quinta-feira, fevereiro 17, 2011

Comunicação e cultura em Paulo Freire: 30 anos depois

Hoje, a contribuição de Paulo Freire para o campo da comunicação é fonte de inspiração e referência. A situação, certamente, não era a mesma no final da década de 70. Embora reconhecido internacionalmente e estudado em várias disciplinas, seu pensamento era quase que totalmente ignorado nos estudos de comunicação, inclusive no Brasil.

Visitando a trabalho o sul da Índia, estado de Tamilnadu, no início de 2010, o professor de física da Universidade de Brasília, Amílcar Rabelo de Queiroz, deparou-se com uma situação reveladora. Em viagem para a região de Thanjavur conheceu um vilarejo pobre – Pattukkotta – que vive basicamente da pequena agricultura. Lá visitou uma escola de educação fundamental. Para facilitar sua apresentação e criar um clima amistoso, os colegas do Institute of Mathematical Sciences (IMSC), que com ele viajavam, informam aos professores da escola que Amílcar era brasileiro, da terra de Pelé. “Brasil? Pelé?”. Repetem várias vezes. De repente, um deles sorri e exclama: “ah, ah, Brasil, claro, terra de Freire, Paulo Freire!” E alcança na estante vários livros de um dos nossos maiores educadores, traduzido, estudado e reconhecido em todo o mundo.

Paulo Freire faleceu há quase 14 anos, em maio de 1997. Se estivesse vivo, completaria noventa anos em setembro. Sua obra, seu pensamento e sua ação deixaram marcas profundas em vários campos do conhecimento. Seu único ensaio especificamente sobre comunicação – Extensão ou Comunicação? – foi escrito no exílio chileno, em 1968, e publicado pela Editora Paz e Terra, no Brasil, em 1971.

Tenho afirmado recorrentemente que as reflexões de Freire sobre comunicação nunca estiveram tão atuais. [cf. nesta Carta Maior “Paulo Freire, direito à comunicação e PNDH3”].

Direito à comunicação
A necessidade de construção e positivação de um direito à comunicação foi identificada há mais de 40 anos pelo francês Jean D’Arcy, quando diretor de serviços audiovisuais e de rádio do Departamento de Informações Públicas das Nações Unidas, em 1969. Naquela época ele afirmava:

Virá o tempo em que a Declaração Universal dos Direitos Humanos terá de abarcar um direito mais amplo que o direito humano à informação, estabelecido pela primeira vez 21 anos atrás no Artigo 19. Trata-se do direito do homem de se comunicar.

A proposta de D’Arcy, na verdade, assumia e consagrava uma perspectiva “dialógica” da comunicação que já havia sido elaborada, do ponto de vista conceitual, por Paulo Freire no ensaio "Extensão ou comunicação"?

Freire recorre à raiz semântica da palavra comunicação e nela inclui a dimensão política da igualdade, a ausência de dominação. Para ele, comunicação implica um diálogo entre sujeitos mediados pelo objeto de conhecimento que por sua vez decorre da experiência e do trabalho cotidiano. Ao restringir a comunicação a uma relação entre sujeitos, necessariamente iguais, toda “relação de poder” fica excluída. O próprio conhecimento gerado pelo diálogo comunicativo só será verdadeiro e autêntico quando comprometido com a justiça e a transformação social. A comunicação passa a ser, portanto, por definição, dialógica, vale dizer, de “mão dupla”, contemplando, ao mesmo tempo, o direito de ser informado e o direito de acesso aos meios necessários à plena liberdade de expressão.

Como se vê, Freire teoriza a comunicação interativa antes da revolução digital, vale dizer, antes da internet e de suas redes sociais. No nosso tempo, quando as novas tecnologias [TICs] rompem com a unidirecionalidade da comunicação “de massa” tradicional, o conceito de comunicação relacional e transformadora oferece uma referencia normativa revitalizada e desafiadora.

História das idéias
Ao reafirmar a atualidade do pensamento de Paulo Freire, especificamente para o campo da comunicação, tomo a liberdade de registrar os trinta anos de "Comunicação e Cultura: as idéias de Paulo Freire", publicado pela Paz e Terra, em março de 1981 (2ª. edição 1984). O livro é uma adaptação de tese de doutorado defendida em agosto de 1979.

Na verdade, o argumento central sobre a importância de Freire para o estudo da comunicação já havia aparecido em artigo anterior que publiquei, com Clifford Christians, na revista inglesa Communication (vol. 4, n. 1, 1979) sob o título “Paulo Freire: the political dimension of dialogic communication”, traduzido e publicado em português pela revista Síntese (vol. VI, n. 16, maio/agosto de 1979).

A história das idéias nos diferentes campos do conhecimento – inclusive na Comunicação – muitas vezes contém omissões, deliberadas ou não, ao deixar de registrar contribuições feitas por autores que, por diferentes razões, não se situam no seu “mainstream” ou não se alinham aos grupos dominantes na academia. Daí, às vezes, a necessidade de auto-registros isolados como esse.

Hoje, a contribuição de Paulo Freire para o campo da comunicação é fonte de inspiração e referência. A situação, certamente, não era a mesma no final da década de 70 do século passado. Embora reconhecido internacionalmente e estudado em várias disciplinas – filosofia, sociologia, serviço social, religião, história – seu pensamento era quase que totalmente ignorado nos estudos de comunicação, inclusive na sua terra, o Brasil.

A incrível história do prof. Amílcar na Índia, de que só agora tomei conhecimento, serviu de mote para que fizesse, então, esse duplo registro: a permanente atualidade do pensamento do educador brasileiro e os trinta anos do Comunicação e Cultura: as idéias de Paulo Freire.


