segunda-feira, novembro 28, 2011

Nietzsche e a religião


Rogério Miranda de Almeida

Todo aquele que se interrogar pela concepção de Friedrich Nietzsche com relação ao cristianismo e à religião em geral deve dar um passo a mais na sua interrogação e perguntar-se pela concepção que tem o filósofo dos valores que até então atravessaram a história da moral ocidental e a história de toda moral. Um passo a mais será ainda necessário na medida em que, para Nietzsche, o que realmente subjaz à criação e à destruição dos valores são as forças e as relações de forças que não cessam de se superar, de se recriar, de se repetir, de se renovar, de se excluir e de se incluir numa dinâmica recíproca que permeia, invade, domina e determina toda a realidade, todo o existir, todo o ser.

Com efeito, se existe um problema que acompanhou e obsedou o discípulo de Dioniso, esse foi o problema das forças e das relações de forças responsáveis pela criação e pela destruição, pela construção e pela demolição dos diferentes valores. Embora a vontade de potência só se encontre plena e explicitamente elaborada no terceiro e último período do filósofo – que, na minha leitura, começa com Aurora (1881) e se estende até os últimos escritos (1888) –, este conceito já se faz presente no primeiro período – dominado pelas análises em torno da tragédia e da cultura grega em geral – e também no segundo, com Humano, Demasiado Humano I e II (1878-1880), cuja característica principal é o deslocamento de acento para um determinado tipo de moral, a moral utilitária.

Dos três conceitos básicos de Nietzsche – a vontade de potência, o niilismo e o eterno retorno –, foram os dois primeiros que principalmente pontilharam e fundamentalmente marcaram o desenrolar e a dinâmica de seu pensamento e de sua escrita. O niilismo, que é essencialmente inerente à vontade de potência, é ambíguo na medida em que se desdobra como uma contínua destruição dos antigos valores e, simultaneamente, como uma construção de novas e imprevisíveis interpretações, valorações, significações. Recriações. Não há, pois, um demolir para depois construir; há antes uma aniquilação e uma reedificação que se fazem concomitantemente, simultaneamente, na repetição e na diferença, na satisfação e na insatisfação, no gozar e no querer-mais.

Convém ressaltar que as religiões, e o cristianismo em particular, não são sinônimos de niilismo, embora, na perspectiva de Nietzsche, não se possa conceber uma religião que não moralize e, consequentemente, não encerre uma tábua ou uma hierarquia de valores. A religião cristã e as religiões orientais não subsumem o niilismo, que é um movimento muito mais amplo e do qual, enquanto forças niilistas da decadência, estas se apresentam como expressões ou manifestações essenciais. Não se pode pensar na concepção nietzschiana do judeu-cristianismo e do budismo sem vinculá-la à sua visão da religião grega no tempo da tragédia e à crítica que, já na sua primeira fase, ele endereçara à filosofia de Schopenhauer.

Os deuses do Olimpo e o Deus judaico-cristão

Com efeito, já nos seus primeiros escritos, Nietzsche denuncia o fundo moral e as relações de forças a ele subjacentes que disputam entre si a potência sob os mais variados disfarces e os mais sublimes, nobres, elevados e espirituais atributos. Segundo Nietzsche, há basicamente dois tipos de forças: as forças que afirmam e enaltecem a vida e aquelas que, ao contrário, a denigrem, depreciam, caluniam e rebaixam. Eis a razão pela qual, já na Visão Dionisíaca do Mundo (1870) – escrito póstumo que data de dois anos antes da publicação do Nascimento da Tragédia –, o filósofo fazia ressaltar a superioridade da religião grega sobre as demais religiões, porquanto os deuses gregos que descrevem Homero, Hesíodo e Epicuro não são divindades que exprimem a indigência, a ascese ou o dever, mas, antes, criaturas que apontam para um excesso de força, de seiva e, consequentemente, para tudo aquilo que a vida tem de belo, de bom, de mau, de transbordante, de afirmativo e cruel. Os artistas que forjaram esses deuses eram, pois, senhores de uma fantasia genial que, projetando suas próprias imagens sobre o céu azul da Grécia, construíram um Olimpo onde essas formas podiam respirar o triunfo da potência juntamente com um sentimento de exuberância e justificação da existência e do mundo.

