sexta-feira, novembro 30, 2012

Jack London - a boa narrativa

"... a vida atinge o seu auge quando concretiza plenamente aquilo para cuja realização foi equipada"
Jack London, in Caninos Brancos, p. 71

Terminei há alguns dias atrás a leitura de Caninos Brancos, um dos livros mais reputados dos escritor John Griffth Chaney, mais conhecido como Jack London. O americano é um dos maiores narradores da literatura inglesa de todos os tempos. Não me recordo quando, mas há bastante tempo eu havia lido um dos seus primeiros sucessos: "O chamado da floresta". Quando li o referido livro fiquei com uma sensação gostosa. Jack London tem a habilidade de nos arrebatar com seus textos.

Considerei por muito tempo a facilidade com a qual London sabia criar uma boa história. Com Caninos Brancos não é diferente. Deve ser por causa dessa característica, que o escritor alcançou tão grande sucesso. Seu texto é simples; sua capacidade para descrever cenários e sensações é singular. Enquanto lia a história de Caninos Brancos, nascido na floresta, região do Rio Mackenzie, no Klondike, lugar onde London esteve como aventureiro, imaginei aquelas porções desertas, silenciosas, grávidas de beleza. Quando se fala de London, a sua vida já seria um motivo literário. Foi jornalista, militante político, aventureiro, vagabundo, marujo, garimpeiro, romancista, mulherengo, alcóolatra, autodidata, socialista. Sua curta vida (quarenta anos) foi febricitante. É como se ele tivesse acumulado nesse curto espaço tempo o máximo de experiências para ter combustível para os seus romances.

Sobre o fato de ter sido socialista é interessante afirmar que há uma blague do Graciliano Ramos sobre o escritor, citado em Retrato Fragmentado, escrito pelo Ricardo Ramos. Conta Ricardo que perguntou ao Velho Graça: "E Jack London?" O Graça respondeu: "Bom, ninguém discute. E também ruim, discursivo. Leu Marx sem digerir". Graça não deixa de está certo quando diz que London é discursivo, sobre o fato de ser ruim eu discordo. De fato, o escritor de O lobo do mar é um bom contador de histórias. Apenas isso. Todavia, pode se apontar algumas lições sobre suas histórias. Mas, no fundo, acredito que seja um dos tantos ditos pilheriosos de Graciliano Ramos. Ele gostava de falar essas coisas. Como em certo episódio contado por Dênis de Moraes. Um jovem curioso e diletante o inquiriu sobre Machado de Assis. Graça respondeu: "Um burro!". O jovem silenciou e seu interesse se esfumaçou.

Deixemos a divagação. Por exemplo, em O chamado da floresta, London mostra como uma criatura civilizada (o cão Buck), ao entrar em contato com a natureza, transforma-se em algo selvagem. A natureza chama o cão. Deposita nele os instintos naturais. Molda-lhe as feições. Em Caninos Brancos temos o contrário. O lobo mestiçado com cão, migra da natureza para a civilização. A natureza lhe dar a força indômita. A energia predadora. A inteligência indomável. A ferocidade inquebrável. Mas a sociedade dociliza os seus instintos. Treina-o para a submissão. Faz com que ele crie um vínculo amoroso com o dono. 

Enquanto lia o livro fiquei analisando a capacidade de London em adentrar em pormenores da psicologia lupina. Como um sujeito consegue criar tão bela descrição da mente de um animal? Não pude deixar de lembrar de Baleia, o maior exemplo da literatura brasileira. É importante frisar que as descrições da psicologia canina em Baleia são muito mais bonitas e existencialmente perturbadoras do que em Caninos Brancos. Todavia,  o modo como o americano narra, apreende-nos. Graciliano nos tortura com seu realismo. Com a dissecação de um cadáver a qual ele, narrador, não mostra comiserção. Aprofunda o corte de seu bísturi e mostra os nervos. É isso que nos emociona. Que provoca impressão profunda. London, por sua vez, imprime um dinamicidade na narrativa que a torna bela, enxuta, escorreita, ágil. 

