sábado, outubro 31, 2009

Eu, a tarde e o caderno de notas de Anna Magdalena Bach.

A beleza deve nos fazer mais tristes.
Lidar com os poderes imarcescíveis da pureza
etérea nos faz primeiramente reconhecer
nossas limitações.
O profeta Isaías ao entrar certa vez
no Templo em Jerusalém teve uma
visão do Infinito.
A experiência o fulminou.
Disse: “Ai de mim que moro no meio
de um povo de impuros lábios e os meus
olhos viram o Santo”.
A visão Inefável nos recolhe à nossa
insignificância.
Após a reflexão, vem-nos a dignidade,
o desejo de celebrar, de ser humano,
de se tornar digno daquilo que ver.
Foi assim que o mesmo profeta proferiu à Visão:
“Purificai-me e ficarei mais limpo que a neve”.
A beleza, a visão daquilo que é santo, deve
nos melhorar.
É por isso que surge em mim a serenidade.
Estou ouvindo a beleza da música de Bach.
As anotações de Anna Magdalena Bach – o minueto.
E essas reflexões me surgem.
A alegria me invadiu por completo.
Não tenho palavras para mencionar.
O cravo de Bach despeja árias, minuetos...
Uma voz melíflua voa, ganha o infinito.
Sinto-me estúpido.
Essa ambigüidade de sentimentos é necessário.
A beleza e o torpor.
Por trás desse muro de realismo há o sentimento,
o anelo de ser grande.
De paralisar-me, de congelar-me no tempo.
Abandonar a civilização, morar num mosteiro
à semelhança de um eremita.
Imagine!
A música possui poderes paralisantes.
Reduz-nos e agiganta-nos.
Bach sabia manusear a beleza.
Não era como Rimbaud que um dia
sentou a beleza no colo e espancou-a.
O compositor alemão acarinha a beleza,
trata-a delicadamente.
A tarde está nublada.
O mundo mostra-se como num
preparativo para um funeral.
Logo mais as nuvens destilarão os
seus poderes – choverá.
Aqui onde estou há uma alameda de flamboyants
Com suas cabeleiras em chama.
E a música de Bach.

Por Carlos Antônio Maximino de Albuquerque
Data: segunda-feira, 03 de novembro de 2008.