Curiosamente, num fragmento póstumo da mesma época – fim de 1869, primavera de 1870 –, Nietzsche analisa essa mesma problemática ao chamar a atenção para a figura do asceta cristão que, ao contrário do artista heleno, encarna o tipo do negador e destruidor da natureza. Para o autor de , as direções ascéticas são o que há de mais hostil e oposto à natureza e à fertilidade que esta encerra. No seu intuito e no seu trabalho subterrâneo de tudo negar e tudo emendar, elas já revelam o que realmente são: frutos enfezados e estiolados que a própria natureza se encarregou de rejeitar, porquanto ela não quer propagar uma raça ou uma espécie de depauperados e enfraquecidos. “O cristianismo só poderia triunfar num mundo degenerado”, diz Nietzsche.

A partir dessas considerações, súbito se adivinha: os deuses se apresentam para Nietzsche como reflexos da exuberância ou da indigência de um povo. De sorte que, quanto mais potente e aguerrida for uma nação, tanto mais exibirão os seus deuses as marcas da guerra, da conquista e do orgulho nacional. Inversamente, os deuses dos “bons”, dos falidos e dos fracos não terão senão sentimentos de vingança, de rancor e ressentimento contra tudo aquilo que eleva, transfigura e diz “sim” à vida. É o que Nietzsche já mostrava da maneira mais enfática no escrito de transição, Humano, Demasiado Humano I (1878). É o que ele também dirá num de seus últimos textos, O Anticristo, redigido no final de 1888 e publicado em 1895.

No parágrafo 114 de Humano, Demasiado Humano, que tem sintomaticamente por título “O Não-grego no Cristianismo”, o filósofo declara que os helenos não olhavam para os deuses homéricos como seres acima deles próprios, à maneira de senhores; não se viam tampouco abaixo dos deuses, como servos, ao modo dos judeus. “Viam como que apenas a imagem em espelho dos exemplares de sua própria casta que melhor vingaram; portanto, um ideal, não um contrário de sua própria essência.” Onde, porém, os deuses olímpicos se eclipsavam, a vida grega também se revelava mais sombria, mais inquieta e ameaçada de arruinar-se. “O cristianismo, por sua vez” – conclui o filósofo –, “esmagou e alquebrou completamente o homem, e o mergulhou como que em um profundo lamaçal.”

No Anticristo, Nietzsche verá essa mesma dialética em ação no seio do próprio judaísmo, na medida em que ele considera a época dos reis o período mais rico, mais próspero e potente da história de Israel. Consequentemente, Javé era a manifestação da consciência que este povo possuía da sua própria soberania, da sua força e alegria de viver. Portanto, através de Javé o povo esperava vitória e libertação; por meio dele depositavam confiança na natureza para que esta lhes concedesse aquilo de que mais necessitavam: chuva e uma colheita abundante. No entanto, essa época também devia chegar a um fim, ao qual Nietzsche atribui três causas principais: a anarquia interior, a ameaça assíria do exterior e a ascensão da classe sacerdotal ao poder. Gradualmente, portanto, o Deus de Israel, que até então refletia o orgulho e o amor-próprio de seu povo, viu-se reduzido a um Deus condicionado e vinculado a preceitos morais: toda felicidade era vista como uma retribuição pela obediência a Javé; todo infortúnio era, ao invés, recebido como uma punição pela desobediência a ele infligida.

Se esta é, pois, uma das perspectivas a partir das quais Nietzsche analisa a religião dos gregos e aquela que brotou do solo e do povo judeu, como então ele considera o budismo e a sua relação com a filosofia de Schopenhauer?

Schopenhauer, a tragédia e a negaçãobudista da vontade

Na época em que Nietzsche redigia O Nascimento da Tragédia – publicado em janeiro de 1872 –, ele se achava sob a quase total influência de Schopenhauer. Assim, para o discípulo de Dioniso, a sabedoria trágica reproduzia, por meio da ilusão apolínea e da música dionisíaca, a mais íntima essência do mundo, da natureza, dos homens, da vontade ou, em suma, do Uno originário. No que diz respeito especificamente à música dionisíaca, esta se apresentava como um espelho sobre o qual se refletia a própria vontade universal, que nos chega como a verdade eterna ou, mais exatamente, como a verdade que jorra do fundo ou do núcleo do Uno originário.