Ele amadureceu como contador de história. O fato é que London reflete, talvez influenciado por Nietzsche, de quem era grande leitor, talvez influenciado por Spencer, outra paixão, sobre uma lei que rege os sujeitos que estão sob os poderes da natureza. Essa guerra natural define o destino dos homens. Os mais fortes prevalecem. De certa forma, essa é a filosofia de Caninos Brancos. A natureza nos treina para a guerra e somente os mais adaptados a essas condições conseguem sobreviver. Como na frase que encontramos no livro: "...no poder é que repousa a divindade" (p.137)

Tenho aqui em minha biblioteca outro livro dele (O lobo do mar), que ainda não li. Acendeu uma vontade enorme de fazê-lo. Se não me falha a memória tenho, também, A paixão do socialismo - de vagões e vagabundos & e outras histórias, de sua autoria. Hoje dei uma olhada em um outro título seu que me cahmou a atenção. Chama-se Antes de Adão e me pareceu um texto mais sério. Cheio de motivos filósoficos. Uma defesa do materialismo e do evolucionismo.

Minhas férias estão chegando. Aproveitarei para ler alguns texto ruins e discursivos de London, como disse o Velho Graça.

terça-feira, novembro 20, 2012

Graciliano Ramos como leitor - seus livros favoritos

Todo grande leitor já fez uma lista com os seus livros preferidos uma vez ou outra. A lista vai se modificando com o decorrer do tempo. À medida que amadurece, que sofistica a qualidade das leituras, uma nova lapidada acontece. Ainda não me sinto suficientemente maduro para fazer uma lista com os dez ou os vinte livros mais importantes que eu tenha lido. Talvez se eu o fizesse, o resultado seria pífio. Colocar-me-ia numa posição delicada. Arranjaria complicações. Ainda me sinto uma pataca de leitor. Excessivamente magro e mofino em minhas intenções. Talvez, aos quarenta anos eu tenha condições de fazê-lo.

Agora, imagine aquele sujeito que você admira fazendo uma lista de livros. Os grandes escritores já fizeram a sua lista. Sempre tive curiosidade, por exemplo, para saber o que Graciliano Ramos lia. Graça cuja literatura é uma obra de arte esculpida a facão, cujas letras eram costuradas à máquina, cujos nós eram dados com habilidade de escoteiro, também tinha das suas. Até onde sabia, Graça era um leitor contumaz de Eça de Queirós. Segundo a biografia que ando lendo, escrita por Dênis Moraes, Graça leu Os Maias aproximadamente de cinquenta vezes. Também sabia que ele havia visitado Zola, Machado de Assis, Aluísio Azevedo, Balzac e os mestres russos - Tolstói, Dostoievsky, Tchekov, Gógol...

Todavia, hoje, encontrei no livro de Dênis duas listas de preferências do Mestre Graça - uma nacional e outra inetrnacional. Não deixei de me impressionar. A lista foi realizada atendendo à solicitação da Revista Acadêmica ainda na década de 40. Alguns dos títulos me causaram curiosidade como Inocência, de Taunay, posicionar-se na primeira colocação. Não sei se se trata de uma blague graciliânica típica. Mas sei que Graciliano leu como ninguém a literatura nacional. 


Segue a lista com autores nacionais e internacionais:

Autores nacionais:
1 - Inocência, de Taunay;
2 - Casa de Pensão, de Aluísio Azevedo;
3 - Dom Casmurro, de Machado de Assis;
4 - Jubiabá - de Jorge Amado;
5 - Os corumbas, de Amando Fontes;
6 - Doidinho, José Lins do Rego;
7 - As três marias, de Rachel de Queiroz;
8 - Amanhecer, de Lúcia Miguel Pereira;
9 - O amanuense Belmiro, de Cyro dos Anjos;
10 - Os caminhos da vida, de Octávio de Faria.

Autores internacionais:
1 - Dom Quixote, de Miguel de Cervantes;
2 - Viagens de Gulliver, de Jonathan Swift;
3 - Gargantua, de François Rabelais;
4 - As ilusões perdidas, de Honoré de Balzac;
5 - Ana Karenina, de Leon Tolstoi;
6 - Cândido, de Voltaire;
7 - Crime e castigo, de Dostoiévsky;
8 - Pickwick, de Charles Dickens;
9 - Os sete enforcados, de Leonid Andreiev;
10 - Os maias, de Eça de Queirós.