sexta-feira, outubro 16, 2009

Um pequeno comentário sobre Saber Cuidar – de Leonardo Boff

Uma certa curiosidade me levou a ler o livro Saber Cuidar – Ética do humano – compaixão pela terra do teólogo e pensador Leonardo Boff. O escritor de origem católica tem produzido uma vasta literatura na área de espiritualidade, buscando enfatizar um encontro com o outro como uma atividade imprescindível à humanização do homem moderno.
O autor centra a sua tese na necessidade de “cuidado” para com a casa comum dos homens – O Planeta Terra, Gaia. Todos devem estar envolvidos nessa busca pela construção de uma outra consciência que priorize e essencialize o cuidado como ethos para uma nova condição humana. Saber Cuidar é uma obra prazerosa de ser lida, porque emprega várias ferramentas filosóficas, da teologia, da psicologia e da literatura como possibilidade reflexiva.
Boff se utiliza de uma fábula sobre o cuidado escrita pelo erudito romano Gaius Julius Hyginus. Nesta fábula o Cuidado cria o homem a partir de um pedaço de barro. Enquanto Cuidado contemplava o que havia criado, aparece Júpiter, a entidade suprema do Olimpo. Cuidado pediu para que Júpiter soprasse o espírito de vida na obra que criara. Júpiter o fez de bom grado. Todavia, quando Cuidado queria dar um nome àquela nova criatura, Júpiter proibiu e indicou que o nome deveria ser imposto. Cuidado discordou. Enquanto os dois discutiam sobre o destino da criatura, surgiu a Terra e disse que era dela o direito de posse. Os três ficaram por muito tempo discutindo o destino daquele que fora criado. Por fim, chamaram a Saturno para ser árbitro da causa. Este assim decide: (1) Júpiter por ter dado o espírito à criatura, receberia de volta o presente que fora dado; (2) a Terra por ter fornecido o barro que teceu ao homem, receberia de volta o corpo quando este morresse. (3) e, finalmente, Cuidado por ter moldado a criatura, cuidaria dela enquanto vivesse. É a partir dessa história mítica que Leonardo estrutura a sua reflexão sobre a esssencialidade do cuidado.
Segundo o próprio autor, os mitos são difusores de grandes possibilidades. Eles são capazes de irradiar perspectivas extraordionárias que o pensamento técnico não desenvolve por causa da objetividade com que trata a realidade. Assim, os mitos “ajudam a entender a universalidade de certas experiências e apontam para as várias travessias que caracterizam a aventura humana”. Seguindo esta linha de desenvolvimento, Júpiter representa a dimensão celeste, solar da existência. Ou seja, todas aquelas experiências que apontam para a beleza, para a alegria. Júpiter é a figura do pai, daquele que cuida. Daquele que indica o caminho certo. A Terra representa a vida, a natureza; o feminino, o útero que abriga e que recebe o sêmen gerador da fertilidade, que faz fecundar todas as possibilidades de vida. É o elemento que acolhe. Saturno representa a utopia, o sonho, o progresso. É o deus das sementeiras, da agricultura, da fertilidade. Este aspecto aponta para a liberdade, pois nos dias em que se festejava esta divindade, todas as diferenças eram abolidas.
Boff busca por meio dessa análise reflexiva, apontar para um dos maiores problemas que tem acometido o homem da pós-modernidade: o esquecimento das questões espirituais e a aproximação de um estilo de vida materialista. Tal modelo desvincula o homem de qualquer projeto identitário com o outro, com os animais, com as plantas, com o planeta. O que guia o homem é uma força espoliativa. A filosofia que impulsiona o homem atual é a vontade de lucrar e por conta desse desejo irreprimível, aquelas realidades essenciais são menosprezadas. Por está voltado para esse modelo, o homem teria se desvinculado do Todo essencial que deve mover e impulsionar a humanidade para construir um projeto holístico capaz de frear esses impulsos destrutivos. O que a Terra demorou para construir em bilhões de anos, a falta de cuidado do homem tem feito perecer em pouco mais de alguns séculos.
Um aspecto interessante que a obra aborda é a ditadura do modo-de-ser-trabalho, que tem como fundamento a tirania sobre o outro. Este é o modelo do mundo capitalista que pensa unicamente no crescimento, no lucro, na exploração. Boff afirma que esta perspectiva abriu “o caminho para a vontade de poder e de dominação sobre a natureza”. Pois, “este tipo de razão exige ‘objetividade’, impõe um certo distanciamento da realidade a fim de estudá-la como um objeto para acumular experiências e dela assenhorear-se”. O autor, pelo contrário, sugere que o modelo a ser perseguido pelo homem é o modo-de-ser-cuidado, abrindo-se ao cuidado essencial como suporte da criatividade, da inteligência e da liberdade. Esta perspectiva volta-se para a essência do humano, para a dimensão do cuidado. “O cuidado é uma atitude fundamental, de um modo de ser mediante o qual a pessoa sai de si e centra-se no outro com desvelo e solicitude”. “Foi com cuidado que “Cuidado” moldou o ser humano. Empenhou aí dedicação, ternura, devoção, sentimento e coração. E com isso criou responsabilidades e fez surgir a preocupação com o ser que ele plasmou. Estas dimensões, verdadeiros princípios constituintes, entraram na composição do ser humano. Viraram carne e sangue. Sem tais dimensões, o ser humano jamais seria humano”. Em suma: o que distingue o homem de qualquer outra espécie é a sua capacidade de cuidar, de desvelar-se afetuosamente. Tal dimensão precisa ser resgatada de forma poderosa para que a vida seja preenchida por significados essenciais.
Ao final de sua reflexão, Boff insere figuras “exemplares” de cuidado. De pessoas como as mães e avós que morrem de desvelo pelos seus. As figuras históricas de Jesus, de Gandhi, de Francisco Francisco de Assis ou madre Teresa de Calcutá, também aparecem como modelos essenciais de cuidado.
A obra e empolgante, de leitura imensamente deliciosa e reflexiva. Possui um veio utópico básico. Boff entende que a única via capaz de “salvar” o homem é por intermédio de uma espiritualidade que faça surgir uma nova ética do cuidado. É preciso re-ligar-se ao Todo Imanente que preenche todas as coisas. Sem propor modelos religiosos, o que o autor busca é a criação de uma “religião” que desperte o homem para uma nova ética, que inclua a natureza, o outro, e toda a criação. E o elemento que deve conduzir o homem é o cuidado. E finalmente: “O cuidado faz surgir o ser humano complexo, sensível, solidário, cordial e conectado com tudo e com todos no universo”. Embora não concorde em muitos aspectos com a reflexão de Boff, por entender que sem uma ruptura com o capital não há possibilidade de construir este projeto, a obra é uma "doce reflexão utópica". Vale a pena ser lida.

Por Carlos Antônio Maximino de Albuquerque
Data: 21 de setembro de 2009, segunda-feira, 21:33:00