quarta-feira, dezembro 26, 2007

Sobre a religião

Andei refletindo sobre a religião este final de semana. O final de ano se apresenta como um momento para reflexões, análises, promessas, eminentemente. Como não poderia deixar de ser, a religião se mostra como uma prática que une o indivíduo aos seus desejos mais íntimos. Afinal as promessas, desejos, fantasias, expectativas são gestadas e alimentadas por uma profunda unidade mística do ser com o mundo empírico. A religião é a força que impulsiona o ser na direção das suas conquistas.


Falar sobre minha preferência religiosa é algo complexo, pois a crença em algo é um universal humano. Pelas nomenclaturas identificáveis posso ser denominado como cristão protestante. O ser humano não se contenta apenas com a explicação da matéria em si (materialismo). Ele busca uma explicação para aquilo que está além dela (metafísicameta do grego: além, para além; físico(phisys) do grego: matéria física. Ou seja, aquilo que está para além da matéria). A religião ordena o caos da matéria. Ela é um dique que represa nossas inquietações nos dando uma sensação de conforto e segurança. O caos seria insuportável. Seriamos destruídos pela anomia e pela rudeza da vida. O sagrado é a dimensão valorativa da perfeição, da pureza, do absoluto. Daí o absoluto da crença. Se não estou equivocado foi Rudolfo Otto que afirmou que a religião está em todas as coisas da vida humana; que as realizações humanas são religiosas. Mas penso como C.S. Lewis. Num sentido não muito distinto, as mesmas inquietações de C. S. Lewis, são as minhas inquietações no que diz respeito à fé. Ele escreveu em seu livro Surpreendido pela Alegria: “A maneira mais segura de estragar um prazer era[é] começar examinar a sua satisfação”. Porque

“Ninguém jamais tentou mostrar em que sentido o cristianismo cumpriu
o paganismo, ou como o paganismo prefigurou o cristianismo.
A posição aceita parecia ser a de que as religiões eram normalmente uma
Mera miscelânea de absurdos, embora a nossa – feliz exceção – fosse
Perfeitamente verdadeira. As outras religiões não eram sequer explicadas,
Segundo o primitivo modo cristão, como obra de demônios. Nisso,
Possivelmente, eu podia ser levado a crer. Mas a impressão que tive foi de que
A religião, em geral, embora totalmente, era um desenvolvimento natural,
Uma espécie de absurdo endêmico no qual a humanidade tendia a tropeçar.
Em meio a um milhar dessas religiões, lá estava a nossa, a milésima
Primeira, rotulada Verdadeira. Mas com base em que eu poderia crer nessa
Exceção? Ela obviamente era, num sentido geral, o mesmo que todas as
Outras. Por que então era tratada de modo tão diferente? Será, afinal,
que eu precisava continuar tratando-a de forma diferente?
Desejava ardentemente não ter de fazê-lo.”

Como poderemos justificar o injustificável? Exercemos fé naquilo que não vemos. E regozijamos com isto. Cremos no absurdo. Adoramos sem ter certeza táctil com relação àquilo que cremos. Fechamos os olhos e descerramos os lábios em preces quentes. Gestos ou soluços da alma. Instituições se organizam com o objetivo de defender a devoção. Pessoas matam, explodem por causa da religião. Entendem que todo sacrifício é necessário e valido para justificar a fé. Quanto maior é a dor, o dispêndio de energia, maior é a devoção. Fico aturdido com este pensamento. Imagino que esta tendência tão extremada seja apenas resultado da inventividade humana. Penso que a singularidade humana é responsável por criar todas as realidades relativas àquilo que justifica e dá sentido à existência humana. Ou seja, é o próprio homem que classifica o mundo e extrai dele os significados que deseja empregar para tornar a vida cheia de respostas eloqüentes. O mundo existe como vontade e representação, pois o homem é a medida que dá forma a todas as coisas. Assim, vou pensando enquanto entendo que estou sendo trepidado por este fato que me abraça e sufoca como uma grande serpente. A religião é um sonho que mente humana alimenta para colorir os seus pesadelos existenciais. Dar-se expressão ao injustificável. Assim, não abraço a fé com adesismos externos. Fé para mim é fé para morrer e viver. É categoria máxima, filosófica, que abarca as categorias da vida. Não identifico a religião apenas com o fato de se ir a igreja ou a qualquer lugar que se queira ir para exercer a fé. Sören Kierkegaard afirma em seus escritos que há três estágios geralmente vivencialmente vinculados ao ser humano. (1) O modo estético. Ligado ao indivíduo que se envereda pelo caminho externo dos vícios, da matéria; pela diversidade a que conduz o desejo. Esse estágio não realiza o ser humano (2) O modo ético ou moral é aquele governado essencialmente pelas normais morais. Mas a vida ética não possui um potencial de realizar os desejos humanos. E (3) o modo religioso que ela afirma como o estágio sublime. Não a religião parasitária, instrumentalizada pelos dogmas e ritos externos. Isso aparece com total evidência na sua obra Temor e Tremor onde trabalha filosoficamente sobre o significado do sacrifício de Abraão no monte Moriá. “Seu objetivo é mostrar através do sacrifício de Abraão que o estágio ético não é absoluto, pelo contrário fica até ofuscado diante de exigências superiores do estágio religioso. Como apelo à subjetividade profunda, o estágio religioso pratica uma devoção ao Deus que não aparece e comunica-se através do silêncio que provem desta relação. Isto nos faz perceber que os dois primeiros estágios são mais populares do que o terceiro. Kierkegaard entendia que os estágios estéticos e éticos não podiam existir sem o estágio religioso. Em outras palavras, o religioso estava presente tanto no estético quanto no ético. O religioso é um estágio conseqüente, pois é a partir da desordem dos estágios inferiores que se tem a possibilidade de encontrar a realidade superior da vida religiosa”. Para mim a religião só tem significado se entendida e compreendida em sua radicalidade. A fé é em si uma decisão. Uma realidade que tem que ser experienciada existencialmente. Termino com uma frase de Kierkegaard dita na sua obra O Desespero Humano: “Varia o escândalo segundo a paixão que o homem põe na admiração”.

Por Carlos Antônio M. Albuquerque

terça-feira, dezembro 18, 2007

O itinerário do menino


Resolvi postar esta mensagem por conta destes dias festivos. Sei que o nascimento de Jesus não se deu no dia 25 de dezembro conforme as convenções ocidentais. A data de 25 de dezembro foi arranjada por Constatino a fim de substituir uma divindade pagã, por um "deus" cristão. Com isso ele não queria provocar estranhezas àqueles que estavam se convertendo à nova fé. Isso gerou fatores mais negativos do que positivos. Mas fica a data apenas como uma oportunidade para confraternizações e uma comemoração a serviço da saúde de todos nós. Afinal, todo o dia é dia de nascimento.

Mateus 2

O Salvador entra no mundo causando frisson nas lideranças dos homens.
Ele é apenas um ente nascido, frágil ainda pela sua constituição física.
Mas já suscita preocupação aos potentados.
O Seu nascimento faz com uma estrela nasça no coração dos homens.
Ele não é um simples menino.
Ele é o Salvador.
Ele é o Pastor Divino que ajuntaria o povo disperso.
O poder religioso e o poder político da magistratura se reúnem para inquiri acerca de que Ele viria ao mundo (vv.3,4).
Aonde nasceria?
Quais seriam as características do seu nascimento?
Qual a geografia?
Herodes é uma hiena.
O medo se apodera do seu coração.
Ele teme perder o seu trono.
“Rei dos Judeus” (v.2).
Quem seria esse rei dos judeus?
Ele, Herodes, já não era o rei?
Como surgiria outro rei?
Os homens do Oriente são guiados por uma estrela.
A estrela é uma bússola que nasce na interioridade de cada um dele e os leva aonde eles querem chegar: na presença do menino (vv.9,10).
Ele é o rei, por isso as honrarias – incenso, ouro e mirra – elementos finos, dignos da Majestade das Majestades.
Jesus, o Rei Eterno que aporta na História, que nasce numa manjedoura simples, numa cidade simples, no coração da Palestina, terra de Davi.
Esse menino não era qualquer menino.
O magistrado temeroso mandar matar todas as crianças com até dois anos de idade para que o perigo seja extirpado.
Um morticínio, um infanticídio acontece num determinado dia.
De repente, soldados armados com adagas, lanças e espadas invadem as casas e matam quantos acham.
Mães desesperadas, agonizantes, desejam a mesma sorte dos pequeninos.
Mas, o Filho de Deus já estava distante dali.
Havia ido para o Egito.
Nada na sua vida acontece em vão.
Tudo é resultado de promessas que se cumprem na História.
O Deus da promessa é fiel (Hb 10).
Do Egito ele vai para a região da Galiléia;
Vai “habitar numa cidade chamada Nazaré” (v.23), situada ao norte de Israel.
Este é o itinerário do Messias.
Os trinta e três anos de existência na terra foram marcados por sucessivos fatos marcantes.
Já no seu nascimento, fica provado que não se tratava de qualquer criança.
Tratava-se do menino que veio fazer uma revolução no coração dos homens.
Veio escandalizar os orgulhosos;
Suscitar fagulhas de medo e temor na alma daqueles que amam o poder;
Veio desmantelar a religião.
Revogar os estatutos que prejudicavam a vida.
Pregar a esperança, anunciar salvação a todos aqueles que crerem.
Apontar o Caminho do Reino.
Fazer de homens pecadores, seus melhores amigos.
Tirar os homens das trevas, para o reino do Filho do Seu Maravilhoso amor.

Por Carlos Antônio M. Albuquerque

quarta-feira, dezembro 12, 2007

Jesus e Javé – os nomes divinos

Breve Comentário sobre: Jesus e Javé – os nomes divinos, Harold Bloom, Editora Objetiva, Rio de Janeiro, 2005.