Importante: os livros não aparecem numerados conforme organizei. Apenas peguei a ordem com que aparece no livro de Dênis de Moraes.

segunda-feira, novembro 19, 2012

Livros e uma sensação de pequenez II

Um viciado em algo sempre faz promessas de que não vai voltar a cometer o vício que o oprime. Ao perceber que errou, que voltou ao vício, escadaliza-se. Perscruta sua figura mofina e, no fundo, sente-se impotente. É assim que me vejo. O vício pelos livros me coloca numa ciranda. Em um carrossel que sempre me leva ao mesmo lugar: novas compras. 

Há alguns dias atrás, enquanto observava alguns títulos na Livraria Saraiva (virtual), acabei comprando nove livros. Algumas dessas indicações são do Charlles Campos. O sujeito anda a me mostrar cenários literários amplos e aquilo me confunde. Deixa-me aturdido. Fico a falar para mim mesmo: "Cacete! Não é possível...". E acabo fazendo listas escrupulosas. Somas imensas. Disciplinas metódicas. Afundo-me numa azáfama enorme. Embruteço.

As exigências do dia. O trabalho. As provas que tenho que preparar e corrigir. As aulas que tenho que organizar me afasta de minhas intenções. O feriado, o recesso ou o final de semana se constituem em oásis necessários e as horas acabam sendo disputadas. A mulher deseja contatos sociais. Em uma dessas exigências, quer que eu vá à igreja. Que eu me enverede pela crença desarrazoada e cacete. E, eu, misantropo, silencio num gesto atrabiliário.

Hoje, ao chegar à minha casa, encontrei uma caixa com os nove títulos. Tentei esconder. Discretiei de minha esposa. Ela anda a direcionar invectivas contra os meus hábitos de bibliófilo. Repreende-me pela desorganização. Livros próximo ao sofá; em cima de bancos; sobre a mesa. O apartamento de um quarto mostra-se exíguo como o meu peito diante dessa infinidade impossível. O meu sonho fáustico gera uma sina terrível. Amofino-me numa estupidez acabrunhante.

A caixa ainda está lacrada. Dentro dela, os títulos: Viagem ao fim da noite, Celine; O primeiro homem, Camus; Herzog, Saul Bellow; O rinoceronte, Ionesco; A história da morte no Ocidente, Ariès; dois tomos de A cidade de Deus, Santo Agostinho, livros que tenciono ler há muito tempo; A Câmara Clara, Barthes; e Com a morte na alma, Sartre.

Recordo-me ainda que comprei, ontem, três outros títulos. Todos do esloveno Slavoj Zizek: Às portas da revolução: escritos de Lênin de 1917; A Visão em Paralaxe; e Lacrimae Rerum.

Cabe lembrar, ainda, de uma biografia sobre James Joyce e o livro A montanha da alma, de Gao Xingjian. E uma sensação estranha me acomete. Deve ser aquilo que Fausto sentiu no final da vida ou aquilo que Camus escreve em o Mito de Sísifo. Subi com a pedra até o alto da montanha, mas a pedra voltou a correr morro abaixo. Desçamos e tentemos subir mais uma vez. Lutemos enquanto caminhamos montanha acima.

domingo, novembro 18, 2012

O Clube da Luta, de David Fincher, e a violência simbólica do nosso tempo

Eco e Narciso, de John Waterhouse, c. 1903.
Ontem à noite eu encarei o filme O Clube da Luta, de David Fincher. Vale ressaltar que Brad Pitt e Edward Norton estão impecáveis no filme. Certamente posso inscrevê-lo no filão pessoal dos grandes filmes. Observando a obra apenas pela superfície, o que fica é a impressão de que se trata de um show de pancadaria gratuita. De violência. De um tipo de propaganda desnecessária e cheia de sangue. Todavia, o filme nos apresenta importantes questões filósoficas. 

Ainda estou impressionado - e ainda mais com aquele música "assombrante" do Pixies (Where in my mind). Já ouvi bastante essa música em outros tempos. Mas, ontem, ao ouvi-la após o filme, alguns efeitos se acumularam em mim. Certamente, onde está a mente do homem moderno? Fincher sabia do que estava fazendo em O Clube da Luta e ao escolher essa música. Não quero fazer uma sinopse da película. Isso pode ser encontrado em qualquer desses sites sobre cinema. Queria apenas pensar como o filme estabelece uma relação com o momento niilista em que vivemos. Nesse tempo de liquedez, no qual nada possui forma e os valores são intangíveis.

