aqui", do escritor Marcelo Rubens Paiva. O livro inspirou o filme de Walter Salles. A leitura do livro se deu de maneira intensa, sem que pudesse desgrudar do seu texto. Escrito com forte sabor jornalístico, a história produz emoções variadas. Aos poucos, somos puxados para testemunharmos as particularidades daquela família de classe média  - tão comum, tão feliz - moradora do Leblon, um dos bairros mais famosos do Rio de Janeiro. Marcelo conta a história em camadas, até o desfecho central da história, que é a prisão e o sumiço do pai; e o jogo macabro de versões contado covardemente pelos verdugos da Ditadura; bem como a transformação pela qual sua mãe precisou enfrentar para conseguir continuar após a morte do marido. 

Hoje, tive a oportunidade de assisti ao filme encenado magistralmente por Fernanda Torres. Walter Salles, com uma condução impecável da história, conseguiu verter a história do livro para o cinema. Há toda uma expectativa criada - talvez - pela mídia acerca da possibilidade de o filme ganhar o Oscar de melhor filme estrangeiro. Acredito que isso não acontecerá. Não é o tipo de filme que Hollywood aplaude. Não há pirotecnias, espetacularizações, não há sangue, efeitos especiais na obra. Há, sim, a retratação da violência do Estado contra uma família. Há, sim, o luto, a dor, o medo e um tipo de "tortura" infringida à família que ficou. Eunice Paiva lutou para que a memória do seu companheiro não fosse obliterada. 
 
Medonho é saber que até hoje pouca coisa foi feita. Nenhum dos algozes foi preso ou sofreu qualquer punição. Três deles já morreram. Medonho é saber que há pessoas no país que se esforçam para que isso volte; que salivam, que riem, que fazem vista grossa à dor dos familiares enlutados. O filme presta um triplo serviço: (1) faz uma alerta para que o país nunca mais experimente um período como aquele; (2) presta uma homenagem a Eunice Paiva, que lutou pelo resgate da memória do seu marido; (3) honra a memória de Rubens Paiva, morto covardemente pelos algozes da Ditadura. 

Sei que o filme não ganhará qualquer estatueta, mas torceremos pela  pela maravilhosa Fernanda Torres, que rouba a cena. 


sexta-feira, janeiro 10, 2025

"Iaiá Garcia", de Machado de Assis.

 


                “O que ele tinha diante de si eram os campos infinitos da esperança”.

 

“Iaiá Garcia” é o quarto romance escrito por Machado de Assis. Pertence à fase conhecida como romântica. Ao longo desse período, além de “Iaiá Garcia”, Machado havia escrito “Ressurreição”, “A mão e luva” e “Helena”. O escritor conciliava a produção romanesca e a poética.  “Crisálidas” e “Americanas” são dois dos seus livros de poesia desse período. Além disso, o escritor buscava administrar uma vida bastante agitada, de muito trabalho; e enfrentava sensíveis problemas de saúde, que se complicavam por causa dos efeitos colaterais das incipientes medicações do século XIX. No final dos anos 70 daquele século, Machado completaria quarenta anos. Entraria na sua fase madura, ou seja, quando as grandes obras começariam a ser escritas.

Dos quatro romances iniciais do autor, “Iaiá Garcia”, certamente, é aquele em que já se percebe o grande escritor que surgiria a partir de 1881, quando da publicação de “Memórias Póstumas de Brás Cubas”. O romance “Iaiá Garcia” foi escrito ao longo do ano de 1877; todavia, só foi publicado no início de 1878, na Revista Cruzeiro para a qual Machado passou a escrever. Ou seja, trata-se de um romance folhetinesco.

Sua recepção foi morna. O livro é bem construído, há boas análises psicológicas; há aquele rigor machadiano. Sua arquitetura é boa. Pode-se dizer que é perfeita. Machado havia dominado a escrita texto romanesco. Já havia ali cintilações do Machado maduro. O triângulo amoroso entre Iaiá, Jorge e Estela possui aquelas reviravoltas típicas do romantismo. Os textos eram publicados em porções – capítulo a capítulo. Tinham uma ampla constelação de leitores, principalmente do sexo feminino. As moças casadoiras ficavam enlevadas com as reviravoltas; com as intrigas oriundas dos conflitos entre as personagens. Os conflitos eram amorosos. Sobressaíam os vícios escondidos nas aparências sociais – ciúmes, ganância, interesse, orgulho etc. 

No Machado da segunda fase – também conhecida como fase realista -, nota-se um aprofundamento da caracterização das personagens. E como diz Daniel Piza, isso “significa maior rede de implicações aos assuntos, tanto sociais e econômicos como morais e filosóficas”.  Três anos pós a publicação de “Iaiá Garcia”, o escritor carioca publicaria o livro que seria o marco divisor da literatura brasileira – “Memórias Póstumas”. O livro tira o autor dos esquematismos e lança no terreno das grandes questões humanas. Machado passa a ser o senhor das sutis ironias. Cada um dos seus textos que saem após o lançamento de “Iaiá”, funcionam como estudos sobre a condição do psicológica e filosófica do ser humano, bem como assume uma postura crítica e sardônica às questões nacionais. Brás Cubas é o retrato da burguesia nacional. 

Machado aos 68 anos de idade

No livro de 1878, observa-se o quanto Machado estava preso aos esquemas edulcorados. Nesse mesmo ano, em Portugal, Eça de Queirós publicou o demolidor O primo Basílio, uma obra cuja contundência fez a burguesia urbana olhar para os próprios pecados, para as próprias feiuras. O realismo ganhava forma. Não seria possível, após três anos repetir a mesma fórmula dos quatro primeiros romances. As várias contribuições em periódicos com contos, crônicas, resenhas e outras publicações, funcionaram como exercício para aquilo que ele seria depois.

“Iaiá Garcia” é um bom livro. Os personagens são previsíveis. Há aquele movimento típico das moças sonhadoras com o casamento, que funciona como mecanismo de ascensão social. Há o indivíduo macho (o herói), que enfrenta vicissitudes e agruras impensáveis até ficar com a moça que se mostra como uma estrela distante e inatingível; e após as voltas que o mundo dá, ela acaba por encontrar aquele que a perseguia. Trata-se de movimento circular que acaba por criar certa indisposição à medida que se vai lendo.

Apesar de ser Machado de Assis, sabe-se aonde aquilo vai chegar. Na fase madura, o escritor passou a conduzir os textos romanescos de outra forma. Quase sempre, a condução leva a caminhos inopinados. O herói não possui mais o esquematismo previsível. O que passa a vigorar é o devir, pois, afinal, a vida é feita de movimentos incertos e contraditórios. Essa é a mais fina ironia; e Machado capturou como ninguém essa máxima do universo.