Sem embargo, na própria obra O Nascimento da Tragédia – e mesmo em alguns textos que a preludiam –, já se vê desenhar uma tomada de posição crítica vis-à-vis de Schopenhauer. E esta posição só tenderia a acentuar-se à medida que Nietzsche fosse também se distanciando do autor de O Mundo Como Vontade e Representação. Destarte, na seção 7 daquela obra, Nietzsche critica Schopenhauer justamente naquilo que o filósofo tem de comum com o budismo: a resignação e a negação da vontade diante do sofrimento que acarreta todo desejo. Ora, na perspectiva do discípulo de Dioniso, a consolação metafísica que suscita a tragédia, e que se encarna no coro satírico, é toda ela entretecida de gozo, o gozo na sua potência indestrutível que afirma a vida, apesar do caráter mutável do mundo fenomênico. Por conseguinte, o heleno profundo que o coro vem consolar – e que lança seu olhar sobre as forças demolidoras da natureza – corre ele também o risco de “aspirar a uma negação budística da vontade”. No entanto, a arte vem em seu socorro para redimi-lo, mas, “pela arte, é a própria vida que o redime para si mesma”.

Num fragmento póstumo do verão-outono de 1884, que faz parte de seu terceiro e último período, Nietzsche se mostrará ainda mais incisivo com relação às forças niilistas da decadência, que, por natureza, são negadoras da vida e de tudo aquilo que ela tem de fértil, de belo, de abundante, de potente, de tenso, de deleitoso e sensual. Com efeito, nada repugna mais a Nietzsche do que uma religião cuja moral recomenda a domesticação dos instintos e a supressão do prazer. Esta é “uma medida de emergência tomada por naturezas que não conhecem o critério da medida e que não têm outra escolha senão a de se tornarem libertinos e porcos, ou então ascetas”. Essas naturezas – continua o filósofo – encontraram no cristianismo e no budismo um modo de pensar que é, no mais alto grau, adaptado a toda a escória dos decadentes, dos doentes e malogrados da existência. Pode-se, pois, perdoar-lhes o fato de denegrirem um mundo onde foram malsucedidos. “Mas faz parte da nossa sabedoria considerar essas doutrinas e religiões como grandes manicômios e casas de reclusão.”

Em Para Além de Bem e Mal (1886), parágrafo 56, Nietzsche defenderá uma reflexão aprofundada sobre o pessimismo livre “da estreiteza e da simplicidade semicristã e semialemã” que, segundo ele, se exprimiram por último na filosofia de Schopenhauer. Assim, prossegue o filósofo, todo aquele que tiver lançado um olhar nos abismos do pensamento mais radicalmente negador – um olhar “para além de bem e mal e não mais, como Buda e Schopenhauer, na órbita da moral e de sua ilusão” – chegará talvez a abraçar um ideal totalmente oposto: o ideal do homem mais generoso, mais exuberante e mais afirmativo que possa existir.

Ora, conquanto o problema central da filosofia de Nietzsche esteja nas forças e nas relações de forças que não cessam de se superar e de se recriar, retorna inevitavelmente a questão: não seriam justificados todos os seus ataques contra a religião, ou as religiões, justamente por elas se apresentarem, na sua perspectiva, como as manifestações essenciais das forças niilistas da decadência?

sábado, novembro 19, 2011

Quantos são os evangélicos no Brasil?

Artigo extraído do sítio Cristianismo Hoje. Achei interessante e curioso o artigo, que apesar de buscar ser científico e imparcial, ficou (no fundo) com um sabor de triunfo típico de "crente". Algo dessa natureza: "Vamos ganhar essa nação para Jesus!" - um bordão triunfalista cego e sem materialização consequente.