O filme aborda diversos temas - consumismo, servidão voluntária, totalitarismo, crítica ao capitalismo etc. Queria apenas enfatizar os efeitos espirituais do consumo sobre a existência no sistema em que vivemos. 

No filme, em dado momento um grupo de sujeitos fiéis começam a seguir Tyler (Brad Pitt), o prótotipo do tirano, do líder capaz de subjulgar as massas. Em dado sentido, Tyler personifica o capitalismo. Esse grupo se torna leal àquele que inventou o clube da luta. O grupo em sua obediência, despe-se de intenções individuais. Obedecem de maneira cega. Passa a existir, assim, uma forte despessonalização dos sujeitos. Pode se estabelecer uma paralelo desse grupo com o homem das massas do nosso tempo, pois a crise do homem do nosso tempo é de não saber quem ele é. Ele se agarra a fiapos de crenças e gasta energia com isso sem, de fato, empreender uma busca pro aquilo que é essencial. A ausência de valores cria uma sociedade fragmentada e que vive solta. 

A sociedade da tecnologia e dos bens de consumo é uma sociedade que fez ruir o conceito de individualidade. Ao passo em que se cria uma forte propensão para que sejamos individualistas, esse individualismo é quebrado pela ideia de homogeneização dos valores. Assim, existe uma tirania de gostos e prefências. E de certa forma, somos incentivados a crermos que possuímos alguma importância nas engrenagens do sistema. Todavia, no fundo somos todos ovelhas de um mesmo rebanho. O conceito de cultura local foi dilacerado. Existe apenas uma grande "cultura global".

Uma afirmação feita por Tyler é sintomática: "Somos os filhos do meio da história, criados pela televisão para acreditar que algum dia seremos milionários, astros de filme ou da música, mas não seremos". Essa frase possui ecos com A dialética do esclarecimento", de Adorno e Horkheimer quando estes afirmam que "a cultura comteporânea confere a tudo um ar de semelhança". A tentativa de criar uma unidade numa sociedade mercada pela desigualdade faz crescer uma expectativa nervosa. Os dominadores ditam os valores sobre os dominados. E o sonho dos dominados é serem semelhantes aos dominadores. Nesse sentido, vivemos a maior das tiranias.

A tirania da qual somos vítimas é velada, mas possui poderes onipotentes. Enquanto no filme notamos uma violência explícita - e talvez o autor quisesse de fato externar esse sentido com a sua mensagem - a violência que nos acomete é silenciosa e criadora de um padrão. 

Dessa forma, cria-se uma necessidade insaciável de consumo. A violência simbólica se faz presente aqui. Enquanto nos estados totalitários, a violência acontecia sobre o corpo, na nossa sociedade totalitária, a violência acontece sobre a psiquê, gerando esquemas existenciais complexos. Assim, quanto mais o sujeito é instigado a consumir, mais esse desejo se retroalimenta para que o sistema se mantenha vivo. Como disse certa vez Slavoj Zizek, a Coca-Cola talvez seja uma das metáforas mais fantásticas do nosso tempo. A propaganda que existe em torno dela é que ela é única capaz de saciar a sede. Mas, quanto mais se bebe, mais a sede se acentua. Assim, na sociedade do fetiche quanto mais se consome, mais se tem vontade de consumir. A grande crise do homem do nosso tempo é ontológica.

Uma cena curiosa do filme que ilustra isso é quando o personagem de Edward Norton sem ter como bater no chefe, sente a necessidade de bater em si mesmo. Sua psiquê estava tão marcada pela violência, que um vício pela agressão o tomou por completo. Pode se afirmar que a mensagem do filme aos homens do nosso tempo é que a violência de uma sociedade concebida sobre o consumo se instalou no homem. 

E o grande problema de nossos dias não é a questão da tolerância ou da desigualdade, a grande questão é que o estilo de vida de uma sociedade que prima pelo consumo se tornou tirana. A necessidade de imitação cria uma obrigatoriedade universal. No dizer Adorno e Horkheimer, "deixa o corpo e vai à alma". 