O livro Jesus e Javé – Os Nomes Divinos, de Harold Bloom é um livro de provocações. Falo em provocações, porque é impossível para o indivíduo acostumado com os sistemas construídos pela teologia dogmática, manter-se intacto às enormes des-construções suscitadas pelo autor. O livro me pareceu estranho de início. A sua linguagem gerou em mim desconfiança. O que o sujeito/autor pretendia com suas proposições me parecia enigmático. Apenas afirmações que saíam cheirando a estranheza. Não entendi a maioria das afirmações. A maioria das ilações feitas pelo autor, pelo que entendi a priori, tinha/tem a sua origem numa fonte gnóstica.
Todavia, algumas afirmações fortes como a que se segue incutiram em mim o poder da reflexão: “Qual será a culpa humana que deve ser expiada pela tortura que Javé impõe a Jesus e pela crucificação de centenas de milhares de outros judeus, nas mãos das forças romanas de ocupação? De ínício, dispenso as apologias que São Paulo e Santo Agostinho fazem a Deus: na queda de Adão, todos pecamos. Os Grandes Sábios do Talmude não defendiam essa doutrina bárbara, importação helênica do mito do portador do fogo, Prometeu, atormentado por um Zeus sádico, e, no extremo, o relato xamanista e órfico da vingança de Dioniso contra os que dilaceraram e devoraram o deus infante”[1]. Querendo ou não para quem está acostumado com o dogma, com a absolutidade da regra teológica, uma afirmação destas exige um esforço na averiguação. Com isso, não quero dizer que há um abandono na compreensão da teologia como eu aprendi. Todavia, posso afirmar um dos maiores privilégios do ser humano repousa no fato de que a curiosidade deve ser estimulada e pensada em todo tempo. Sempre cri que “na queda de Adão, todos pecamos”. Esta é a compreensão que adquiri. Somos seres fadados a este sinal – queira “sim”, queira “não”. Fazer a relação do com os capítulos iniciais do Gênesis, com o mito de Prometeu, escrito por Hesíodo impressiona. O mito de Prometeu possui um elemento interessante que se assemelha em muito com a citação da Torá (os cinco primeiros livros da Bíblia) do que foi a queda humana. Segundo o mito grego – nesse sentido vale lembrar que o mito está a serviço da representação – a humanidade foi castigada porque o Titã Prometu roubou uma acha do fogo dos deuses e o levou aos homens. Sendo assim Zeus vendo-se decididamente iludido pelo Titã, não conteve o ressentimento e resolveu punir simultaneamente os homens e o protetor. Prometeu foi castigado com uma flagelo terrível, uma espécie de atrocidade constante, sempre repetitiva; aos homens foram enviados castigos e toda sorte de pungentes atrocidades, como pestes, fomes e doenças. A tragédia Prometeu Acorrentado apresentou Prometeu como um rebelde contra a injustiça e a onipotência divina, imagem particularmente apreciada pelos poetas românticos, que viram nele a encarnação da liberdade humana, que leva o homem a enfrentar com orgulho seu destino. Prometeu significa etimologicamente "o que é previdente". O mito, além de sua repercussão literária e artística, tem também ressonância profunda entre os pensadores. Simbolizaria o homem que, para beneficiar a humanidade, enfrenta o suplício inexorável; a grande luta das conquistas civilizadoras e da propagação de seus benefícios à custa de sacrifício e sofrimento.Ou seja, Prometeu em sua luta contra a tirania dos deuses, representa no insurgimento que lhe é pertinente, a própria humanidade. Essa era, em outras palavras, o significado do mito.
Vale ressaltar que a História do Gênesis possui também uma explicação ou uma significação bastante similar. Não quero discutir aqui se o relato do Gênesis possui uma dimensão histórica ou mítica. Todavia, nos dois relatos, é possível enxergar o elemento da representação, que visa explicar o mundo a partir da construção de um ideário simbólico. É a idéia do incompreendido tentando ser compreendido por construções fantásticas – isso é a religião! Devo ser honesto nesse sentido, pois o que é religião? A religião se instala como fenômeno mais subjacentemente vinculado ao ser humano, posto que o homem é em si um ser religioso. Ontologicamente, a religião está a serviço da explicação do numinoso, da explicação do inexplicável, do entendimento do próprio homem no dizer de Rudolf Otto. Os homens erguem catedrais porque dentro de si possuem gritos, sussurros, incompreensões, expectativas e todas elas em um momento ou outro são abraçadas pelo mistério. Daí, a necessidade de se construir um símbolo para a materialização ou visibilização do ser sagrado que primeiramente nasceu no centro da alma como projeção das respostas que são feitas do lado de fora do ser humano.
Diz Rubem Alves, num dos seus livros chamado, O que é religião, que a partir desta leitura da realidade, o homem dá vários significados à morte; a vida passa a ser encarada com os seus diversos matizes de acordo com a construção simbólica ou com o sentido de crença de cada individuo – o ateu diz não acreditar na existência de Deus e busca viver como se Deus não fosse uma realidade para ele. Já o crente em Deus, guia as ações da sua vida a partir desse sentido de crença. É por se guiar pela entidade-religioso-simbólica que alguém estoura como um saco carnes, espatifando nervos, aparelhos, órgãos e leva tantos quantos é capaz, porque para ele aquilo tem um sentido, ele entende que aquele tipo de atitude renderá galardões na eternidade – vide os mulçumanos. É essa construção simbólica que direcionou milhares de monges para mosteiros na Idade Média. O símbolo condiciona a vida. Ou seja, “com os símbolos sagrados o homem exorciza o medo e constrói diques contra o caos” – diz Rubem Alves.
Quando falo em religião, por exemplo, lembro de Feuerbach, o qual disse que a religião aparece como um sonho da mente humana. A religião surge como projeção do sonho, que deriva da voz do desejo. O desejo existe no interior do ser , mas que tem de se adequar ao que se coloca como realidade. A realidade é a negação do desejo. Ela duela com a própria essência do homem, o desejo. O desejo fala da própria essência do homem. Deste modo “as verdades” mentirosas devem ser abolidas para que o desejo no ser humano torne-se verdadeiramente consumado. E nisto é que Feuerbach afirma que “a religião é o solene desvelar dos tesouros ocultos do homem, a revelação dos seus pensamentos mais íntimos, a confissão pública dos seus segredos”.
A afirmação de Feuerbach remete a religião ao próprio homem, porque para ele falar de Deus é falar do próprio homem. Ter consciência de Deus é ter consciência de si mesmo. Deus no homem surge como uma imagem refletida na parede do ser, porque Deus varia no homem, de ser para ser. Existem várias consciências de Deus no homem, quantos são os homens, tantos são o número de projeções de Deus. Deus se relativiza no ser. Deus, assim, é criado pelo desejo humano. Decodificando as características ou a personalidade de Deus para uma determinada pessoa, descobri-se os desejos desta pessoa. Deus é subjetividade. O ser determina a imagem em sua objetividade e transforma-se em objeto perante a imagem, e, a imagem, por sua vez, toma forma de sujeito.
A realidade última da religião não estaria inclinada para fatores eminentemente metafísicos. A religião encerra-se aqui, na contingência do mundo humano. Não existem fenômenos do lado de lá, puramente espirituais. Lidar com o sagrado, seria em outros termos, lidar com a antropologia. Religião é antropologia. O homem é próprio ser divinizado. A necessidade de uma divindade para o homem fala dos próprios anseios humanos. A religião é um sonho que o individuo religioso não compreende. Para Feuerbach, a partir do momento que se interpreta o sonho, a necessidade de Deus e da religião deixa de existir. Mas fiz essa pequena explanação inicial para fixar atenção e indicar um exemplo de como a obra de Harold Bloom está eivada de afirmações surpreendentes. Este é apenas um exemplo das tantas citações que são feitas e que congestionam a nossa mente com a ânsia de averiguação.
Fiz estas conjecturas em torno do tema “religião”, porque ando bastante crítico com relação a este tema. Tenho lido alguns livros de filosofia e isto está me fazendo entender o que se passa com o homem religioso. Ou seja, a religião é justamente uma preocupação com o que está dentro da alma, mas, que nós enquanto, seres complexos que somos, buscamos do lado de fora, criando projeções que no fundo, são apenas criações humanas. Tenho vivido a minha fase agnóstica. O livro do Harold Bloom não teve um papel preponderante para estimular isso. Todavia, a análise que ele faz sobre as várias versões de Jesus Cristo e Javé são de fato uma grande construção crítico-literária.
De início é feita uma afirmação emblemática de Goethe: “Enquanto estudantes da natureza somos panteístas; como poetas, politeístas; enquanto seres morais, monoteístas”[2]. Trata-se de uma colocação extraordinária do poeta Goethe. Esta afirmação forma uma espécie de trilho por onde o eixo dos argumentos de Harold são firmados, estruturados e correm quais mecanismos mágicos no livro. E, de fato, não contexto esta afirmação, pois ela encerra uma verdade importantíssima: quando se estuda a natureza, a sua beleza fantástica nos lança a compreensão de que o pan é Deus (pan – “todo” – theímos – “Deus”). A extravagância profundamente simples da natureza nos faz concluir que ali está Deus. Assim, Deus é e está na natureza. Deus é a realidade primeira e última de todas as coisas e tudo está em Deus. Como compreendia o filósofo Espinoza, “Deus é a Substância, ou seja, o Ser que é a causa de si, que existe em si, e por si, que é concebido em si e por si e que é constituído por infinitos atributos, infinitos em seu gênero e cada um deles exprimindo uma das qualidades infinitas da substância. Desses atributos conhecemos dois: o pensamento e a extensão”[3]. Goethe na verdade afirma que Deus é e está em tudo. Para mentes argutas, não há como divorciar esta questão da sensibilidade inerente aos fatos. Aprendi que este pensamento é equívoco nos meus estudos de teologia. Deus não é o mundo; o mundo não é uma extensão de Deus.
O outro pedaço da afirmação de Goethe é curiosa, pois na ânsia de compreender e “poetizar” o mundo, acabamos por “poli-teizar” a existência, ou seja, atribuir “várias divindades” à compreensão do que foi criado. A natureza impressiona-nos pela multiplicidade extraordinária pela qual ela se apresenta na sua singela e complexa manifestação. Diante do “singelamente complexo”, tentamos achar ou atribuir uma paternidade ao natural. Não há condições de se dizer fortuitamente que a origem da beleza, da arte, do inexprimível é obra do acaso ou de um complexo natural. O humano assim percebe, sente, divindades brotando de todas as partes nas regiões mais estranhas e escuras da sua alma. Como nesses versos do poeta americano Walt Whitman:

Vós! Vós! A vital, a universal, a gigante força sem resistência, que não dorme, sempre calma,
Segurando a Humanidade em vossas mãos abertas, como se fora um brinquedo efêmero.
Que, doente, sempre vos esquece!
Pois que também vos esqueci,
Absorvido que estava nessas pequenas potências de progresso, política, cultura, riqueza, invenções, civilização,
Perdi o meu reconhecimento de vosso poder sempre controlador, vós, poderosos, agonia dos elementos,
No qual e sobre o qual flutuamos, no qual todos boiamos”
[4].