Por Marcos Stefano


A velha máxima de que os números não mentem pode estar com os dias contados. Pelo menos, no que diz respeito a estatísticas sobre religião no Brasil. Contrariando as últimas pesquisas sobre a fé no país, que apontam os evangélicos como sendo 20,2% da população – ou menos de 40 milhões de pessoas –, diversas denominações apostam em um panorama mais otimista, no qual os crentes já seriam atualmente 51,1 milhões. Dizem mais: que, caso se mantenham as atuais taxas de crescimento do segmento cristão evangélico, os crentes em Jesus serão, já em 2020, mais da metade da população brasileira, o que equivaleria a 105 milhões de almas. Números evangelásticos (termo cunhado para se referir aos constantes exageros dos crentes) à parte,o certo é que organizações que se dedicam a estatísticas religiosas trabalham com números que apontam uma maioria religiosa protestante no Brasil em apenas dez anos.

O cálculo é feito por organizações como o Departamento de Pesquisas da Sepal (Servindo Pastores e Líderes) e o Ministério Apoio com Informação (MAI), levando em conta a taxa de crescimento que os evangélicos tiveram nas últimas décadas, sobretudo a de 1990. As projeções têm como ponto de partida os Censos periódicos do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Pelo levantamento de 1991, por exemplo, sabe-se que os evangélicos eram 13 milhões naquele tempo, ou 8,9% da população brasileira. Nove anos depois, em 2000, já haviam dobrado de tamanho, passando a ser 26, 1 milhões, 15,45%. “Se o crescimento anual se mantiver nesses patamares, de cerca de 7,4% ao ano, poderemos ter, sim, mais de 50% da população brasileira composta por evangélicos”, aponta o pastor Luis André Bruneto, ligado ao Departamento de Pesquisas da Sepal. “Tudo bem que a tendência mais para frente é que esse aumento venha a se estabilizar. Mas, levando-se em conta a taxa de crescimento anual dos evangélicos, que é mais de três vezes o da população do país em geral, podemos dizer que hoje um em cada quatro brasileiros é protestante”, confirma a matemática Eunice Zillner, do MAI.

Em relação às disparidades de números com um dos últimos levantamentos feitos, o Mapa das Religiões da Fundação Getúlio Vargas (FGV), baseado nos dados da Pesquisa de Orçamento Familiar do IBGE, Bruneto aponta que essa classificação pode ser imprecisa. O estudo destaca uma estabilidade do crescimento pentecostal, que fica em 12% do total da população, um pequeno crescimento das denominações históricas, que passam de 5,39% para 7,47%, e um forte aumento daqueles que se dizem evangélicos, mas não estão em nenhuma denominação específica. “Essas nuances já eram esperadas quando comparadas as mesmas curvas estatísticas entre os censos de 1980 e 2000. Por outro lado, o Mapa das Religiões coloca as quase 200 classificações batistas como ‘históricas’, quando a maioria desse grupo deveria ser classificada como ‘pentecostal’. Em contrapartida, a Universal do Reino de Deus, que sofre grande concorrência, é tida também como ‘pentecostal’ – mesmo grupo no qual foram incluídas as Testemunhas de Jeová no estudo”, critica.

Apesar deste e outros notáveis equívocos, o Mapa das Religiões também confirma o que diversos estudiosos do fenômeno religioso brasileiro já vinham falando: o crescimento econômico e as melhores condições sociais e educacionais no Brasil favoreceriam uma migração de fiéis para igrejas históricas, conhecidas pelo ensino bíblico mais profundo e pela organização eclesiástica que favorece maior participação dos membros, inclusive em termos administrativos. Já o aumento explosivo dos evangélicos, hora ou outra, acabaria levando a um processo de secularização, com o surgimento de crentes apenas “nominais”. Ou seja, é gente que se identifica como protestante por ter nascido ou feito parte de uma denominação, mas agora não frequenta mais a igreja.

PADRÕES HISTÓRICOS

Tais nuances fazem com que muita gente fique com a pulga atrás da orelha com previsões muito otimistas neste aspecto. Mesmo trabalhando com os números, o próprio Bruneto é um que recomenda cautela. “Não se tratam de dados reais. São apenas projeções e perigosas”, observa. Como se está lidando com pessoas, e não com uma ciência exata, é bom deixar claro que a dinâmica populacional é muito intensa e que disparidades e mudanças dificultam a concretização de muitas previsões. Um bom exemplo é o surgimento do secularismo e a queda do crescimento de qualquer religião, comuns após a terceira ou quarta gerações dos convertidos. Exemplo disso acontece na Região Sul, justamente onde aportaram os luteranos, primeiros protestantes a chegarem ao Brasil como grupo organizado, a partir de 1824, com a imigração germânica. No Rio Grande do Sul, é possível encontrar a cidade mais evangélica do Brasil, Quinze de Novembro, com 80,4% de crentes, a apenas 20 quilômetros de uma das menos evangélicas, Alto Alegre, com 0,28% de protestantes. Outro caso é Timbó, em Santa Catarina. Lá, a Igreja Luterana tem mais de 15 mil membros, mas apenas 40 pessoas participam de seus cultos a cada domingo.

