domingo, setembro 22, 2013

Hannah Arendt - Nós, o Brasil e a banalidade do mal - por Marcia Tilburi

Ando meio sem possibilidade de fazer minhas leituras queridas; sem possibilidade de escrever algumas garatujas. O tempo anda escasso. Faz um bom tempo que este espaço foi abandonado. As ideias até surgem, mas não tenho tempo para escrevê-las. Livros acumulados, revistas acumuladas, muitos artigos acumulados. Hoje, quebrei a regra. Fui a um salão cortar o cabelo e acabei levando a última edição (183) da Revista Cult, que compro todos os meses. Li o texto abaixo escrito pela Marcia Tilburi. A reflexão é contundente e toca em um aspecto relevante do pensamento de Hannah Arendt: a reflexão filosófica profunda de uma das mais importantes intelectuais do século XX. Tilburi comenta o filme de von Trotta, que tive a oportunidade de ver mês passado e até comentei por aqui.

Hannah Arendt, filósofa que dá nome ao filme de Margarethe von Trotta, é autora de uma das obras filósoficas mais importantes do século 20. A diretora opta por retrarar a filósofa como uma pessoa comum, a professora envolvida com seu trabalho acadêmico, suas aulas e pesquisas. Fixa o enredo do filme no período em que Hannah Arendt escreveu seu polêmico Eichmann em Jerusalém. Tenta mostrar o que se passava com a filósofa, o cenário que a motivou a escrever o livro cujo conteúdo foi tomado por muitos como um escândalo. O motivo era a análise desmistificatória de Adolf Eichmann, o carrasco nazista capturado na Argentina e julgado em Jerusalém em 1962. Esperava–se desse homem que fosse um monstro, um ser maligno, um louco, cruel e perverso. A percepção de Arendt acerca do caráter desse personagem histórico, de sua postura comum que o fazia igual à tanta gente, causou mal estar.

Foi justamente a postura de Eichmann que permitiu a Arendt cunhar a ideia tão curiosa quanto crítica relativa à “banalidade do mal”. Por banalidade do mal, ela se referia ao mal praticado no cotidiano como um ato qualquer. Muitas pessoas interpretaram a visão de Arendt como uma afronta à desgraça judaica, enquanto ela – filósofa descomprometida com qualquer tipo de facção, religião, partido ou ideologia – tentava entender o que
realmente se passava com a subjetividade de um homem como Eichmann.

Arendt não tomava sua condição de judia como superior à sua posição como pensadora comprometida com a compreensão de seu tempo. A condição judaica era, para ela, condição humana. Não menos, não mais. O problema da subjetividade, das escolhas éticas que implicam liberdade e responsabilidade, era a questão central no momento em que se tratava de pensar e realizar a política.

A performatividade da tese

No filme, fica claro que aqueles que se manifestaram furiosos ou ofendidos contra a tese de Arendt de fato não a compreenderam. Isso porque a tese da banalidade do mal é uma tese difícil, não por sua lógica, mas por seu caráter performativo. Aquele que é confrontado com ela precisa fazer um exame de sua consciência particular em relação ao geral e, portanto, de seus atos enquanto participante da condição humana. A banalidade do mal significa que o mal não é praticado como atitude deliberadamente maligna.  O praticante do mal banal é o ser humano comum, aquele que ao receber ordens não se responsabiliza pelo que faz, não reflete, não pensa. Eichmann foi caracterizado por Arendt como uma pessoa tomada pelo “vazio do pensamento”, como um imbecil que não pensava, que repetia clichês e era incapaz de um exame de consciência. Heidegger, o filósofo nazista que diz ter se arrependido de aderir ao regime, era, no entanto, um gênio da filosofia e, contudo, não era diferente de Eichmann.

Aterrador, no entanto, é que entre Eichmann, o imbecil, e Heidegger, o gênio, esteja o ser humano comum. Eichmann não era diferente de qualquer pessoa, era um simples burocrata que recebia ordens e que punha em funcionamento a “máquina” do sistema, do mesmo modo que cada um de nós pode fazê-lo a cada momento em que, liberado da reflexão que une, em nossa capacidade de discernimento e julgamento, a teoria e a prática, seguimos as “tendências dominantes” como escravos livres, contudo, de si mesmos.  Sair da banalidade do mal é fazer a opção ética e responsável na contramão da tendência à destruição que convida constantemente cada um a aderir.

A banalidade do mal é, portanto, uma característica de uma cultura carente de pensamento crítico, em que qualquer um – seja judeu, cristão, alemão, brasileiro, mulher, homem, não importa – pode exercer a negação do outro e de si mesmo.

Em um país como o Brasil, em que a banalidade do mal realiza-se na corrupção autorizada, na homofobia, no consumismo e no assassinato de todos aqueles que não têm poder, seja Amarildo de Souza, seja Celso Rodrigues Guarani–Kaiowá, uma parada para pensar pode significar o bom começo de um crime a menos na sociedade e no Estado transformados em máquina mortífera.