Venício A. de Lima é professor titular de Ciência Política e Comunicação da UnB (aposentado) e autor, dentre outros, de Liberdade de Expressão vs. Liberdade de Imprensa – Direito à Comunicação e Democracia, Publisher, 2010.

DAQUI

sábado, fevereiro 05, 2011

Comentário sobre o filme “Os narradores de Javé” – Diretora: Eliane Caffé

O filme “os Narradores de Javé” conta a História de um vilarejo afastado, surgido no meio de um vale e que está na iminência de sumir por causa do projeto de instalação de uma hidroelétrica. Pela descrição do lugar, conclui-se que se trata de um vilarejo localizado num sertão de pessoas humildes e que não podem barrar a ordem que vem de cima, imperativamente.

A única chance de brecar a vinda e instalação da hidroelétrica é provando que a cidade tem importância, tem uma história. O grande problema se dá quando a questão é proposta. Ninguém sabe escrever ou tem a capacidade de produzir um tratado histórico. A única figura letrada é um tal de Antônio Biá, um malandro, que para manter o seu emprego nos correios da cidade, como a Sherazade do conto árabe As mil e uma noite, passa a inventar histórias sem fim dos moradores. Assim, os correios continuou a funcionar e ele não perdeu o emprego. Antônio é recrutado pelos moradores para contar a “grande” história de Javé.

Para isso, ele precisa ouvir os mais velhos contarem as suas versões. Aqui temos a idéia dos velhos como os portadores da tradição, aqueles que têm autoridade para reavivar os fatos adormecidos na memória existencial. O interessante é que as histórias apresentam versões tendenciosas. Estas versões estão sempre a favor daquele que as conta. Ou seja, num dado sentido a diretora do filme, muito inteligentemente, quer passar a idéia que a História é sempre dominada por aquele que a conta. O portador do poder da construção da História sempre tenderá a contar a sua versão como a verdadeira para manter-se privilegiado.

Antônio Biá envolve-se em várias aventuras. Dia a dia as pessoas do lugar passam a depositar confiança nos seus trabalhos, nas suas pesquisas de campo. Ele passa a ser respeitado como uma espécie de “salvador” – ele e o seu livro. Os moradores o seguem aonde quer que ele vá. Aqui percebe-se que o filme trata também sobre o poder da palavra. Biá por ser o único a ter condições de reunir os documentos e recontar a história da cidade, passa a ter um tratamento diferenciado: os comerciantes passam a reverenciá-lo. Sendo que este é um comportamento típico do povo para com aqueles que gozam de algum poder, de alguma autoridade ou mesmo influência. Ou seja, de que aquele que possui a prerrogativa pode beneficiar de alguma forma. Este é um aspecto típico da antropologia do povo brasileiro. Aquele que detém o poder da palavra, tem a seu favor condições de reivindicar, negociar ou manipular os fatos ao seu favor. Este paradoxo permite descrever que a conservação do poder tem como sua principal arma o domínio do saber, da educação formal. As revoluções não são feitas por canhões que atiram, mas por cabeças que pensam e transformam o pensamento numa iniciativa histórica.

Todavia, o que Biá menos faz é escrever sobre a História da cidade. Ele se envolve numa série de aventuras intrigantemente boêmias, em porres vadios e irresponsáveis e não sistematiza as informações, a fim de reunir as informações e escrever a saga da cidade. Biá é, na verdade, a personificação do malandro brasileiro: prosaico em seu comportamento, mas elegante, envolvente, assediador por natureza; irresponsável por obviedade, admirado pelas suas estroinices; desenvolto em suas ações, sempre escorregadio, liso, completamente capaz de ter uma resposta para cada situação que as circunstâncias exigirem.

Afinal, o povo descobre que Biá não levou a bom cabo o projeto a ele incumbido. Ele não redigiu uma única página do “livro da vida da cidade”. Por causa disso, ele foi execrado pelo povo do lugar que depositou confiança extremada em sua capacidade de organizar as narrações orais num verdadeiro discurso cientifico. A cidade foi condenada a “sumir do mapa” e existir somente na memória do povo. Aqui a diretora mostra que o povo é o verdadeiro portador da História. Não existe História sem uma memória que a abrigue. O povo muda do lugar e segue o seu caminho incerto, mas sem saber que esta ação está a serviço da História. A História vai aonde o povo está. O homem é quem constrói a História como um elemento vivo, dinâmico, caminhante num fluxo contínuo. A História está grávida dos feitos dos homens. A cidade afunda no coração das massas de águas represadas, mas existe com sentido verdadeiramente vivo no coração dos homens. Os homens dão partos contínuos à História, seja num vilarejo afastado ou numa grande cidade.

O filme possui clareza e lógica na sua abordagem. É um filme consistente. Não possui um aspecto vago, sem conteúdos. Possui informações que podem ser observadas e ampliadas como as que foram abordadas acima. Por ser um filme cômico, torna-se agradável assisti-lo e ver o desfecho da trama. Cada cena envolve aquele que vem a vê-lo.

Não consegui detectar nenhum ponto fraco no filme. Tenho apenas pontos fortes a retratar: (1) o filme é fiel em retratar o povo. Maioria do elenco é constituído por gente comum. As fisionomias cansadas, esquecidas, são mostradas com muita propriedade, o que é um ponto positivo e não artificial. (2) O ambiente, a disposição das casas do vilarejo, os movéis rústicos, reproduzem com fidedignidade a casa dos sertanejos. (2) A fala é típica do sertão esquecido, analfabeto. Fala esta que “fala” a própria condição humilde do povo. Fala plástica, desprovida de aparatos eruditos. Apenas fala do povo comum, da gente comum, que descreve a cultura peculiar do povo, que tem a sua própria história.


Escrito em 2006