“Não existem estudos sérios e estatísticas confiáveis que nos permitam acreditar que o Brasil terá maioria evangélica em uma década”, sentencia o sociólogo Paul Freston, professor catedrático de religião e política na Wilfrid Laurier University, no Canadá, e colaborador na pós-graduação em sociologia na Universidade Federal de São Carlos (SP). Ele defende que, para fazer uma conta mais próxima da realidade, é necessário considerar os padrões históricos de crescimento dos evangélicos a partir dos anos 1950 e não somente na década de 90, quando houve um “pulo”. “Tempos atrás, também falaram que alguns países da América Central teriam a maior de parte de suas populações composta por evangélicos ainda antes da virada do milênio. Claro, isso não se confirmou. Se uma religião avança, outras respondem para frear a perda de fieis”, argumenta o estudioso.

Freston, que é evangélico, diz que já foi considerado um homem sem fé por causa de suas posições mais conservadoras, mas prefere optar por estimativas que considera mais realistas. “Se o crescimento não continuar tão acelerado, os evangélicos terão fracassado? De forma alguma”, ressalva. “A se confirmar o maior crescimento dos tradicionais, devemos levar em conta que, durante 25 anos, pentecostais e neopentecostais estiveram na linha de frente do avanço evangélico no Brasil. Mas essa perda de vigor também precisa ser melhor analisada. O processo pode mostrar uma perda de capacidade de diálogo dos evangélicos com a sociedade. E isso pode trazer consequências ruins a longo prazo”, alerta. Até a divulgação dos números definitivos do Censo 2010, que se promete para o ano que vem – e mesmo depois disso, já que eles parecem tão inconclusivos –, muita água vai correr sob essa ponte.

quinta-feira, novembro 10, 2011

Memórias - os itinerários do tempo (II)

Nasci na Zona da Mata pernambucana. Região que recebe esta designação, porque abrigava grandes porções da Mata Atlântica quando da chegada dos portugueses. Lugar de exuberância verde. De pluralidade de espécies. De uma vegetação pródiga. De um terreno muito típico. De clima tropical. Planaltos e planícies enormes. Ainda hoje é possível encontrar pedaços da vegetação preservada em locais da Zona da Mata nordestina. Por conta das exigências econômicas, os portugueses foram destruindo a vegetação original: primeiro com o pau-brasil, que teve por conseqüência um “esvaziamento” lento da mata, seguido pela degradação; em seguida, com o cultivo da cana de açúcar, na qual grandes porções foram desmatadas. Ainda hoje a região é conhecida como zona canavieira.

Ainda é possível vê o resultado desse tempo de progresso e privilégio econômico. A região era preenchida por grandes engenhos, que como feudos medievais abrigavam toda sorte de gente. Os donos de engenho podiam ser considerados como os senhores feudais. Uma classe constituída por “privilegiados”, exploradores da ingenuidade e da miséria do povo. Ela detinha soberanamente toda sorte de regalias econômicas, políticas e podia interferir na vida de quem quisesse como um César da Antiga Roma. Do outro lado havia os assalariados que “viviam de depender” do senhor de engenho, possuidor da alcunha de “coronel” ou “doutor”.

Os engenhos eram organismos que possuíam vida própria. O vigor de um engenho era medido pela visão que se tinha da sua chaminé. Para um estado normal na saúde do engenho, era preciso que ele cuspisse fumaça. Significava que ali havia vida produtiva nos pulmões do engenho. Pessoas ali estavam trabalhando, produzindo, moendo a cana. O sangue que corria nas veias do engenho era doce. Aquilo entusiasmava os moradores do engenho, pois isso significava trabalho, ocupação, possibilidade para os “matutos” daquela comunidade terem o que fazer, buscar subsistência, ter condições de oferecer o necessário para a família – geralmente volumosa.