Que filme, meus amigos, que filme!


sábado, novembro 17, 2012

Germinal, de Émile Zola, algumas reflexões

"A alegria de viver desaparece quando não há mais esperança"
Émile Zola, Germinal, p. 371
 

Pode se afirmar que o século XIX é a idade de ouro do liberalismo. A premissa básica do liberalismo estava fundada na seguinte ideia: "A iniciativa individual é o motor, a mola de toda a atividade válida". Esse entendimento era derivado dos movimentos pró-burguesia fecundados no século XVIII, principalmente com a Revolução Francesa. E o liberalismo (surgido no século XVII) como sistema filósofico representou o sonho de consumação dos intentos da burguesia. Na corrida pela efetivação da "iniciativa individual", havia aqueles que podiam competir, por possuírem os meios de produção, e aqueles que possuíam apenas a força braçal e os instintos de sobrevivência. 

 O Estado como organizador do sistema social como sonhado pelos Iluministas, principalmente por Hobbes, deveria ter a sua presença minimizada. A Segunda Revolução Industrial estava a pleno curso. A invenção da máquina a vapor, as várias ideologias - positivismo, o socialismo, o existencialismo, o darwinismo, o monismo, por exmplo - estavam assentadas num ideal materialista. Ou seja, a ideia de que o mundo e a natureza eram os pontos determinantes a serem conhecidos pelo homem. 

Mas e a literatura possui alguma relação com isso? E respondemos de forma peremptória que sim. A literatura é a transfiguração do mundo. Ela por si se constitui a mistura do mundo real e o mundo possível. Quando o sujeito da literatura cria, não deixa de coniderar a realidade. Mas ele o faz criando uma imitação que gera tensionamentos. Essa imitação é um fundamental para compreender determinados momentos históricos. É por isso que Marx disse em certo momento que aprendeu mais sobre a sociedade francesa do século XIX com Balzac do que com livros técnicos de historiadores e economistas. 

Sendo assim, a complexa e ebuliente sociedade do século XIX pode ser compreendido de maneira "transfigurada" pela literatura. É importante mencionar que além de Zola, outros escritores também se preocuparam em retratar materialmente as desigualdades gestadas pelo capitalismo naquele século. Na Inglaterra, Charles Dickens, foi um importante cronista da vida citadina da Inglaterra industrializada. As ruas repletas de lama; os prostíbulos; a exploração; a infância perdida. Na França, Victor Hugo com Os Miseráveis, pintou um quadro fantástico das relações dos pobres numa sociedade dominada pelos interesses da burguesia. Em Portugal, Eça de Queirós, não se preocupou em retratar o mundo material como Dickens ou Hugo. Preferiu mostrar a hipocrisia que habitava o seio do mundo burguês. E aqui no Brasil, Aluísio Azevedo escreveu dois livros fundamentais,  inspirado por esse movimento vivo então na Europa - O mulato e O cortiço. Ambos os livros são extraordinários. O primeiro por mostrar como o preconceito se constituía em modo de navegação social numa sociedade escravocrata como a nossa; e, o segundo, retratava as condições sub-humanas na qual vivia o povo pobre do Brasil, com todas aquelas doses naturalistas: a promiscuidade, a ausência de educação, os instintos aflorados, a exploração econômica, a dança do corpo. O cortiço está mais próximo de Germinal.

Após essa divagação, queria afirmar que Germinal cuja leitura se concretiza de forma elétrica, é um grande tratado, um documento social. Um libelo contra a sociedade burguesa, assentada na desigualdade. Após ter lido a obra, resolvi assitir ao filme homônimo, lançado em 1993, por Claude Berri. Achei-o convicente. Todavia, o jogo linguístico e a fluência literária como de um cientista de Zola torna Germinal uma leitura indispensável. Em alguns momentos de leitura, eu me vi passeando ao lado de Etienne Lantier, personagem central da obra, pelas ruas feias e cobertas de lama de Montsou.