Disponível aqui

domingo, setembro 01, 2013

Algumas considerações sobre Paulo e um livro de Alain Badiou

Paulo, o apóstolo Paulo, é uma das figuras mais controversas da história. Sou intrigado com essa personagem por tudo aquilo que possivelmente foi e por tudo aquilo que ele representa. Paulo de Tarso é uma das figuras mais emblemáticas da Antiguidade. Esse desejo de conhecê-lo mais profundamente me fez ler o livro "São Paulo - a fundação do universalismo", de Alain Badiou, filósofo e historiador marxista francês. Quis sair do nicho traditivo e que defende de forma cega o dogma, para entrar em uma "arena" crítica.

Fico pensando se não houvesse os escritos de Paulo como seria o cristianismo como religião institucionalizada? Como seriam os dogmas? Os escritos de Paulo são pontos basilares que sustentam a catedral dourinária dos cristãos. Muitos pensadores já perceberam o quanto o texto paulino é inflexivo dentro do Novo Testamento. O apóstolo quebra completamente o aspecto biográfico e taumatológico dos evangelhos (Mateus, Marcos, Lucas e João; e do livro de Atos dos Apóstolos). Existem inúmeras versões para essa discrepância. 

Segundo certa parte dos estudiosos, os textos paulinos constituem os primeiros documentos da história do cristianismo. Das treze cartas sugeridas como escritas por Paulo, seis pelo menos são tidas como verdadeiramente paulinas (Romanos, 1° e 2° Coríntios, Gálatas, Filipenses e 1° Tessalonicenses). As demais (Efésios, Colossenses, 2° Tessalonicenses, Tito, Filêmon, 1° e 2° Timóteo) são de autoria questionável por conta dos extratos estilísticos e, segundo os estudiosos, foram agregadas ao corpus canônico posteriormente. 

Mas o que torna o texto paulino algo a ser investigado? As cartas de Paulo são narrativas pragmáticas. Elas foram escritas em contextos bastante específicos. É estranho que Paulo não insira quase nada em seus escritos sobre discursos de Cristo. O tema mais preponderante em seus escritos resvalam em alguns temas comuns aos evangelhos. Um exemplo é a eucaristia (a santa ceia). Enquanto os evangelhos estão assentados sobre milagres, eventos extraordinários, discursos e ensinamentos por meio de parábolas, eventos climáticos anômalos, ressurreições, os textos paulinos estão fundados em aspectos jurídicos, ou seja, arraigadamente teológicos em sua natureza. Paulo vai falar de justificação, redenção, glorificação, fé como força restauradora, predestinação, eleição, graça, ao contrário do que, por exemplo, defende a Carta de Tiago. Este defende as obras, aquele, a graça e a fé. Ou o Evangelho segundo Marcos que mostra um Jesus imensamente ativo e dinâmico em sua atuação.

Paulo talvez tenha escrito os seus textos nas décadas de 50 e 60 do primeiro século. Os evangelhos, quiçá, sejam escritos mais recentes do Novo Testamento. Suspeita-se que havia uma tradição oral transmissora dos eventos sobre a vida de Jesus, pois se os evangelhos fossem escritas concomitantes ao momento da vida de Paulo, é possível que ele tivesse inserido em seus textos alguns elementos conforme aventado acima. Cria-se assim uma dissociação entre o Jesus histórico dos evangelhos e o arcabouço doutrinário do apóstolo. 

Paulo possui um dogma antifilósofico: Cristo morreu e ressuscitou, por isso invistamos a nossa fé e expectativa nesse episódio. Em sua metafísica cabem potestades e principados. A luta entre o bem e o mal. Ele fia o seu discurso em outra realidade, estabelecendo assim, de forma paradoxal, um platonismo. Sua escatologia diverge daquilo que Jesus escreve nos capítulos finais do Evangelho de Mateus. Paulo fala do "homem da iniquidade" (o imperador romano?). Paulo deve ter atuado como cristão sob o regime de três marcantes imperadores: o terrível Calígula, o conformado Cláudio e o sanguinário Nero. Inclusive, ele foi morto sob a ordem de Nero, conforme a tradição da Igreja defende. 

Do ponto de vista político ele é conformista. Já que em sua pregação existe uma metafísica platônica, ou seja, separando o mundo real do mundo ideal, Paulo prega a submissão dos cristãos às autoridades como aparece explícito em sua carta aos Romanos. Ele não considera a autoridade sob o aspecto crítico. Sua intenção é sempre apontar para a "nova Jerusalém", para a outra vida. "Se a nossa vida se resume apenas àquilo que vivemos neste mundo, somos os mais miseráveis dos seres" (1 Coríntios 15). 

Segundo Badiou, Paulo é o fundador do universalismo da subjetividade da fé, já que a fé não é uma categoria quantificável. O apóstolo não coaduna a ideia de totalidade dos gregos ou de uma eleição judaica que diverge da lógica grega, obrigando tudo que existe a se harmonizar com aquilo que é. Paulo caminha na direção contrária disso. Ele coloca as suas sentenças acima dos condicionamentos da filosofia grega ou da lei judaica, apesar de possuir em sua práxis um profundo background judaico. Ver, por exemplo, a sua explicação para as prerrogativas do homem e "o silêncio da mulher". 

O livro de Badiou contribui com o debate em torno da figura de Paulo. Todavia, existem pelo menos quatro autores estudiosos da vida de Paulo que preciso ler: Adolf von Harnack, Ferdinand Christian Baur, Albert Schweitzer e Ernest Renan, apesar de toda a crítica negativa contra esse último.