Quando a safra da cana passava, iniciava-se o período de cultivo, de adubagem, processo de “temperar” o solo a fim de fazer com que, a cana que crescia, encontrasse os nutrientes necessários. Dessa forma, o ciclo manter-se-ia e a saúde do engenho permaneceria sem ameaças graves.

Com o tempo, os engenhos foram entrando em decadência. Começaram a passar por um processo de “constipação estrutural”. Processo grave, de desembocadura terrificadora. Geralmente, os agentes patrocinadores dessa debilidade eram a maquinaria obsoleta, os modos rústicos e primevos dos engenhos que não podiam fazer frente às usinas que surgiam como locomotivas velozes, imparciais, prontas para atropelar quem estivesse à frente. Os achaques não isentavam ninguém. Quando o engenho adoecia, adoeciam também os moradores. A miséria gravitava na sorte de cada um dos moradores do engenho como um morcego negro, anunciador de augúrios inamistosos. Para onde ir com a família? Aonde alugar o serviço da enxada ou dos lombos duros como uma cangalha de jumento? Os engenhos estavam ameaçados por um vírus para qual não havia antídoto, a modernidade tecnologizada. A maquinaria substituiria os braços bambos, excessivamente magros do trabalhador acostumado às tarefas insensíveis.

Os engenhos adoeciam. As suas luzes eram extintas como estrelas que se obliteram num processo de gastamento, de perda de energia fluídica. As chaminés não mais faziam espirrar fumaça para o céu. Dia a dia elas se apagavam denunciando um mal estar que parecia crônico. Os moradores não tinham mais o que fazer. Como José Lins do Rego escreveu no seu romance Bangüê quando da ameaça de extinção do engenho Santa Rosa: “O engenho Comissário, em ruínas, com os restos do maquinismo exposto ao tempo. O melão-de-são-caetano gosta de enfeitar sempre estas desgraças. Onde houver uma casa caindo lá se encontra ele com viço, com aquele gesto de hiena pelos cadáveres” . A ruína dos engenhos foi sendo sacramentada pela fúria faminta das usinas. Muito dos moradores dos engenhos se tornaram retirantes, nômades da miséria, que pervagavam num desterro medonho, como alma penada. Saíam pelo mundo a oferecer os seus serviços, procurando uma Canaã na qual pudessem plantar, criar um novilho, uma cabra que desse leite. Em suma, buscar uma vida que conferisse possibilidades de alimentação regulares. Sonho pequeno, mas alimentado por uma expectativa volumosa, cheia de arrebiques supersticiosos. Supertição que sempre fez parte do imaginário do povo nordestino. A realidade miserável e lúgubre é entendida por uma metafísica determinista, de um Deus caprichoso, cheio de desejos e vontades mesquinhas. Deus este que parece caçoar com a miséria insalubre que o povo nordestino vive mergulhado: prende as chuvas, não se agrada das sazões providentes; concede privilégios a poucos e enfia o resto numa existência de penúrias e sortilégios. Tragédia. Caos social.

Os engenhos foram se tornando ruínas. Com a saúde desfalecida, restava a decomposição estrutural; com o tempo, os esqueletos do que fora o engenho ficavam à mostra. Cavername medonho. Carcaça morta. O bangüê arruinado. Tachas com samboques, morada de lagartixas. Bagaceira com entulhos mofados – ninho de jararacas e corais. Moenda enferrujada, comida pela ação dos agentes naturais. Esqueleto ruído, arreganhado, os engenhos morriam numa espécie de hecatombe processual.

Estes espaços passaram a pertencer às usinas. Aqueles engenhos que não foram vendidos ou apoderados pelas usinas, abrigaram os magotes de seres alheados do mundo. Gente matriculada na escola da sobrevivência, doutrinada nos métodos pedagógicos da subserviência, treinada no abecedário da subsistência. Gente analfabeta para as letras, mas capaz de soletrar a vida como ninguém. Foi de uma localidade com estas feições que vim para a vida.