Germinal foi escrito em 1885 e tornou Émile Zola numa das personalidades mais importantes da literatura universal. De família pobre, Zola passou por muitas dificuldades antes de se estabelecer como um habilidoso cronista. Para escrever Germinal, Zola morou numa comunidade de mineiros durante quase três meses, tempo este em que pode experimentar todas as vicissitudes do triste cotidiano nas regiões interioranas da França. Comeu a comida pobre daqueles homens que viviam como bichos; bebeu água contaminda; percebeu a promiscuidade dos jovens como um apelo ao instinto; dormiu nas casas desadornadas de conforto e sem calefação; desceu aos buracos infames a centenas de metros de profundidade para trabalhar na semi-escudridão, em um ambiente insalubre, pegajoso e que deteriorava a saúde e a vida do trabalhador, como é retratado, por exemplo, na pessoa da personagem Boa-Morte, que vivera cinquenta anos no trabalho inglório. O resultado foi vomitar uma substância preta e a imobilidade demente no final da vida.
Zola ao viver na comunidade dos mineiros colocou em voga o pressuposto básico do naturalista - viver próximo ao fato para narrá-lo com insenção e imparcialidade. Sua função era retratar anatomicamente os eventos sem qualquer moralismo. Era é importante realçar os instintos. Adelgaçar a necessidade da funcionalidade da vida. 

As condições materiais de existência dos mineiros era degradante. Por conta disso, iniciam um movimento grevista sob a liderança de Etienne Lantier. Apoiam-se numa resistência grossa. Organizam-se. Falam na Internacional que era naquele momento uma importante organização internaicional de trabalhadores. Desconhecem as teorias socialistas. O único intento e o desejo de justiça. Queriam fugir da degradação e da opressão. Queriam apenas comer dignamente. Todavia, esse anseio é ocultado pela resistência em atender às aspirações dos mineiros por parte do dono da mina. Zola parece querer mostrar que existem instâncias no sistema. Que todos estão presos, enredados, na teia medonha que aprisiona os envolvidos - dominador e dominados - no jogo de interesse. 

Outro importante recurso utilizado por Zola é colocar em paralelo a burguesia, representado pela comida fácil, o riso mole, a futilidade dos grandes saraus e a situação de desespero do mineiro. Cabe a este viver em condição de penúria. Esse paralelo pode ser verificado na reflexão feita por Etienne: "[...] por que havia tanta miséria de um lado e tanta riqueza de outro? Por que estes [os mineiros] tinham de viver escravizados àqueles [os burgueses], sem a menor esperança de um dia mudar de posição?".

De certa forma essa tese, segue no triste curso da narrativa. A greve iniciada pelos mineiros naufraga. Eles são forçados a voltarem ao trabalho. As necessidades vitais os premem. Submentem-se voluntariamente à tirania. Não conseguem resistir, apesar do ódio. As várias mortes perpetradas pela polícia, braço direito daqueles que estão no poder, desmancha o movimento. A polícia que em sua essência é também formada por homens pobres e comuns, existe para proteger o patrimônio do capitalista. Ou seja, o capitalista, segundo Zola, é cruel em sua sanha, pois alimenta-se do sangue do povo quando explora e blinda-se com o aparelho formado pelo Estado Liberal que protege a propriedade. Todavia, essa proteção é feita pelo povo. 

Etienne vai embora de Montsou. Os mineiros são obrigados a se resignarem com as condições vis de trabalho. E aí não deixei de perceber a tese niilista do livro. Por mais que se tente lutar contra o monstro da opressão, ele possui tentáculos asfixiantes, capazes de dilacerar com sua força qualquer resistência. Resta ao homem pequeno, de existência sofrida resignar-se à indigência até que chegue a morte. O sonho de igualdade é um vislumbre utópico. A ignorância dos pequenos é a arma do ricos. Embora essa tese esteja na obra, o final do livro nos traz uam mensagem de esperança. Enquanto Etienne caminhava pela planície de Montsou, Zola despeja sua pena literária: "Do flanco nutriz brotava a vida, os rebentos desabrochavam em folhas verdes, os campos estremeciam com o brotar da relva. Por todos os lados as sementes cresciam, alongavam-se, furavam a planície, em seu caminho para o calor e a luz. Um transbordamento de seiva escorria sussurrante, o ruído dos germes expandia-se num grane beijo. E ainda, cada vez mais distintamente, como se estivesse mais próximos da superfície, os caompanheiros cavavam. [...] Homens brotavam, um exército negro, vingador, que germinava lentamente nos sulcos da terra, crescendo para as colheitas do século futuro, cuja germinação não tardaria em fazer rebentar a terra".