A outra implicação da afirmação de Goethe passa pela esfera moral, pois no mundo ocidental, a moralidade passa pelo mundo judaico-cristão. Afinal, de contas fazendo menção da afirmação de Fiodor Dostoievski de que “se Deus não existe tudo é permitido”, podemos entender o que Goethe afirma. A moral do mundo ocidental está subjacentemente vinculada com a idéia de um só Deus – e este Deus é o Deus judaico-cristão. Não há o preceito moral como resultado da vontade de várias divindades como de certa forma havia na Grécia Antiga ou em Roma - mesmo que existisse um Zeus como divindade suprema do Olimpo. A moral é a base sólida da crença. É o regulamento absoluto cristalizado como conceito mais gregário aos homens que formam a sociedade. Ela possui a importância da argamassa que sustenta os tijolos de uma construção. A moral está a serviço da instituição. A moral é a memória da sociedade em torno da instituição. É esse cimento que sustenta o todo da sociedade. Falar da divindade é falar do absoluto. Pois, conforme a noção ocidental da divindade, passa pela cristalização da regra e, portanto, do absoluto moral. A divindade é um ente de moralidade estática. Quebrar essa moralidade é transgredir a regra e, conseqüentemente, cometer o desatino, pecar. Friedrich Nietzsche em seu pensamento tentou justamente propor o conceito da divindade dionisíaca, que está afastado do conceito “anêmico” da crença cristã, conforme mesmo propôs. Falar do conceito dionisíaco da divindade é lembrar o lúdico e a liberdade como mecanismos que impulsionam o super-homem.
Bloom introjeta esta afirmação, pois quer fundamentar nas páginas iniciais do livro o que vai ser a sua tese até o final: as idéias da divindade passam pelo gnosticismo e o seu aparelhamento místico. Bloom busca em cada página fazer uma espécie de relação da literatura, como se a Bíblia fosse interpretada a partir de um enredo – se não estou equivocado em minha colocação. É patente que ele busca mostrar a identidade de vários personagens bíblicos e lhes faz uma espécie de busca nas intenções a posteriori. Busca mostrar Javé e Jesus como dois entes opostos entre si. Javé “não é a divindade universal de um planeta que se encontra conectado por meio da informação instantânea. Contudo, Javé permanece, em quase toda parte [...] Javé, de quem me esquivei ao longo de três quartos de século, tem uma capacidade impressionante de permanecer e me rondar, se bem que mereça ser condenado por deserção, não apenas por parte dos judeus, mas também de toda a humanidade sofredora. Neste livro, o intérprete é um judeu cuja espiritualidade reage com grande fervor à antiga inclinação por nós denominada gnosticismo, e que talvez não seja uma “religião”, no sentido em que o judaísmo, o cristianismo e o islamismo constituem as principais tradições religiosas ocidentais”[5]. Assim, a presença de Javé no mundo ocidental está divorciada do conceito trinitário em sua agregação com o entendimento cristão tradicional.
Quero afirmar que gostei porque mostrou uma vertente daquilo na minha compreensão. Veio a somar pelo fato de que passei a enxergar mais de perto como um gnóstico pensa. Conhecia o sistema gnóstico apenas por definições técnicas, definidas nos sistemas apologéticos de teologia. Sempre com aquele viés descontrutor o livro de Harold, como disse no início é provocativo. A minha compreensão da divindade é diferente desta apresentada na obra Jesus e Javé. Sou demasiado conservador para aceitar essa pluralidade. O gnosticismo tem ressurgido com muita força nos nossos dias pelo fato de haver uma espécie de re-diálogo com as vertentes da antigüidade. Nunca se foi tão místico, tão pluri-facetado como em nossos dias. Desagregação? Ou nascimento de uma nova compreensão acerca do que é a divindade? O tempo dirá.

Por Carlos Antônio M. Albuquerque
Data: domingo, 1 de outubro de 2006, 12:16:49 P

[1] p. 175
[2] p. 15
[3] ESPINOZA, Os Pensadores, Nova Cultural, São Paulo, 2.000, pp. 14-15
[4] WHITMAN, Walt, Folhas de Relva, Martin Claret, São Paulo, 2005, p. 18.
[5] pp. 271-72

sexta-feira, dezembro 07, 2007

Ocaso casual

A essas horas da tarde
O quase noite me envolve
Sinto-me livre para ouvir
A mim mesmo.
Antevejo o ócio dos braços,
Das pernas...
O amor que me beijará
As emoções.
Quem dera todas as tardes
Se vestissem com essas cores.
O sol põe cabelos de fogo
Nas árvores: o verde
Torna-se amarelo.
Escuto a mim mesmo e
Sou livre.
As nuvens altas como
Flocos de algodão – vão-se.
Todos os dias deveriam
Ser eternos.
Os jardins lá fora
Estão verdes.

Por Carlos Antônio Maximino de Albuquerque

quarta-feira, novembro 28, 2007

Memórias

Estas palavras abaixo são o resultado de uma crônica que escrevi no ano de 2004, refletindo sobre o ano de 2003. Resolvi divulgar um fragmento. Quiça eu venha a colocar outros retalhos neste espeaço.


Estava feliz. Na segunda-feira, dia 29 de dezembro, viajei para o estado do Piauí. Fui encarregado de passar alguns dias na congregação da Quarta Igreja Presbiteriana de Taguatinga em Santa Luz. A proposta surgiu do Rev. Oswaldo que me entusiasmou para tal função. Aceitei pelo simples fato de que seria uma oportunidade ímpar de entrar em contato com novas pessoas; de visitar um lugar novo, com ares novos, com vegetação e clima diferentes. Viajar para mim sempre foi um motivo de imensa alegria. Aqueles momentos que antecedem a viagem são deliciosos. A expectativa parece possuir uma dose de mistério.
O único lamento para mim era ter que deixar a musa que encontrara, Liana C. Roquete. Pensava comigo: “Meu Deus, ficar mais de um mês longe da Liana!” – de lá eu fui para o estado de Pernambuco, visitar os meus avós e rever os familiares. Aquela situação era o único fator a gerar desconforto para mim. Todavia, arregimentei força. Seria uma experiência positiva, boa, nova. Eu voltaria mudado, com certeza. Nisso eu concordava com Heráclito. O rio da vida estava passando e, com certeza, não banharia nele duas vezes.
Recordo-me que a Liana disse para mim certa vez:
- Olha, muita gente está dizendo que quando você voltar nós nem nos reconheceremos mais. Vamos ver até que ponto o nosso namoro vai agüentar.
Ao que eu execrei mentalmente aquela sentença. Não permitiria, em minhas resoluções internas, o fato dela não pertencer mais a mim. Não haveria um “desconhecimento” em hipótese alguma.
Na manhã do dia 29, mais precisamente às 11 e meia eu estava na rodoviária. Ela também lá estava. Pus-me a olha-la langoroso. Mais de um mês de distância provocaria em mim uma tristeza insalubre. Enquanto estava na rodoviária osculou-me os lábios ternamente. Pude sentir os seus lábios adocicados. Abriguei-me no ônibus e fiquei a olha-la; enquanto o ônibus aguardava a partida, as minhas emoções se confundiam uma nas outras. Olhava-a com afeição, apreço e devoção e colocava no pensamento a certeza de que eu lucrara com o melhor dos presentes que alguém poderia ganhar. O ano de 2003, de fato, fora muito bom. Eu não tinha o que reclamar. Apesar dos tantos dissabores.
À medida que o ônibus ia saindo da rodoviária e pegando a Via Estádio, dentro de mim havia o anelo de saber o que passava na mente e no coração dela. Nos meus lábios ainda estava o gosto e o cheiro dela. Um pouco dela ainda estava em mim. Desejei como se deseja a vida que aquele gosto plasmado àquele sabor não saíssem dos meus lábios. Era bom saber que algo que me ligava a ela por meio dos sentidos. Como me enfastiei naquele momento. Um banzo enorme acometeu-se de mim. Sentia-me como os escravos degredados da África. Alberto Camus, o escritor de “A Peste” disse certa vez: “...já que o grande desejo de um coração inquieto é possuir interminavelmente o ser que ama e poder mergulhar nesse ser, quando chega o tempo da ausência, num sono sem sonhos que só possa acabar no dia do reencontro”[i]. Eu sabia que estava indo para uma viagem que me deixaria num desterro de mais de um mês e somente o “reencontro” – já pensava nele – traria-me a devida ordenação ao juízo. Enquanto os minutos passavam o gosto e o cheiro dela se esboroavam de mim. Aquilo para mim era um suplício. Sabia que logo logo não mais eu teria qualquer resquício vivo aos meus sentidos. Ficariam apenas as impressões na mente. A distância perturbadora me cozinharia os miolos. Os pensamentos, o desejo de tê-la perto de mim seriam inimigos atrozes.
À tarde eu estava no estado de Goiás. Via as paisagens fugidias que ficavam para trás. Os pensamentos se grudavam a qualquer substância. Estava deixando a família, a parentela, o meu bem querer. Aquilo era simplesmente atordoador. Os belos cenários que se insinuavam para mim, davam a impressão de que eu era um imperador e estava ali para apreciar cada polegada do meu reino. O mundo era um sonho, aquelas paisagens estavam ligadas a um palco de beleza natural. Na mente, a feição sorridente de Liana C. Roquete estava afixada num cartaz de dimensões incríveis bem na esquina da minha alma. Sentia um misto de soledade e tristeza. Um torpor estranho, anômalo, mas doce, prazeroso se erguia dentro de mim como uma cortina de fumaça. Havia chovido, por isso a vegetação estava verde. Aqui ou ali uma lagoa intermitente estava formada pelo resultado das chuvas de dezembro. Uma garça com seu pescoço longo procurava comida nas locas daquele alagado. Outras se abrigavam nos galhos secos de uma árvore já morta. Tudo não passava de uma bela exposição. Plantações imensas de girassóis a brilharem para mim. Cada um deles muito amarelos. O mar amarelo me seduzia com sua extensão incrivelmente regular. Latifúndios imensos. Aristocracia rural. Brasil Central. Divagações. De repente o cenário mudava. Eucaliptos variados se alinhavam com disciplina um ao lado do outro. Perfilamentos perfeitos. Renques disciplinados. Pensava num exército aposto, pronto para receber ordens de um superior embrutecido. Uma plantação de soja surgia silente. Um horizonte verde se formava. Queria mergulhar nesse macro-cosmos verde – pensava em minha divagação espaçada por pensamentos reais, mesclados a derivações infindas. Tinha certeza de que o eterno estava mergulhado no invólucro do efêmero. Como Van Gogh retrataria aquela paisagem? Eu era alguém privilegiado por ver e sentir todo aquele absurdo natural; uma outra paisagem existia dentro de mim; e nesta, Liana C. Roquete era senhora e soberana.
O ano de fato havia sido intenso, cheio de acontecimentos imensos. Eu saíra vivo de cada um deles. Considerava-me um vencedor. Alguém que amadurecia. Alguém que estava chegando ao estágio de uma mente adulta. Eram vaidades mesquinhas que se assenhoreavam de mim, ao ponto de um regozijo afetado surgir com candidez nos meus lábios. Queria que o mundo se curvasse aos meus pés e dissesse numa atitude humilde e resignada: “Estou aqui para te servir”. Eu lucrara de fato. O ano de 2003 fora um dos mais extraordinários da minha existência. Em todos os sentidos eu me portara com a mesura digna de um ser superior. Estava ali agora. Dentro de um ônibus da Viação Transpiauí cheio de pressentimentos graves e com a certeza que o ano de 2004 me surgiria novo, inopinado, mas com uma série de surpresas agradáveis. Estava indo para Santa Luz. Dentro do ônibus, uma malta de matutos e outros seres mesquinhos; e, eu, ali também tal qual eles. Fisionomias várias. Talvez, fossem indivíduos que trabalharam o ano inteiro. Ajuntaram dinheiro e agora estavam voltando para ver a parentada. Crianças acanhadas. Mutantes. Já haviam entrado em contato com a civilização. Eram como animais. Todos eles eram bichos com certeza; e, eu, também.
Quem se importaria com alguém como eu? Mas eu sabia que era alguém especial. Possuía o mundo dentro de mim. Possuía a existência toda em cada compartimento do meu coração. Todo o universo havia se descomplicado. Intuía. Fazia planos. Comemorava. Louvava os fatos. Agradecia os acontecimentos todos. O ano de 2003 foi diferente do ano de 2002. Eu me encontrava mais cheio de razões para creditar na vida. Não havia motivos para desenganos abruptos. Acreditava que poderia ser melhor do que estava sendo ali. Ia para o meio de um povo estranho. Talvez, por trás daqueles fatos houvesse uma efervescência ígnea de símbolos sendo gerados. Aquilo tudo significava que eu estava indo para o meio do mundo, para o meio das complicações. Guardava em mim cada pitada daquelas divagações.
Criava intenções internas. Organizava as expectativas. Tinha o um vasto mundo à minha frente. Eu precisava apenas abrir os braços para segurá-lo. Tinha o céu ao meu alcance. Era estender os braços para pegar cada uma das estrelas que se exibiam. Mastigava a sentença poética deliciosa plena de infância de Guilherme de Almeida: “Um gosto de amora/ comida com sol. A vida/ chamava-se: Agora”[ii]. Gigantismo. Sentimento de posse do mundo. Beber a goladas sôfregas cada gota da vida. O desejo enorme de se sentir grande, volumoso, imenso para o mundo. Lá me ia.
Na Retropesctiva que fiz do ano de 2002, o texto termina da seguinte forma:

Nas palavras que enchi o papel, percebi uma preocupação existencial e filosófica subjacentes. Nos outros anos, eu não me utilizei das tais. Sei que omiti muitos dos fatos desenrolados no ano que se passou. Não mencionei minha mãe que sente-se cada vez mais sozinha e esquecida – impressão dela. Não falei dos meus irmãos que parecem seguir o mesmo caminho que eu. Os arquétipos, às vezes, não estimulam à virtude, todavia conduzem à mediocridade. Não falei sobre os problemas que engolem o país como um faminto sorvedouro. Não comentei os problemas que querem enfraquecer a esperança.
Está começando um novo ano – ou ano novo? – tanto faz. a verdade é que não devo esmorecer. Como dizia o poeta Renato Russo: “Às vezes faço planos; às vezes quero ir a algum país distante voltar a ser feliz”. E quando penso assim, esqueço que a felicidade mora ao lado. A felicidade é pertencer e conhecer a Jesus Cristo. “Não há outro nome embaixo dos céus pelo qual importa que sejamos salvos”. A felicidade não está em Kierkegaard, nem em Nietzsche, nem em Paulo, nem em Rubem Alves. A felicidade está no Filho do Homem. No carpinteiro humilde de Nazaré. Que sendo Deus, fez-se homem por causa de nós.
Sei que passarei por novas dificuldades – como já estou passando – mas sei que em tudo eu já sou mais que vencedor. Diz são Francisco de Assis que se “é morrendo que se nasce para a vida eterna.” Tenho grandes ideais. “Os ideais são como as estrelas. Na noite escura elas apontam o caminho”, como escreve Rubem Alves – todavia, creio que essa frase foi tomada de Abraham Lincoln. Em outra frase Rubem Alves cita Bachelard: “Um coração frágil gosta de valores frágeis”.
A minha fragilidade me impulsiona a buscar a sensibilidade. Não vivo por comiseração, remoendo as minhas chagas e alimentado uma autocomiseração, próprio dos que vegetam. Respeitar as individualidades é importante quando se quer preservar as espécies e a multiplicidade do gênero humano. Sou adepto do humanismo cristão. Do humanismo que crer no homem, desde que ele se submeta irrestritamente a vocação do Criador. C. S. Lewis diz que “o universo sempre se mostrará fiel quando você o testa com justiça”. Concordo com esta sentença de C. S. Lewis, porque o homem só conseguirá a autenticidade que tanto procura quando ele testar os fatos com fidelidade. E onde se encontra uma fidelidade que garanta a verdade e a autenticidade? A resposta eu dou sem hesitar: Cristo. Em Cristo o mistério da criação é consumado. Em Cristo encontramos o nosso destino e a nossa redenção. Quando medimos as coisas com os óculos de Deus – Cristo – encontramos a fidelidade
[iii].

Estas eram palavras que haviam adquirido um valor especial para mim. De fato, muito daquilo que presumi e imaginei aconteceu no ano de 2003. a diferença que vejo hoje é que enquanto eu saí do ano 2002 com rugas imensas na epiderme da minha alma, a passagem de 2003 para 2004 é alvissareira. Augúrios positivos se levantam como ootdoors. A retrospectiva de 2002 estava atochada de uma atitude merencória. Uma solidão enfermiça que brotou como solução para permanecer vivo. Apenas uma solidão poética. Mal do século? Não. Apenas uma posição encontrada para continuar a ser pequeno e se guardar do mundo. Um refúgio, uma fortaleza construída como um ponto forte para se guardar do mundo.
Mas a vida que ra “agora”, no dizer de Guilherme de Almeida brotava com muito ímpeto. Queria ver as folhas verdes e vicejantes. Assim, o ano de 2003 se ia. Tenho plena convicção que o ano que no ano de que se passou, muitos outros fatos se deram com profusão. Imiscuí aqui aqueles que tiveram uma importância capital ou foram vindo à vida na superfície da mente. Outro ano está iniciando. Outros registros se darão; outros fatos surgirão com força e pujança. Salomão ajudar-me-á este ano de 2004: “O insensato não tem prazer no entendimento, senão em externar o seu interior” (Pv 18.2). Discrição apenas, Carlos Antônio e sigamos pela estrada da vida. O amor mora ao lado. A vida está soprando no vento. Sorvo, apenas sorvo; inalo e respiro.

[i] Camus, Alberto, A Peste, Círculo do Livro, São Paulo, 1947, p. 88
[ii] Cortella, Mario Sergio, Não espere pelo epitáfio – provocações filosóficas, Editora Vozes, São Paulo, 2005, p. 89
[iii] Retrospectiva III, 19-04-2003, pp. 19-20

Carlos Antônio M. Albuquerque

segunda-feira, novembro 26, 2007

Sobre a comparação

Há algum tempo atrás li um texto delicioso de Rubem Azevedo Alves chamado “A solidão amiga”. Rubem Alves em determinada parte do texto conta que seu pai gozava de uma boa situação financeira em Minas Gerais. Quebrou e ficou pobre. Apesar das dificuldades, enquanto vivia no interior se sentia feliz. Não era um estado de miséria, mas de despojamento do luxo que antes vivenciara. Ele afirma que conheceu a infelicidade quando aprendeu a comparar. É dito por ele: “A comparação é o início da inveja que faz tudo apodrecer”.
Ele, mineiro, interiorano (de Boa Esperança), mudou para o Rio de Janeiro e passou a se espelhar e desejar o que pertencia aos cariocas “civilizados” – “espertos, bem falantes, ricos”. Aquilo foi, com certeza, o caminho que o conduziu a um desterro existencial. Quem se compara com outro atrai a tristeza para si mesmo. “Eu diferente, sotaque ridículo, gaguejando de vergonha, pobre: entre eles eu não passava de um patinho feio que os outros se compraziam em bicar”, afirma.
O modo de produção da sociedade moderna é capitalista. Uma sociedade capitalista é, inevitavelmente, um meio materializado. Os objetos são transformados em mercadorias e passam a adquirir um poder erótico. O erotismo propiciado pelo fetiche da mercadoria tem a capacidade de tornar as pessoas reféns do desejo e da comparação. Num ambiente contaminado pelo desejo de ter para ser, a comparação se torna natural.
A comparação é um inclinar de cabeça para o lado a fim avaliar o que é do outro. O andar por uma rua pode constituir um momento de tristeza: vemos casas bonitas, quando temos, muitas vezes, a nossa tão humilde! O olhar para o carro do outro pode constituir um desalento agudo; o olhar para a roupa do outro pode se transformar numa visão “perigosa”, fazendo nascer irresistivelmente um anelo comparativo.
O livro dos sábios judeus, O Talmude, diz que “uma paixão no coração de alguém é como uma teia de aranha. A princípio, ela é um visitante estranho; depois se torna um hóspede regular; e mais tarde toma conta da casa”. A comparação, também, é como uma teia de aranha. Ela é capaz de tomar uma casa e torná-la bolorenta. Uma casa bolorenta é um ambiente sem o resguardo da simplicidade e da beleza. A simplicidade e a beleza têm a capacidade de blindar os corações dos homens contra o veneno da comparação.
A comparação nos deixa tristes, porque é gerado em nós a compreensão de que o que é do outro é bem melhor, debilitando, assim, o que temos de positivo em nós mesmos. A comparação fecha os nossos olhos para que não enxerguemos as nossas conquistas. Ela encobre com subtilezas o que conseguimos com luta e com desprendimento de suor. O culto ao que é do outro é maior onde não há uma valoração ao que é do próprio sujeito. Aprendemos a cultuar no outro, aquilo que desconhecemos e achamos não ter em nós. O filósofo estóico Epicteto escreveu: “O que perturba a mente dos homens não são os eventos, mas os seus julgamentos sobre os eventos”. O que nos faz comparar é a velha tradição do julgamento. Eu olho para o que é meu e olho para o que é do outro, nascendo daí uma espécie de ciúmes ou vontade de possuir.
Não é que o que pertence ao outro seja melhor do o que eu tenho. Na verdade, são as minhas impressões sobre o que é correto ou o meu conceito sobre o que “é bom”, que invalida o que pertence a mim, fazendo crescer o que é do outro. Os homens modernos são homens infelizes, porque aprenderam a se comparar a partir do que está ao seu lado. A televisão é o maior inimigo contra a felicidade. O cidadão humilde, morador dos subúrbios dos grandes centros, é induzido a pôr na balança o que lhe pertence e o que é exposto pelos meios de comunicação de massa. O seu tênis “velho” e ultrapassado é colocado na balança quando ele ver o novo modelo que está na moda. O celular “antigo” não possui as mesmas funções que o último modelo produzido pelo mercado. É como se ele olhasse para o seu jardim tão mirrado e visse do outro lado o jardim do vizinho, belo, florido e exalando perfume. Ele que tem o orçamento estrangulado não podendo comprar o produto que o deixará “semelhante” aos outros, se encherá de infelicidade. Nasce daí a alienação, que teve sua semente lançada na comparação de uma propaganda de televisão. As propagandas de televisão foram feitas para tornarem os homens urbanos infelizes.
Compara-se pelo instinto de ganância. O livro bíblico de Gênesis afirma que os rebanhos de Abraão e do seu sobrinho Ló, tendo aumentado consideravelmente, fez com que os dois tivessem que se separar. Abraão de forma mais humilde e resignada propôs a Ló: “Ló, meu querido sobrinho, eu e você temos um rebanho grandioso como se pode ver. De forma que já não podemos permanecer juntos porque isso tem gerado problemas. Os seus pastores estão brigando com os meus. Teremos que nos separar. Eu quero propor algo a você, Ló. Se você decidir ir para a esquerda, eu tomarei a direita; em contrapartida, se você for para a direita, eu irei para a esquerda”. E Ló baseado num paralelo que traçou, tendo olhado para todos os lados, foi despertado pela agradável planície do Jordão. Ficou embevecido com a beleza das campinas à sua frente. Decidiu tomar a direção daquela região aparentemente fértil, produtiva. Foi para o Oriente. Ao que Abraão foi para a região menos agradável aos olhos, a terra de Canaã, no Ocidente. A direção tomada por Ló foi dar na terra de Sodoma e Gomorra, cidades que foram, segundo os relatos bíblicos, vítimas da condenação divina por causa da maldade do povo.
Ló utilizou-se da comparação para escolher as campinas do Jordão. Aos seus olhos a terra de Canaã era uma terra sem atrativos e preferiu ir para o Oriente. A tristeza nasce a partir de uma projeção comparada – comparo, levanto a questão; avalio e, possivelmente, posso me tornar triste.
A próxima vez que for comparar, vou me lembrar que no final desse arco-íris não tem um pote de ouro, mas, sim, a tristeza que pode está à espreita com um sorriso maquiavélico e devorador. A inveja nasce onde a comparação é a senhora das virtudes.