Escrito em 2006.

quarta-feira, novembro 02, 2011

Dia dos Mortos, 7 bilhões de humanos, Bach e o BWV 232

Aproveitando o ensejo da data, estou ouvindo algo profundamente "santificante" - o BWV 232 do "grande pai". Esta semana tive a oportunidade de conversar com um professor, colega de trabalho, sobre a informação veiculada pela mídia acerca dos 7 bilhões de humanos que agora habitam a terra. Falamos sobre Malthus e ele me explicou sobre as deficiências da teoria do inglês. Mas não deixamos comentar sobre o estágio avançado de agonia da civilização ocidental, gestora de um modo de vida que nos leva inevitavelmente para o buraco. A sociedade capitalista com toda a sua parafernália tecnológica possui uma finalidade - nos conduzir ao prazer. Mas à medida em que somos conduzidos ao prazer, recai sobre nós a maldição do niilismo.

A terra já não é um lugar que promove espantos contemplativos. O que regala os olhos do homem do nosso tempo são as superfícies vítreas. Nelas o indivíduo do nosso tempo encontra a redenção narcísica de que tanto a sua alma vazia precisa. O capitalismo e o estilo de vida acabou criando aquilo que os especialistas vão chamar de "não-lugar". Ou seja, não há um lugar que promove encantos, novidade, fascinação, pois o que há são as mesmas lojas, as mesmas lanchonetes, as mesmas marcas, as mesmas fragrâncias, como se as nossas percepções tivessem sido uniformizadas.

O meu colega contou uma experiência curiosa. Disse ele que uma amiga fora fazer um cruzeiro marítimo, mas ficou decepcionada. Ela queria novidades. Todavia, no navio em que estava, as lojas, os pubs, os cafés, eram os mesmos que ela estava acostumada a frequentar em terra firme. Ou seja, ela teve mais do mesmo, pois não existe um lugar de novidade. Existe um "não lugar" que está em toda parte. É por isso que o homem do nosso tempo viaja tanto. Ele está atrás de novidades. Ele quer encontrar um regalo para a sua fome insaciável. Perdemos o encantamento pela "nossa casa", pela mãe sábia, a natureza.

Mas o que tudo isso tem a ver com a missa de Bach? Muita coisa. É que o meu colega disse a certa a altura de nossa conversa que a única forma de brecar o calapso de nossa civilização está na formação de valores sadios, num processo a qual poderíamos dizer que se dá de dentro para fora. E para ele, um dos resposáveis para que isso ocorra é a religião. Não deixei de pensar na afirmação dele. Possuo uma visão crítica em relação a religião. Afinal, a religião é tão antiga quanto a própria humanidade. Se a religião fosse capaz de redimir, ela já teria redimido, transformado o nosso mundo num local de paz. Pois o que não falta é religião.

Gostaria de mudar a afirmação do meu colega e dizer que o que pode salvar o homem é a metafísica, a espiritualidade que se encontra na beleza. E para se chegar à capacidade de apreciação e percepção dessa beleza é preciso educar os sentidos. É preciso direcionar os olhos para aquilo que nos torna maiores do que somos, deixando de lado os anseios vis da materialidade, que promete felicidade, mas não é capaz de gerar beleza, de fazer brotar um jardim no coração. Lembro aqui as palavras de Cristo: "O que adianta o homem ganhar o mundo inteiro e perder a sua alma?" Ou seja, a capacidade de ser humano, de sensibizar-se com a natureza, com a simplicidade dos elementos silenciosos que foram gerados pelo silêncio do universo.

Olhando do ponto de vista da objetividade, penso não haver chances para o homem. Em pouco mais de cem anos, as condições para a vida na terra tornar-se-ão insustentáveis. Para reverter isso é preciso de espiritualidade, da metafísica, que habita a obra de arte, os sonhos, a inocência, os silêncios gravitacionais das palavras, do rio que corre e não se cansa, nas amizades, na música, em Bach... Afinal, a natureza é um instrumento tocado pelo universo onde estão adormecidas as mais belas canções. Enquanto escuto essa extraordinária missa de Bach, vou pensando nisso tudo - e fico estarrecido e beatificado no dia dos mortos.

Abaixo um pequeno trecho do BWV 232 de Bach - regência de Herbert Blomstedt.