Fica clara a construção de uma belíssima metáfora, já que o nome germinal estava associado ao calendário da primavera na Revolução Francesa, quando a semente das plantas germinavam. Em um sentido mais lato, germinal é a fecundação, o rebentar de uma transformação social que estava em curso. Zola parece prever os conflitos que estavam sendo fecundados no seio do capitalismo. As desigualdades sociais trariam resultados claros, numa espécie de salto dialético.

O fato é que Germinal é um dos mais importantes livros a tratar de questões sociais. Sua temática ainda está viva. Nas periferias das grandes cidades brasileiras, por exemplo, é possível encontrar famílias como a dos Maheau. Pessoas pobres. Sem instrução; não contempladas por políticas públicas efetivas. Cerceadas do jogo do poder. Iludidas com o ideial de democracia. Democracia e liberdade são termos que aquecem o espírito e geram consolo no Estado burguês. Cria uma ideia de povo que participa das decisões do Estado no suposto jogo democrático. As sementes nunca tiveram tão adormecidas e estéreis.

terça-feira, novembro 06, 2012

Richard Dawkins estaria delirando? - uma ideia provocante

"O poder de consolo da religião não a torna verdadeira"
Richard Dawkins, in Deus: um delírio

Não era minha intenção escrever a respeito do tema, mas me senti estimulado após ter lido isso. Ficou a ideia do desafio posto, pois já li tanto O delírio de Dawkins, de Alister McGrath e Deus: um delírio, de Richard Dawkins. A impressão que ficou de Alister e Joanna McGrath é que eles possuem bons argumentos. Conseguem escrever com clareza. Mas, em hipótese nenhuma são convincentes ao ponto de sugerirem um delírio em Dawkins.

Nota-se desde o princípio da obra um escopo claro: descreditar ou minimizar os efeitos da metralhadora crítica de Dawkins. O autor de Deus: um delírio é um argumentador bem instrumentalizado. Tentar descreditar Dawkins ou tentar insistir na ideia de que Dawkins escreve patacas, que está em erros é um ato inglório. O próprio McGrath reconhece a mente brilhante de Dawkins. E de certa forma se ampara em lacunas. Em pontos não fechados do debate científico para diminuir os efeitos do canhão de Dawkins. Ele diz, em outras palavras, que há um equívoco profundo na intenção de Deus: um delírio; que há um devaneio, uma má-fé nos escritos de Dawkins; que outrora Dawkins já foi um cientista sério e respeitado, mas que agora, após ter se enveredado pela crítica religiosa, perdeu o discernimento completo.

Do outro lado, a obra de Dawkins nos coloca diante de uma questão fundamental - a não existência e Deus. Deus em outras palavras é um cogitio. Um fato infantilizante. Deus é a resposta "sublime" para a causa não explicada. E o neodarwinista acerta um cruzado atordoante: "As lacunas, pelo padrão da cabeça dos criacionistas, são preenchidas por Deus".

Ele nos posiciona à frente de uma argumentação necessária: não existe romantismos ante a natureza. A questão extravagante para os criacionistas é fato de enxergar "fadas" e "duendes" onde só existe aquilo que é. É mais ou menos como aquele poema do Manuel Bandeira: O poema do beco ("O que eu vejo é o beco"). E nesse sentido, é necessário lembrar de Carl Sagan, alguém que labutou pela bom senso e pela razão, com uma finalidade clara: exorcizar as compreensões a-científicas e pautadas e suposições irrefletidas. "A ciência é o melhor que temos. É o melhor que o engenho o humano já concebeu". Assim, a ciência não lida com "fadas" e "duendes" e com compreensões metafísicas questionáveis como a religião sempre faz. 

Dawkins diz que "A natureza é um contador avarento, apegado aos trocados, de olho no relógio, que pune a mínima extravagância". Os fenômenos do mundo são humanos, são demasiado humanos. A natureza nos forjou. A evolução nos deu uma mente racional. Uma capacidade de refletir a reflexão consciente. Ou em outras palavras: capacidade de saber que se sabe. E nesse sentido, para todo comportamento humano existe uma explicação/causa evolutiva. Como disse Desmond Morris: o homem é um fenômeno essencialmente bilógico.

E algo importante: Dawkins não é peremptório em Deus: um delírio. Ele sabe reconhecer os limites de uma teoria. Sabe até onde vai um argumento. Todavia, aquilo que nos é permitido conhecer já é suficiente para deslindar supostas fantasias. E aí nos recordamos de Sagan mais uma vez: "É melhor uma verdade dura, do que uma fantasia consoladora". 