Por Carlos Antônio M. Albuquerque.

segunda-feira, novembro 19, 2007

Responsabilidades Humanas

6. O consumo dos recursos naturais para responder às necessidades humanas deve estar integrado em procedimentos mais amplos de proteção ativa e de gestão prudente do meio ambiente.

Fonte: Carta de Responsabilidades Humanas - http://www.redemundialdeartistas.org.br/Alianca/CartaDeResponsabilidade


1. Introdução para uma História:

O homem é um dos principais agentes transformadores da natureza. Ele sempre utilizou os recursos naturais como objetos para a manutenção da sua própria existência. Desde a sua origem, o gênero humano sempre buscou subjugar as hostilidades e as intempéries da natureza. A sua presença no planeta é responsável pela construção de “sentidos”. São estes “sentidos” que identificam as características que determinam as diferentes sociedades e culturas. Em cada momento da História, o homem, por meio de uma ação transformadora, construiu “tendências”, que são responsáveis pela sua existência e que dão identidade ao que ele é. Para isso, várias instituições, formas religiosas, compreensões e ciências explicativas foram desenvolvidas para dar resposta à realidade que o envolve.
Nesse sentido, a forma como está organizada o mundo ocidental é recente, resultado de um processo histórico, de evolução da cultura, do modo de produção econômico (consolidação do capitalismo) e de valores que se cristalizaram como verdadeiros arquétipos. Inicio fazendo observações a partir do Renascimento Cultural da Europa no século XVI, pois ele é um ponto fundamental para falarmos em natureza como entendemos hoje. Foi a partir do Renascimento que o homem passou compreender que a natureza poderia ser usada a seu favor de maneira mais eficaz e complexa. Ele poderia compreendê-la e usá-la como resultado de seu progresso econômico e científico.
O Renascimento proporcionou uma nova forma de se ler o mundo. A partir dele, o homem passou a tomar uma nova consciência de si mesmo. Deixou basicamente de ver a natureza como resultado de uma criação deturpada pelo laivo do pecado como entendia o homem medieval, para vê-la como um objeto a ser conquistado pela ciência que se desenvolvia. Isto, por exemplo, pode ser visto na obra de Francis Bacon o Novo Organon que entendia a natureza como algo a ser dominado em favor do ser humano. Houve assim a desmistificação da natureza. Ela deixava de ser vista como resultado da criação divina, ou seja, uma co-irmã com os homens, para ser uma serva a ser utilizada em benefício do progresso humano.
Com o Iluminismo filosófico, esta leitura se intensificou. A natureza passou a ser vista como uma máquina feita de leis e lógica regulares que seguiam ciclos perfeitos e que podiam ser conhecidos pelo engenho humano. A revolução Industrial pôs um assento agudo de intensidade nesse quesito, pois ela pode ser vista como o resultado do progresso nascedouro. A produção deixou de ser manufaturada e passou ser totalmente industrializada. Os recursos necessários para manter a produção constante foram extraídos diretamente da natureza. Desta forma, o progresso dos homens (a industrialização), significou a espoliação dos bens da biosfera. Extração sem critérios de recursos naturais, para alimentar um entusiasmo industrial/capitalista megalomaníaco. O positivismo que pregava a consolidação da ciência como a grande mãe do progresso humano via na manipulação da natureza a chave para um novo tempo desenvolvimentista para a humanidade.
Assim, desde a Revolução Industrial iniciada na Europa no século XVII, o planeta vem passando por uma séria, grave e preocupante deterioração do meio ambiente. O século XX representou um agravante, pois um contingente novo de tecnologias foi responsável pela degradação de zonas inteiras do planeta, pela poluição de rios e mares, pela extinção de animais, pela excessiva emissão de gases tóxicos na camada de ozônio, causando desequilíbrio climático em todo o planeta.
James Hansem, diretor da Goddard Institute for Space Studies da Nasa e pesquisador do Earth Institute, da Columbia University, diz que “em consonância com evidências históricas, a Terra começou a se aquecer em décadas recentes a uma taxa prevista pelos modelos climáticos que levam em consideração a acumulação de gases produzidos pelo homem. O aquecimento está causando impactos observáveis com o recuo de geleiras em todo o mundo. O gelo marinho do Ártico está mais fino e a primavera chega cerca de uma semana mais cedo que nos anos 50”.[1] De modo que hoje, em pleno século XXI, uma das principais lutas que deve ser travada é a luta pela preservação do meio ambiente. Não há como falar em progresso humano sem se pensar responsavelmente em meio ambiente e ecologia.
Durante muito tempo se pensou que as fontes dos recursos naturais fossem inesgotáveis. Todavia, tem-se visto que esta premissa estava assentado num equívoco caricato. Pois, a degradação porque passa a natureza tem gerado uma preocupação para ambientalistas e entidades responsáveis por um discurso alternativo – vale mencionar nesse sentido o papel das ONGs.
Para dar continuidade a estes argumentos reflexivos, gostaria de tentar explicar e provocar uma ponderação a fim de que se entenda como é complexo o papel de se colocar em prática os princípios do artigo das responsabilidades que debato. Como existe uma estrutura que desrespeita a natureza e está pouco preocupada com a conservação da mesma, essa questão torna-se ainda mais inextricável.


2. Produção: esposa fiel do capitalismo:

O capitalismo se consolida no Ocidente como resultado das revoluções burguesas, também fortalecida no Renascimento. Esse modelo econômico tem como principal característica o acúmulo de bens e a busca constante do lucro. A principal receita para a efetivação desse modelo econômico é a produção e o consumo. Produz-se para se consumir. Há uma necessidade em se produzir sempre mais e cada vez melhor para um mercado consumidor sequioso por novidades. Para isso, a tecnologia está atrelada ao progresso, e, o progresso, à produção, pois não há progresso se não há produção com tecnologias cada vez mais aprimoradas.
Um exemplo disso seria os telefones celulares que há dez anos atrás eram aparelhos grandes, desguarnecidos de acessórios como os de hoje – GPS, câmara fotográfica, com acesso direto à internet... etc. O que determina a moda é a sofisticação cada vez mais apurada. De modo, que os consumidores do capitalismo, sentem-se pressionados pelo próprio sistema a consumirem aquilo que é produzido cada mais vez mais e melhor. Ao se comprar um celular não se pensa na cadeia processual que o levou até à prateleira da loja. Ali estão mecanismos, substâncias, materiais e uma bateria que possui substâncias altamente pesadas do ponto de vista da química, que foram transformados a partir da combinação de elementos naturais. A indústria tem que produzir mais e melhor; e para isso, não respeita os limites da natureza. O que demorou milhões de anos para ser produzido pelo planeta, o homem tem destruído em séculos.
A garganta do capitalismo é gulosa. Ela precisa de mais e mais nutrientes para a sua sobrevivência. Para isso, é preciso produzir, pois quem não produz no mundo capitalista estar completamente fadado ao desaparecimento. É preciso tirar de algum lugar para que esse ciclo produtivo tenha movimento em sua cadência. O que faz com que o mercado permaneça vivo é a produção. Não se trata de uma simples produção como mencionei acima. É uma produção que segue uma determinada lógica – a lógica da tecnologia.
O capitalismo é como uma bexiga. Ele precisa estar sempre recebendo ar para permanecer cheio, bonito e luzidio. Olhando por esta perspectiva, o capitalismo é um sistema autodestrutivo. Rubem Alves diz que “para existir e gozar saúde[o capitalismo], tem de estar num processo de crescimento constante: mais empregos, mais trabalho, mais devastação da natureza, mais monóxido de carbono no ar, mais lixo – seis bilhões de quilos de lixo por dia! – mais exploração dos recursos naturais, mais florestas cortadas, mais poluição dos mananciais... Até quando a frágil bolha suportará?” O capitalismo se expande sem fronteiras. E aonde chega instala as suas bandeiras que deixam marcas profundas na história e na saúde do planeta.

3. Capitalismo: fábrica produtora de desigualdade:

O capitalismo consagra a desigualdade, pois está eminentemente dividido em duas esferas eqüidistantes: de um lado temos aqueles que vendem a sua força de trabalho e, do outro lado, os detentores dos meios de produção. São duas entidades distintas, separadas por um fosso profundo. Aqueles que possuem os meios de produção compram a força de trabalho por baixos salários daqueles que não têm como produzir. Já estes não tendo os meios de produção são forçados a venderem aquilo que de mais preciosos eles têm: a força do seu trabalho.
Olhando desta perspectiva, aqueles que não têm condições mínimas de venderem a sua força de trabalho são excluídos, pois há no capitalismo, uma coisificação, objetização do ser humano. Não se valoriza o ser que é humano, mas quanto o ser humano pode contribuir com a sua força e inteligência à manutenção do sistema. Assim, o sistema torna-se um fim em si mesmo. Aqueles que não servem para preencher os interesses dos donos dos meios de produção acabam por serem completamente postos à margem. Cria-se desta forma, uma classe de excluídos.
O sistema capitalista não visa o bem dos seres humanos, nem possui um interesse de conservar a natureza. O capitalismo transforma seres humanos em mão de obra e degrada o meio ambiente, pois na sua gana utilitária, pouco importa para o capitalista a preservação e conservação do meio ambiente. Não é minha intenção nesse sentido fazer uma crítica ao capitalismo que o torne em algo imprestável, o responsável por toda a degradação do planeta, mas fazer uma leitura de como se dão as relações no mundo ocidental, que gera tanto desigualdade entre os homens, quanto uma degradação do meio natural e tem a sua base motora no capitalismo.
À frente tentarei demonstrar que uma “Nova História” pode ser escrita com ética e responsabilidade. Será possível utilizar os recursos naturais sem degradar os recursos naturais? Como estes recursos podem responder as necessidades humanas de maneira integrada com procedimentos mais amplos de proteção ativa e de gestão prudente do meio ambiente? Estas são questões que devem ser respondidas.

