quinta-feira, outubro 07, 2010

A hora da estrela, de Clarice de Lispector

“Ela era subterrânea e nunca tinha tido floração. Minto: ela era capim”.
Clarice Lispector

“...sua vida era uma longa meditação sobre o nada”.
Clarice Lispector

Li poucos livros de Clarice Lispector. Talvez dois ou três. Mas foi o suficiente para incuti em mim noção de que ela figura no rol dos grandes escritores da história da literatura universal. Não é exagero. Quem já leu e prestou atenção no texto clariceano sabe do que estou falando. Cada leitura que fazemos de Clarice resulta numa experiência de atordoamento. Clarice não é somente uma escritora de literatura. É uma filósofa. O seu texto possui um interseccionamento com Sartre. Percebo fortes pontos de verossimilhança entre a abordagem existencialista de A Náusea de Sartre e A Paixão Segundo G.H. de Lispector, por exemplo, embora os objetos da narrativa sejam distintos.

O fato é que após ter finalizado a leitura de A hora da estrela, último livro publicado da escritora no de 1977, fiquei com aquela impressão atordoante. É como se eu tivesse saído de um dilúvio. A narrativa é uma revelação da nulidade que é a alma de Macabéa, retirante saída de Alagoas para viver no Rio de Janeiro. Clarice faz uma cirurgia sem anestesia na alma da nordestina. Revela a paisagem interior da personagem vinda de Alagoas e, constatamos, com isso, enormes espaços vazios, sem substância.

Macabéa não existe, apenas vive e o seu viver é uma sucessão de coisa nenhuma. É inocente. Tola. Sem atrativos. É ingênua. Ela era “virgem”. Não fazia “falta a ninguém”. Fisicamente, era indefinida. Era “assexuada”. “Macabéa tinha ovários murchos como um cogumelo cozido” (pp. 58-59). Sua gênese, possivelmente, deve ter sido resultado de uma ideia vaga dos pais famintos. Ela não tinha força de raça, era subproduto. As descrições nuas, pesadamente realistas, vão enchendo as páginas. É como se fôssemos constrangidos a amar a sua inanição, a sua feiúra, sua condição de ser que não é. A personagem situa-se entre o quixotesco e o idiotismo. Mas, apegamo-nos à sua saga e enxergamos nela um arquétipo da alienação de tantos brasileiros e brasileiras que possuem apenas o fôlego de vida.

O nome da obra (“A hora da estrela”) parece construir sentidos de uma grande ironia. Que momento (“hora”) se dá essa epifania (“da estrela”)? Macabéa não possui brilho nenhum. É opaca. Sua vida é andar no escuro. Viver numa cidade como o Rio de Janeiro é ser anônima no meio de uma constelação de astros autônomos e distantes. Seu alheamento a impelia a reflexões disparatadas: Ouvira na Rádio Relógio que havia sete bilhões de pessoas no mundo. Ela se sentia perdida. Mas com a tendência que tinha para ser feliz logo se consolou: havia sete bilhões de pessoas para ajudá-la (p. 58). Assim, talvez o “estrelato” de Macabéa tenha se dado nos minutos finais de sua vida. Após ter ido consultar Madama Carlota, uma vidente, sai da sessão esperançosa. Sua alma jubila. Sua confiança havia recebido um facho roliço de força: Até para atravessar a rua ela já era outra pessoa. Uma pessoa grávida do futuro. Sentia em si uma esperança tão violenta como jamais sentira tamanho desespero (...) Tudo de repente era muito e muito e tão amplo que ela sentiu vontade de chorar. Mas ela não chorou: seus olhos faiscavam como o sol que morria. Então ao dar o passo de descida da calçada para atravessar a rua, o Destino (explosão) sussurrou veloz e guloso: é agora, é já, chegou a minha vez! E enorme como um transatlântico o Mercedes amarelo pegou-a – e neste mesmo instante em algum único lugar do mundo um cavalo como resposta empinou-se em gargalhada de relincho. Macabéa ao cair ainda teve tempo de ver, antes que o carro fugisse, que já começavam a ser cumpridas as predições de madama Carlota, pois o carro era de luxo. Sua queda não era nada, pensou ela, apenas um empurrão. Batera com a cabeça com a cabeça na quina da calçada e ficara caída, a cara mansamente voltada para a sarjeta. E da cabeça um fio de sangue inesperadamente vermelho e rico. O que queria dizer que apesar de tudo ela pertencia a uma resistente raça anã teimosa que um dia vai talvez reivindicar o direito de grito. (pp.79-80).

O atropelamento proporciona a percepção dos transeuntes. De repente, surgem entes de todos os lados – alguns saem dos becos; outros, ao passarem constatam o corpo inerme, a matéria esquálida, caída. A libertação de Macabéa vem com morte. Aos poucos, a morte se aproxima com os seus braços e beiços frios e beija Macabéa. Nesta exata hora Macabéa sente um fundo enjôo de estômago e quase vomitou, queria vomitar o que não é corpo, vomitar algo luminoso. Estrela de mil pontas. (p. 85) Ou seja, o anonimato de uma existência que nada era, nada possuía, era um buraco sem fundo, parece ganhar corpo com a morte. O seu “estrelato” passa por ideia de libertação. A sua vida que era uma caixinha de música desafinada, passa por uma inflexão profunda com a morte.

Percebe-se nesse sentido, que Clarice busca apontar para o fato de que as vidas que não são, adquirem mais importância com a morte. Tantas pessoas padecem da mesma doença, vivem sem saber o que é a vida. São astros sem luz. Estrelas que não possuem energia em si. Nascem para nada ser. Não se indagam. Não aprendem nada. Vivem em um mundo à parte. Há uma cortina que os impossibilita de enxergarem o que é existir, o que é sentir, o que é ser. Indagar a si mesmo é primeiro passo para se enxergar incompleto. Clarice nos abre os olhos da percepção para que entendamos o que é ser. Faz-nos entender que mais que viver é existir. Existir é sentir o gosto, o cheiro, o tato da vida.

Que escritora, meus amigos!

Por Carlos Antônio M. Albuquerque

Data: Domingo, 3 de outubro de 2010, 11:52:30

4 comentários:

Anônimo disse...

cara to vendo que tu parou no tempo. porque tu não escreve mais emteu blog? vai ai uma sugestão é um link: http://www.viomundo.com.br/politica/professores-denunciam-bonapartismo-de-serra.html

e ve se faz alguma propaganda da dilma seu corno.e não me sensure cabra safado.

João Gomes disse...

Olá, tudo bem? Que delícia encontrar um blog que fala de literatura tão bem. Sou apaixonado pelos escritos de Lispector. Tenho também um blog de cultura. Dá uma passadinha depois.

http://lugardoleitor.blogspot.com.br/

Abraços, João.

Carlinus disse...

Obrigado pela visita, João Gomes.

Percebi a sua peixão pelos livros. Parabéns.

Abraços virtuais!

Karyttus disse...

Carlino, eu havia elogiado seu blog de música, mas me deixei arrastar também por este aqui. bastaram duas frases que você colocou de minha deusa CLARICE!!!
“Ela era subterrânea e nunca tinha tido floração. Minto: ela era capim”.Clarice Lispector

“...sua vida era uma longa meditação sobre o nada”. Clarice Lispector

Parabéns, eu digo sempre que clarice é um dos maiores escritores da língua Portuguesa.
Abração, Karyttus