Um dos momentos mais formidáveis do aludido livro de Dawkins se dá quando ele faz uma análise da teodiceia do antigo e novo testamentos. Dawkins mostra o ilogicismo, os desencontros; os aspectos profundamente mitológicos dos escritos bíblicos. Faz uma análise do novo testamento e também encontra nele as mesmas contradições.

O livro de Dawkins é um importante documento a todo aquele que busca usar a inteligência que é própria do ser humano. É importante ler o livro dos McGrath, mas este não chega a causar maiores impactos. Dawkins é um argumentador muito mais habilidoso. Sua verve é muito mais límpida e clara. Suas argumentações atordoam o oponente, porquanto os seus argumentos estão assentados em pressupostos fiéis ao bom senso. E aí evocamos mais uma vez a frase que serviu de epígrafe a esse texto: o fato de a religião ter a sua importância no mundo material não a torna uma verdade. Ou seja, não consuma o seu argumento a respeito da existência de um mundo espiritual. O mundo espiritual existe no interior do mundo humano. Sem o humano, a ideia de Deus, de espírito, de vida após a morte cessam. Somente nós sabemos que vamos morrer e a evolução nos deu um desejo de perpetuação. Para isso criamos a ideia do numinoso. E viva Richard Dawkins!


sexta-feira, novembro 02, 2012

A vida de Brian , de Monty Python - obra cáustica e genial

Hoje à tarde dei boas risadas assistindo ao filme A vida de Brian, de Monty Python. Talvez tenha sido um dos melhores filmes com temática séria e história nonsense já inventado. A vida de Brian é considerado por muitos como um dos melhores filmes de comédia de todos os tempos. O resultado é cáustico. No fundo, o recurso intertextual da obra referencia outros filmes consagradas, constituindo-se numa espécie de anti-Ben-Hur ou uma sátira (o musical à americana do final) a Jesus Cristo Superstar (outra fantástica obra que satiriza os eventos bíblicos), de Llyod Webber Tim e Rice.

O grupo inglês ao produzir A vida de Brian fez uma crítica contudente a como se fecunda um mito ou como se cria uma ideia religiosa. O filme conta a história de Brian, que vive em uma época paralela à de Jesus. Brian se torna aliado a grupo separatista que luta contra a tirania do Império Romano. A obra possui dois momentos muito bem definidos: o destaque ao contexto histórico de como viviam os judeus e o segundo momento em que Brian é confudido com o messias. Uma multidão o segue como um grande sábio, mas ele foge de tudo isso. 

Mas, a história quer mostrar que Brian era alguém cuja missão não poderia ser abandonada (cena surreal é aquela em que ele cai dentro de uma nave espacial pilotada por alienígenas, que fogem  numa perseguição galática). Ele vive situações como as de Cristo (o que no fundo é uma sátira). Mete-se em muitas confusões após ter as suas palavras entendidas como profecias. Objetos dele são tidos como amuletos. Brian acaba sendo crucificado pelos romanos, numa referência clara a Cristo.

 O que impressiona nessa obra de crítica às avessas é o modo como ele refaz o caminho da criação de supostas ideias ditas infalíveis e santas. A vida de Brian critica o modo como as massas são oprimidas pela superstição e se deixam conduzir de maneira voluntária. Não é à toa que foi polêmico quando lançado. Muitos grupos religiosos se posicionaram criticamente contra a obra.

Umas das cenas mais fantásticas do filme é aquele em que ele fala à multidão certa manhã. A mensagem de Brian para multidão é emblemática. Após ter acordado, vai até a janela e se depara com a multidão que o espera - uma clara alusão aos textos bíblicos. Ele fala à multidão que nós somos responsáveis por nossa própria história; somos condutores de nosso próprio destino. Não devemos nos deixar conduzir. Somos humanos, históricos e isso nos dá uma tarefa: construir as pontes que nos levarão aonde ninguém é capaz de nos levar.

Certamente esse é um dos melhores filmes que eu já vi - furioso em sua descontraída história.

Abaixo, a cena épica na qual Pilatos (com dislalia) entrevista Brian. Ri muito com esta cena. Preste atenção nas subtilezas do diálogo. Uma paródia genial.