4. Ideário para construção de uma Nova História:

O escritor britânico Oscar Wilde disse certa vez que "um mapa do mundo em que não aparece o país Utopia não merece ser guardado." Nesse sentido, é importante sonhar as melhores utopias em favor do futuro da humanidade e do planeta terra. Um progresso responsável deve estar ao lado de um desenvolvimento sustentável. Nesse sentido, o consumo de recursos naturais deve estar sendo usado em prol das necessidades humanas, todavia este consumo deve ser realizado com amplas estratégias de proteção ativa e responsável, de uma gerência comedida e sensata da natureza.
É interessante notar que todos os candidatos a presidente, todos, indistintamente, de direita e de esquerda, prometem “progresso”. Mas nenhum deles promete preservar a natureza. Por que existe tamanho relaxamento, quando o que está em jogo é o futuro da humanidade? Se esta pergunta não for respondida com responsabilidade, uma afirmação impreterivelmente deve ser feita: o homem é o único animal a produzir a sua própria destruição. A ausência de uma consciência ecológica para a humanidade é o principal responsável pela atual situação de ameaça global.
Diante de um desafio tão grande como este que está à nossa frente configurado, algumas medidas importantes devem ser adotadas por todas as nações, pois se trata de um problema de dimensão global e que diz respeito a todo ser humano. Ignorar tamanho desafio é pôr em risco as próximas gerações. Para isso, é necessário criar redes de solidariedade global e de uma consciência ativa que age em favor da manutenção dos recursos não renováveis.

5. Por uma política que vise o natural:

A principal política que deve ser feito no século 21 é aquela que inclui a natureza no homem e o homem na natureza, sem que este último haja predatoriamente como fez nos últimos 500 anos de História. Os esforços devem ser envidados de todas as partes. Não se trata de uma ação das grandes instituições apenas, mas dos homens comuns também. Um dos fatores mais importantes é a adoção de medidas alternativas. Se os homens comuns deixarem de jogar garrafas de plástico nas praias e no mar, jogar latas de cerveja na mata, por exemplo, o planeta agradecerá. Se as matas ciliares forem respeitadas, o curso das águas poderão se manter vivos. Para isso é necessária uma ação governamental que priorize políticas sociais sérias a fim de diminuir os lapsos da desigualdade social e econômica. Uma vez que isso seja resolvido, loteamentos irregulares não serão criados próximos a áreas de proteção ecológica ativa, provocando o desaparecimento das nascentes de água.
Outro importante aspecto está vinculado ao consumo. O mundo não deve deixar de consumir, todavia o consumo deve ser feito com responsabilidade. Para isso é necessária a reciclagem. Todos devem ter consciência de que todos os bens de consumo são artefatos feitos a partir da transformação do natural e nada melhor do que ter uma consciência cidadã que busque priorizar a responsabilidade para com o meio natural. Entidades de proteção à natureza deveriam ser melhor visibilizadas como, por exemplo, a WWF, o Greenpeace e outros grupos que atuam em favor da manutenção da saúde do planeta.
Outro fator importante deve ser a descoberta de meios facilitadores para que o progresso da ciência e da tecnologia permaneçam como fatores que visam beneficiar a humanidade, sem comprometer os recursos que a natureza levou milhões de anos para criar. Que os países desenvolvidos entendam que é possível continuar a ser uma grande potência sem utilitarismo ou pragmatismo. Porque o pragmatismo e o utilitarismo nem sempre levam em conta a justiça e a ação que beneficia a maior parte. Pragmática do ponto de vista filosófico é a ação que não está preocupada com os meios – se serão éticos, se obstruirão a ordem, se “destruirão” a ética – mas unicamente com os fins.
A adoção de medidas que diminuísse o despejo de toneladas de gases venenosos na atmosfera deveria ser outra questão das questões mais urgentes. Combustíveis fósseis, materiais pesados como os derivados de petróleo deveriam passar por um processo de tratamento mais eficaz. O diesel deveria ser queimado de maneira mais limpa com tecnologias melhoradas. James Hansem diz que medidas simples e criativas seriam significantes para o melhoramento das condições de vida no planeta:

Reduzindo a fuligem também teríamos benefícios econômicos, tanto pelo decréscimo das perdas de vida como em trabalho-anos (partículas minúsculas de fuligem levam compostos orgânicos tóxicos e metais para os pulmões) e aumento da produtividade agrícola em certas partes do mundo. As fontes primárias de fuligem são o diesel e biocombustíveis (madeira e esterco de vaca, por exemplo). Estas fontes precisam ser consideradas por razões de saúde. Deve haver soluções ainda melhores, tais como combustível de hidrogênio, que eliminaria precursores de ozônio, bem como fuligem[2].

Muitas das importantes medidas a serem adotadas para melhoria da existência do planeta, deve ter como principal base o encadeamento de políticas que vise o natural como principal elemento para a sustentação da vida no futuro. Se tais medidas não forem adotadas e incentivadas por governos, igrejas, Organizações não Governamentais, associações de moradores, partidos políticos, universitários conscientes, agremiações estudantis, políticos, professores, pais responsáveis, o futuro do planeta será tenebroso. Trata-se de um esforço conjunto e necessário. O que está em jogo são dois sujeitos: o homem para continuar existindo e a natureza para manter a sua saúde em bom estado. Isso será de importância vital para as próximas gerações.

[1] James Hansen, Scientific Americam Brasil, A bomba-relógio do aquecimento global – Deter o processo requer cooperação internacional urgente e sem precedentes, Edição N.º 23 – abril de 2004 – www.scientificamericanbrasil.com.br
[2] Idem.

Por Carlos Antônio M. Albuquerque

sexta-feira, novembro 16, 2007

As luzes do ontem

As luzes da manhã ainda estão
Guardadas na concha da minha mão.
Ouço a sua voz sumida;
A sua essência simples.
A limpidez que cheira aos
Campos distantes.
O marulhar dos seus fios
Que aquecem.
O tato do seu hálito
Que me envolve;
As sementes da poesia
Estão férteis.
Brotam com os seus
Motivos alarmantes.
Apenas porque represei o
Silêncio dos tempos idos.
A incessante visita do sentir...
Que dói, dói...

Por Carlos Antônio Maximino de Albuquerque

segunda-feira, novembro 05, 2007

A eloqüência do silêncio - Koyanisqatsi

Koyaanisqatsi(1983) é com certeza um dos filmes mais impressionantes que já foram feitos. Trata-se de um documento poderoso e atordoante. Não há como assisti-lo e não adquirir uma sensação, seja de susto ou de profundidade estética e filosófica. A sua intencionalidade nos provoca. A sobreposição de cenas nos conduz por um ambiente silencioso. Não há vozes no filme. Não há palavras humanas. Quem fala são os atos humanos, as ações humanas, o desequilíbrio humano.
O filme possui por fundo uma trilha sonora notável, arrebatadora, que funciona como um guia para nos mostrar imagens indescritíveis. Philip Glass, responsável pela composição sonora, afirma que “a estrutura, a base, as imagens e a música são o elemento interdisciplinar” que tornam o filme belo. As imagens se movimentam e mostram a contingência notável entre natureza, homens e máquinas. Não é possível extrair do filme a música, pois ela também faze parte da ambientação. A trilha sonora, as imagens e o telespectador formam a trindade que tornam o filme uma referência. Quantos forem os telespectadores, tantas serão as impressões sobre esse belo objeto a serviço da arte. Assistir ao filme é convidar para uma experiência única.
O diretor Godfrey Reggio afirma que a sua principal razão para fazer o filme foi apontar o desequilíbrio da vida. O nome estranho foi tomado do idioma Hopi, uma tribo índigena americana (qatsi = vida; e koyaanis = loucura, tumulto, fora de compasso, desintegração ou um estado que pede por outro modo). Assim, ao final o filme tem o significado básico de “vida louca”, “vida tumultuada”, “vida fora de balanço”, “vida desintegrando-se” ou “um estado na vida que pede por outro modo de viver”.
Reggio ainda afirma que o filme buscou tratar sobre a essência da vida. Do homem mergulhado no silêncio do tempo, cercado pelo absoluto da tecnologia. “Não é que usemos a tecnologia, vivemos a tecnologia. Ela é tão indispensável quanto o ar que respiramos. Não temos mais ciência de sua presença”, afirma. Trata-se de um sistema que é alimentado pela necessidade humana. Os homens foram tragados pela via tecnológica. Ainda afirma: “O acidente de hoje não é visto por quem o presencia”. Com certeza, aí está uma assertiva profunda. O homem moderno deificou a tecnologia. A paisagem humana é tecnologizada. Os microchips de computadores são os portadores da nova inteligência. Godfrey, que afirma ter sido influenciado pela religião, diz que a nova religião do homem é a tecnologia. “A vida não questionada passa a ter um estado religioso”, assevera. O jornalista Aramis Millarch escreveu no ano de 1985 sobre o filme: "Em suma, o filme se propõe a mostrar a contradição entre a natureza em seu estado virgem e a montagem urbana do sonho americano"(...) Nova Iorque foi escolhida como a soma das virtudes e defeitos do "american way": o efeito é sobrecarregador. Através dele chegamos ao paroxismo que logram criar as imagens animadas e a partitura musical, que retoma o formato de cantata (provérbios hopis), como na introdução e nos devolve suavemente aos valores primários da natureza".
O sistema criado pelo homem se movimenta. O silêncio da natureza, trabalhou durante as eras magnificentemente as formas dos montes, dos rios, dos vales. O homem transformou o mundo recentemente. Leonardo Boff disse numa palestra que a lógica proporcional, leva-nos a afirmar que a terra surgiu nos últimos dois minutos da história do universo; e o homem , por sua vez, a cinco segundos. A vida criada pelo homem é desequilibrada, louca, tumultuada e está fora de controle. O último dos seres a surgir no planeta é a mais espetacular e a mais terrível das criaturas.
Assim, o filme busca criticar a vida que está fora de equilíbrio. Fora dos eixos. O monstro manco feito pelo homem – a besta. Reggio arremata dizendo o seguinte: “É sobre uma beleza incrível, terrível ou a beleza da fera. Nossa ilustre fera, o modo de vida”. Ao final, existe a afirmação chocante, atordoante, de três profecias antigas traduzidas pelo diretor Gofrey Reggio: “Se escavarmos preciosidades da terra, convidaremos ao desastre”. Isso parece inevitável e certo. A segunda: “Próximo do Dia da Purificação haverá teias de aranha a rodar no céu”. A terceira: “UM pote de cinzas pode um dia ser jogado do céu, o que poderia queimar a terra e ferver os oceanos”.
Enquanto assistia ao filme me ocorreram algumas impressões. São palavras soltas, mas que seguem a lógica das cenas à medida que estas se delineavam:

No princípio de nossas investigações
Buscamos retratar nossas intuições (divinas?);
O monstro de aço que vomita fumaça
E sobe assustadoramente se equilibrando
No vazio – que orgulho!
As montanhas de pedras,
Esqueletos esculpidos pelo tempo.
A superfície varrida pelo vento;
O silêncio, apenas o silêncio!!
Os gases misteriosos que cobrem a extensão.
A gramínea resistente que vence a intempérie;
Espigões que apontam para o céu;
A trilha intermitente de um rio que morreu;
A nesga de sol coado por entre as nuvens;
O rio que ladeia o cânion, a escura água;
Gastamentos, no silêncio;
Do chão brota a fumaça;
Tudo está em combustão;
O deserto arenoso, indisciplinado;
A natureza se forma dialeticamente;
O imenso mar de espumas brancas,
Que rumam, migram atabalhoadamente,
Como bicho para toda parte, no silêncio.
Tudo se move, tudo dança, tudo muda;
O movimento é absoluto – o silêncio também!
A água se beija numa briga imensa
As partículas reduzíssemas;
Aqui, ali, acolá, o mundo inteiro.
Aonde chegaremos?
As cores engolfantes.
A violência dos homens.
O mecanismo duro, frio, que movimenta
E cospe a fuligem negra;
Como uma serpente extensa,
Prolonga-se o duto.
Armações de ferro abrigam a força
Silenciosa que alimenta os nossos sistemas;
Espalham-se por toda parte.
Aqui chegamos.
Os rios químicos, o sulco venenoso
Que formamos dos nossos processos produtivos;
Nossos lixos residuais.
O silêncio agora se transformou em estrondo;
O cogumelo negro de fumaça que se levanta,
Ganha os espaços.
O homem dorme e se confunde com as engrenagens.
Bestificados, admiram o que criaram.
As janelas espelhadas que reflete a luz do céu.
O monstro de lata que se movimenta é capaz de voar.
Pousa soberanamente.
Suas rodas, turbinas, engrenagens, fuselagens
Estrutura nos admira.
Tornamo-nos deuses.
Nossas trilhas são alfálticas.
Baratas de aço com rodas circulam por elas.
Muitos, muitíssimos.
São velozes assim como a vida que passa.
A paisagem foi construída.
Tudo se mistura e confunde os olhos.
Outras baratas estão estacionadas
Esperando serem adquiridas.
Um dia elas não caberão mais
nas artérias do mundo.
O silêncio foi quebrado pelo ronco
Das máquinas – aqui, ali, acolá.
Temos armas poderosas – E = m.c
Nossa natureza é dura,
Nosso mundo é de pedra.
O ronco das máquinas substituiu
O silêncio das eras.
Nossas pedras são artificiais.
As estruturas ruem.
Caem, fragmentam-se como papel.
A noite chega, ameaça o mar de pedra.
Põe efeitos admiráveis na paisagem.
Os blocos gasosos migram por sobre a cena artificial.
O espelho plantado a refletir o movimento.
A estação – povoado por criaturas apressadas
Que passam, passam...
Velhos, mulheres, crianças,
Todos compõem o mesmo espaço.
Quem somos?
Vermes compostos por hormônios,
Ossos e tecidos.
O silêncio dos céus nos impulsiona a criar, criar.
Todos morrem, outros nascem – o movimento.
As caixas de pedras mortos abrigam
Seres de vontades vivas.
As luzes comportamentais como olhos acesos
Anunciam os desejos.
Uma, duas, três, quatro...
Muitas se apagam.
Prédios, caixas, casulos de pedras...
As luzes da noite anunciam um sistema
Vivo, alimentado por uma força invisível.
As baratas vão e vêm.
A lua magnificente contrasta com o espigão
Fálico, símbolo do nosso orgulho.
As vias são artérias por onde passa um sangue
Luminoso alimentando os nossos complexos,
A rede, o mundo que criamos.
Comemos e somos engolidos pelo sistema.
Alimentamos o mundo com nossas vísceras.
A beleza volátil.
O fluxo luminoso, que não pára.
Microchips, mecanismos, cidades miniaturizadas.
Em que nos confundimos?
O mergulho nos espelhos, nas luzes,
Na velocidade;
A contemplação distante, os homens apressados.
As baratas que simbolizam a distinção.
A senilidade do homem que se preocupa
No escanhoamento.
Os olhos inquiridores, o que tu és?
O que somos?
Os anos gastos.
O corpo que se debilita,
As pernas imóveis, moles.
A beleza nova.
Os anos, a cor, a barriga oblonga.
O corpo desaire.
O acidente, a curiosidade, a autoridade.
Somos frágeis.
Nossas construções, projeções podem ser
Importantes, mas no fundo há a fragilidade
Em nossa importância.
Somos fantasmas e nos locomovemos
Para a inanição fatal.
O frio absoluto.
As turbinas cospem fogo e produzem gelo.
Os mecanismos se desacoplam das engrenagens.
Um rabo de fogo pode ser visto no céu.
O estouro veloz.
Caem fragmentos de nosso orgulho.
A fatalidade do nosso destino.
O fogo queimará nosso orgulho.
O enredo trágico.
Profecia traduzida dos índios Hopi, Estados Unidos:

“Se escavarmos preciosidades da terra, convidaremos ao desastre”.

“Próximo do Dia da Purificação, haverá teias de aranha a rodar no céu”.

“Um pote de cinzas pode um dia ser jogado do céu, o que poderia queimar a terra e ferver os oceanos".

sexta-feira, outubro 26, 2007

Ao correr da pena

As folhas brancas – depositárias das idéias.
Como entes abandonados a desejar
O correr luxurioso da pena.
A fricção que é apenas
Contato mecânico e epidérmico.
No fundo existe a idéia que surge
E se espalha pelos hortos da minha alma,
Como sombras feitas por nuvens gordas.
Correm silentes que nem percebo o movimento.
Vem do alto para baixo.
São revelações silenciosas.
Sou um deus sem poderes inumanos.
Apenas a palavra que brota,
Nasce como capim.
Esparrama-se ladeira abaixo,
Precipitando-se pelos desfiladeiros da saudade.
A janela aberta é um convite
Para essas mil solidões sem faces.
Gestada por ato unilateral.
O parto se dá no encontro
Do lápis com o papel.
São as idéias gratuitas, meninas.
A plangência das horas,
O réquiem que somente eu escuto.
O não sentido que se aplica onde
Os outros dizem enxergar a vida.
Consonância, harmonia, intervalo no tempo.
O emaranhado de sensações que aprisiona
Como os tentáculos de um monstro mitológico.
O desejo de ficar nu, correr o mundo.
O mundo possui absurdos irreais
E fantasias reais.
Fico com o papel,
O lápis e as fantasias irreais.

Por Carlos Antônio Maximino de Albuquerque

quarta-feira, outubro 24, 2007

Cotidiano

Os meus pés estão dentro
do carrossel veloz do
cotidiano.
O seu giro que me
entorpece.
As suas mutações insensíveis
deixa-me em estado agônico.
A cabeça já não é a mesma.
Algumas certezas não
resistiram.
O riso de ontem soçobrou
no último por to distante.
As pernas cambaleantes
já não suportam a caminhada.
O corpo lânguido não suporta
as arranhaduras da caminhada.
As dores do mundo se penduram
no ombro magoado.
A manhã me trouxe certezas
e incertezas dúbias.
Aqui estou para mais esse ato.

sexta-feira, outubro 19, 2007

Comentário sobre A Barca de Portinari

Fui a uma exposição sobre Portinari e me impressionei com o quadro intitulado A Barca (1941). Trata-se de um óleo sobre tela 200 x 200 cm. Uma tela de grandes dimensões. A impressão que fica à primeira vista é a nossa estatura diminuída diante do enorme, do silencioso, que nos absorve. A pintura em sua mensagem silenciosa é um apelo. Ouvimos o marulho das águas tempestuosas. A tela possui um aspecto soturno, aziago. As cores são fortes. Não dá para precisar se o espaço que o quadro está inserido é noturno ou se há a retratação de um vendaval que apanhou o barco e sua tripulação.
Um fundo negro com manchas entre o violeta e o azul contrasta com as águas escuras. Ondas vaporosas se erguem. O barco parece singrar por sobre as águas. O vento é rebelde e simboliza a força da natureza. Dá para perceber que a força do vento arroja e comprime os personagens. O vento faz voar os cabelos de um dos personagens que se abaixa para acordar alguém que está dormindo. Este espaço aberto nos impulsiona a crer que antes do momento difícil, havia calma e tranqüilidade. Para que alguém dormisse era necessário que houvesse calmaria. Talvez ainda Portinari tivesse na mente uma das histórias do Evangelho, que nos afirma que certa vez enquanto os discípulos de Jesus atravessavam o mar da Galiléia foram surpreendidos por um vento rijo, tempestuoso. Todos se dirigiram para Jesus, enquanto este dormia tranqüilamente na proa do barco. Os discípulos desejavam acordá-lo com instância. Não se sabe ao certo o que se passava na cabeça do poeta/artista, mas esse espaço aberto no quadro nos possibilita costurar essa ilação. Ou talvez ainda o pintor quisesse inserir um elemento religioso.
O barco inclina para o lado de quem olha a tela e sugere que os personagens correm perigo. Todos olham aflitos. Erguem os braços como que a pedir ajuda. Os braços erguidos solicitam solidariedade. Os olhos fitos, fixos, maquinais, aflitos, induzem o observador do quadro a sentir a dor dos personagens. Uma das personagens tem as mãos na boca. O choro parece ser anunciado. o vestido com bolinhas vermelhas demonstra o aspecto infantil. São crianças. Portinari tinha uma obsessão por pintar crianças. Várias obras ele dedicou a descrever as cenas infantis. Na exposição havia outros quadros. Por exemplo, O menino com o pião (1947); ou ainda O menino com carneiro. As personagens infantis rivalizam com o momento de seriedade que envolve a cena. Tem-se constituído a priori um paradoxo - a serenidade infantil, demonstrando inocência e o poder trágico da tempestade.
As personagens possuem um dos lados do corpo envolvidos pela negritude. Um dos personagens se abaixa todo para pegar um peixe. Arroja o peixe com as duas mãos. O animal parece querer lhe escapulir. Em torno do local aonde está o ser das águas, existe um espaço que nos sugere que está havendo uma luta, um esforço da parte do peixe para voltar ao seu espaço/mundo. A personagem se prostra completamente e parece ignorar o desespero das demais crianças que estão no barco. Os seus cabelos se derramam pela lateral do barco. Parece-me que o autor desejasse mostrar os aspectos mais profundos da infância: que mesmo diante do perigo, das situações difíceis sabem dosar muito bem essas características mais complexas e abafá-las por completo com o jogo mais comedido – a brincadeira.

quarta-feira, outubro 17, 2007

A luz da arte e a minha cegueira

A primeira impressão que tive da pintura ao lado foi de estranhamento. Afinal de contas, não enxerguei em minhas limitações as paisagens que Benjamim descreve. Os olhos de minha sensibilidade precisam de um colírio forte para limpar a minha alma. Perguntei a um colega o que ele via na pintura e ele me respondeu mais ou menos assim: "Acredito que seja um desenho de criança". Nunca cheguei a conhecer as intenções de Klee. Mas entendo acima de qualquer coisa que a resposta do meu colega tenha um propriedade e uma profundidade inerentes. A pintura revela as mãos infantis do artista. A arte é séria, mas brinca com as nossas convenções. Ela nos choca porque fala daquilo que não estamos acostumados. Vivemos o trivial. Vemos o mundo por meio de sombras e quando nos apresentam a luz daquilo que pode ser, assustamo-nos. É bem parecido com aquilo que Platão narra em seu Mito da Caverna. Sei que as palavras revelam os limites do meu mundo, anunciando de onde venho, quem sou, as minhas experiências e as minhas limitações. Com certeza, quem mais entedeu esse quadro fora de Klee foi Walter Benjamin. O filósofo afirma de forma brilhante o seguinte sobre o quadro de Paul Klee:



"Há um quadro de Klee chamado Angelus Novus. Representa um anjo que parece a ponto de afastar-se para longe daquilo a que está olhando fixamente. Seus olhos estão arregalados, sua boca aberta, suas asas estendidas. O anjo da história deve ter este aspecto. Seu rosto está voltado para o passado. Onde diante de nós aparece um encadeamento de acontecimentos, ele vê uma catástrofe única, que vai empilhando incessantemente escombros sobre escombros, lançando-os diante de seus pés. O anjo bem que gostaria de se deter, despertar os mortos e recompor o que foi feito em pedaços. Mas uma tempestade sopra do Paraíso e se prende em suas asas com tal força, que o anjo já não as pode fechar. A tempestade irresistivelmente o impele ao futuro, para o qual ele dá as costas, enquanto o monte de escombros cresce até o céu diante dele. O que chamamos de Progresso é esta tempestade".

quinta-feira, outubro 11, 2007

Impressões

Estática como uma rocha.
Impenetrável como uma fortaleza.
Segredos invioláveis.
Gestos sombrios.
Manhã soturna, num céu noturno.
Encontros.
Por outro lado: desencontros.
Oscilações.
Gravitações.
As estações feitas em rondó.
Segredos velados, aveludados, recorrentes.
Pasmos, paciência chorosa.
Visitado pela esperança, assaltado pelo desespero.
O que se constrói, destrói.
O que é experimentar o novo?
Atenção terreno pantanoso à frente.
Susto.
Tresvario.
Deixo a vida como quem deixa o tédio.
A chuva cairá esta manhã.
Vou me alagar.
Barricadas, urgente!
Fraqueza, lassidão.
Desfecho infeliz.
Mais um rondó.
Ciranda animada.
Roda-Viva, círculo de fogo, queimador de entranhas.
Chamuscamento.
Vai manhã e vem manhã e terra permanece para sempre.
Lei perpétua, caos perpétuo.

Por Carlos Antônio M. Albuquerque

terça-feira, outubro 09, 2007

Você tem um furúnculo?

Este é um texto de um grande mineiro: Rubem Alves. Gosto especialmente deste texto porque revela a profunda relação que o poeta possui com o sofrimento, com o parto, com a agonia de criar, de trazer à vida aquilo que grita dentro da alma. A arte é um acerto de contas consigo mesmo. É um ferrumamento insistente que se insurge e deseja ver a luz do mundo a fim de habitar os corações.


Há um ditado Zen que diz: "Nunca mostres o teu poema a um não poeta." Você me enviou os seus poemas. Isso quer dizer que você me considera um poeta. Mas eu mesmo não sei se sou poeta. Sei que escrevo poeticamente, porque brinco com imagens, sons e ritmos. Mas um poema nunca me pediu que o escrevesse. Régis de Moraes, amigo meu poeta, disse-me que quando há dentro dele um poema para ser escrito ele se sente como um galinha que tem um ovo para ser botado. Eu nunca senti isso...
Você me enviou os seus poemas desejando que eu os leia. Nada mais justo: quem escreve deseja ser lido. Mas mais do que isso: você deseja que eu goste dos seus poemas. E que eu diga: "Você é um poeta! Merece ser publicado!" Está certo: quem escreve deseja que seus textos sejam transformados em livro.
Houve uma só vez, em toda a minha vida, em que lutei para que um livro de poemas fosse publicado. A Maria Antônia era minha aluna na UNICAMP. Tinha - e ainda tem - uma carinha de menina travessa. Acho que vai morrer com ela, a carinha travessa... Me deu um livrinho artesanal, Fogo-Pagô, com essa dedicatória: "Rubem: eu acho você engraçado e gosto de você e fico desejando que você leia esse livro e ache alguma graça nele. 1 abraço. Maria Antônia.
15.04.82." Amanhã completa 20 anos. Ela não foi a primeira mulher a me achar engraçado. Quando fui professor visitante no Union Theological Seminary (New York, 1971) meus alunos começaram a vir ao meu escritório, na véspera da minha volta ao Brasil, para se despedirem. Chegou uma jovem, longos cabelos ruivos, sardenta. Olhou-me nos olhos e disse: "Sonhei com você..." Sorri, imaginando o que ela teria sonhado. "Sonhei que você era um palhaço..." Aí meu sorriso virou riso: ela havia entendido. Sou palhaço. E estou em boa companhia: no final de um dos seus poema Nietzsche disse que ele era apenas um palhaço, apenas um poeta... O fato é que o rosto de menina travessa e o fato de ela me haver achado engraçado me seduziram. "Fogo-pagô canta manso e triste/ fazendo eco no fundo da gente/ encavalando alegria e agonia,/ que daí ficam disputando entre si/ prá reinarem no peito..." Foi amor à primeira vista porque o poema dela chamou pelo nome certo o canto que eu ouvia sempre nomeu peito... Depois ela escreveu outros. Um deles eu batizei e prefaciei, Ceriguela. Até que, indignado com a dificuldade que têm os poetas para publicar seus poemas, batalhei com o pessoal da Papirus e eles também sentiram o que eu sentia e publicaram o Terra de formigueiro.
Mas não me julgo em condições de avaliar poemas. Eu não sou poeta. Assim, faltam-me as credenciais. E o pior: falta-me tempo. A Natália, minha assessora, comentou dias atrás que, se eu fosse ler todos os textos que me são enviados para serem apreciados eu teria que abandonar tudo o que faço, deixar de escrever minhas coisas, e ler sem parar, 24 horas por dia, e ainda assim eu não daria conta... Razão por que eu nem mais aceito convites para participar de bancas de tese. O tempo não dá! O tempo não dá! O Drummond se viu em situação idêntica e até escreveu um texto bravo com o título Apeloaos meus dessemelhantes em favor da paz. Não, não era a paz mundial. Era a paz dele... Ele também não dava conta. Ele só queria ter tempo para escrever as coisas dele e ler os livros que quisesse...
Lamento mas minha prioridade de vida é botar os meus ovos, escrever as coisas que me dóem. Igual a um furúnculo... Você já teve furúnculo? Incha, fica vermelho, lateja, dói, forma aquele ponto amarelo de pus. Tem de ser espremido. Dói para ser espremido. Mas é só através da dor do espremer que ele pára de doer. Escrever é assim. Um texto a ser escrito é um furúnculo que dói. Os seus poemas dóem em você? Ficam atormentando você, pedindo para ser escritos? Ou são simples coceiras? Só se meta a ser poeta se seus poemas doerem muito... Escrever poesia é um ofício terrível. Primeiro porque há poetas gigantescos como Fernando Pessoa, Hilda Hilst, Cecília Meireles. Segundo, porque é muito difícil que as editoras publiquem livros de poemas.Poesia, com raríssimas exceções, é mau negócio. Dá prejuízo.
Seus poemas nascem de inspiração? Leia atentamente essa precisa descrição da experiência da inspiração, feita por Nietzsche e, honestamente, diga se esse é o seu caso. "Será que alguém, ao final do século dezenove, tem uma idéia clara daquilo a que os poetas das eras fortes chamaram pelo nome de inspiração? Se não, vou descrevê-la. Repentinamente, com certeza e sutileza indescritíveis, algo se torna visível, audível, algo que nos sacode em nossas últimas profundezas e nos lança por terra... A gente não busca; ouve. Não pede ou dá; aceita. Como um relâmpago, um pensamento se ilumina de forma irresistível, sem hesitações com respeito à sua forma. Eu nunca tivequalquer escolha! Tudo acontece de forma involuntária no mais alto grau, mas como uma onda enorme de liberdade, um sentimento de algo absoluto, de poder, de divindade." É assim que acontece com você?
Se é assim que acontece com você, então, vale a pena prosseguir. Não pelos livros que você venha a publicar, mas pela simples alegria de... botar o seu ovo... Mas é preciso honestidade para distinguir entre furúnculos e coceiras...
O que melhor posso fazer é dar a você, e a todos os que amam poesia, algumas sugestões.
Leia, em primeiro lugar, o maravilhoso livro de Rainer Maria Rilke Cartas a um jovem poeta. São cartas de enorme delicadeza, sensibilidade e honestidade. Rilke as escreveu a um jovem que lhe enviara poemas de sua autoria, pedindo que o poeta desse a sua opinião. Que tempo maravilhoso aquele, quando o tempo andava devagar, e havia tempo para se escrever longas cartas em papel, com tinta, caneta, mataborrão, envelope, selo e caminhadas até o correio... Tempo feliz aquele, quando a chegada do carteiro era um evento grave, pois se sabia que cartas eram, sempre, portadoras doessencial.
Leia, depois, o Manoel de Barros, poeta matogrossense... Livro sobre nada, Livro de pré-coisas, Arranjos para assobio, O livro das ignorãnças... O Manoel da Barros é mestre de aforismos, afirmações curtas, marteladas na cabeça de um prego, que desarrumam o arrumado e fazem pensar. "Palavra poética tem que chegar ao grau de brinquedo para ser séria". "A terapia literária consiste em desarrumar a linguagem a ponto que ela expresse nossos mais fundos desejos." "Melhor que nomear é aludir. Verso não precisa dar noção." "Tem mais presença em mim o que me falta." "Quem acumula muita informação perde o condão de adivinhar." "Eu queria avançar para o começo. Chegar ao acriançamento das palavras." "Deus deu forma. Os artistasdesformam. É preciso desformar o mundo: Tirar da natureza as naturalidades.Fazer cavalo verde, por exemplo. Fazer noiva camponesa voar - como emChagall..."
E ler, bovinamente, ruminantemente, em voz alta, os poetas... É preciso ler em voz alta. Poesia não é pensamento. É música. Você sabe ler? Claro: eu sei que você sabe ler... Mas não é isso que estou perguntando. Estou perguntando se, ao ler, suas palavras fazem música. E os seus poemas? Que música fazem eles? Leia Alberto Caeiro, Álvaro de Campos, Fernando Pessoa, Mário Quintana, Adélia Prado, Cecília Meireles, Hilda Hilst, Chico Buarque, Vinícius...
Para terminar vou transcrever o que Rilke escreveu ao término de sua primeira carta: "Mas talvez se dê o caso de ter o senhor de renunciar a se tornar poeta. Basta sentir que poderia viver sem escrever para não mais se ter o direito de fazê-lo..."
DICA: Vocês sabem como eu amei o DALÍ, restaurante onde pus os meus sonhos. Não deu certo. Fechei o DALÍ. Mas um amigo o reabriu. Está muito bom! Sugestão: experimente almoçar lá. Comida excelente. Bufê à vontade! Música suave. Sobremesa incluída. Os homens pagam R$ 7,90. As mulheres... R$ 6,90. E tudo ao lado da sombra da velha mangueira...
Por Rubem Alves