segunda-feira, maio 17, 2010

O Vermelho e o Negro, de Stendhal

Terminei a leitura de o Vermelho e o Negro de Stendhal, obra escrita em 1830. Negligenciei a leitura em dado momento, já que me encontrava ocupado com outras questões, mas nas últimas duas semanas li com bastante avidez até concluir a obra. É um livro de leitura fascinante. O realismo de Stendhal é sóbrio, repleto de imparcialidade. Percebe-se no romance um grau bastante elevado de embates, diálogos e reflexões psicológicas em Julien Sorel, o principal personagem de O Vermelho e o Negro. A princípio a leitura da obra de Stendhal me pareceu enfadonha, mas aos poucos ganhou uma grandiloquência, uma altura e profundidades somente vistos em grandes e imortais obras da literatura universal. Sorel é um homem à frente de seu tempo. É um progressista (admirador de Napoleão Bonaparte), visionário, que está acima da mesquinhez busguesa tão grassante em no período em que vive. O Vermelho e o Negro é uma crítica às aparências, à hiprocrisia burguesa. Julien prefere morrer a apelar para a justiça caprichosa. Abaixo segue um excelente e breve texto sobre a importância do personagem Julien Sorel.

Julien Sorel e a castração coletiva

Julien Sorel (herói de “O vermelho e o negro”, de Stendhal) é o símbolo do grande homem desperdiçado graças ao caráter mofino de sua época. Ambicioso, orgulhoso, determinado, sonha com o tempo no qual, sob o comando de Napoleão – seu modelo de força e saúde – teria feito fortuna, vivido paixões, enfim, gastado todos os excessos de sua energia vital. É homem de constituição escura e antiga, mas que nasceu na década errada: Napoleão foi traído, definha em Santa Helena, os burgueses corruptos foram cooptados, os nobres vivem entre a afeminação e o temor de novas guilhotinas, e Sorel, pobre de nascença, não vê alternativa de ascensão além do seminário, jardim dos animais castrados, entre os quais segue alimentando secretamente desejos de grandeza. Todo o romance conta a saga desse desperdício, e a mestria de Stendhal está em justamente fazer a própria época soar anacrônica em relação ao herói, e não o contrário. Mas sabemos o preço final que Sorel terá de pagar pelo “pecado” de sua força. A tragédia purga o ressentimento dos medíocres mediante o sacrifício da milagrosa exceção. Nesse ponto, digamos assim, higiênico, Stendhal não conseguiu se desvencilhar do modelo clássico. A teoria da evolução afirma que órgãos animais sem uso tendem a atrofiar. Nossos caninos, por exemplo, que hoje só servem para doer. Pode-se dizer que a segura civilização produz cada vez mais atrofias: nossos órgãos de defesa e ataque secam progressivamente, somos cada vez mais dóceis citadinos aparados nas arestas afiadas – nossa cauda transformada em espírito. Somos cultivados de modo que nossa periculosidade definhe: com ela nossa energia vital. Julien Sorel é um monstro diante dos capados poodles do seu tempo. Tem que usar de hipocrisia para viver, o que fere seu orgulho, fazendo-o duvidar de si, desprezar-se. Eis o nascimento da má consciência, a qual não passa de falta de clareza sobre si mesmo. Tal má consciência deve ser reconhecida publicamente, só então o indivíduo pode ser aceito de novo no seio da comunidade. De arestas aparadas, obviamente, e todos os órgãos atrofiados. Se não me engano, Aristóteles disse certa vez que escolher entre suas habilidades aquelas necessárias à sua época é o caráter da vocação. Creio no contrário, e às vezes uma época desperdiça seus melhores espécimes em prol de um declarado programa de castração. Assim sendo, fecho com Nietzsche, que afirmou ser a empatia um tipo de mimetismo atrofiado – herança instintiva da época na qual o animal homem queria se misturar ao ambiente, repetindo em si de modo maquinal o gesto do outro, na tentativa de intuir se este representava ou não perigo. Com a domesticação, colocou-se um felpudo penhoar de dormir sobre esse instinto: que passa a ser visto através da máscara metonímica da piedosa capacidade de “se colocar no lugar do outro”. Porém, a base vital dessa fatuidade permanece sendo a conservação de si mesmo, o que em termos da boa sociedade significa egoísmo – conceito que contradiz o fundamento moderno da própria empatia. Logo, temos uma contradição em termos. Toda a civilização é uma contradição em termos.

Extraído DAQUI

Por Carlos Antônio M. Albuquerque
Data: 17 de maio de 2010, 18:37

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