quinta-feira, março 28, 2013

O grande Gatsby, de F.S. Fitzgerald

F.S. Fitzsgerald disse certa vez que "as coisas que envergonham as pessoas geralmente dão uma boa história". Acredito que ele toque aqui em um ponto central das vicissictudes humanas, pois tendemos a esconder aquilo que nos avilta, que enfeia o nosso caráter ou nosso passado. Talvez essa frase sirva, ainda, para resumir metalinguisticamente a sua literatura. Afinal, Fitzgerald viveu uma das épocas mais opulentas da história do capitalismo na América. 

Era o período posterior à Primeira Grande Guerra. A época de ouro do jazz; de uma América voltada para o hedonismo; para os vícios; para a ostentação. Voltada acima de tudo para uma compreensão de que aquilo que experimentava era eterno. Que sua sociedade havia alcançado um modelo definitivo. E, para isso, necessitava esbanjar. Havia os muito ricos e aqueles que buscavam navegar nesse rio de aparências, mesmo não tendo condições - é o caso do escritor F.S. Fitzgerald. 

Dono de uma prosa refinada, Fitzgerald via-se obrigado a escrever de maneira frenética a fim de custear o estilo de vida de um grande dândi. Escreveu obras monumentais, contos que exemplificam o domínio perfeito da técnica. Mas acredito que sua grande obra tenha sido O grande Gatsby. Não pretendo fazer um resumo da obra - até porque estou com preguiça. Mas após ter terminado o livro pequeno (156 páginas na minha edição) e de prosa leve, singela e elegante, restou-me a certeza de que o Grande Gatsby não é qualquer livro. 

Francis Scott Fitzgerald
Ele descreve de maneira primorosa a sociedade americana pós-Primeira Guerra e antes da Crise de 1929 - conhecida, também, como período da Grande Depressão Econômica (tudo a ver com a história). Nota-se na obra o tom nababesco em que viviam os ricos - festas extraordinárias, mulheres belíssimas, bebibas finas, os carros (objetos caracterizadores dos grandes ricos) que eram sinônimos da modernidade, o riso frouxo, o enbanjar descomprometido. Para montar a história do livro, Fitzgerald cria a personagem Nick Carraway, responsável por contar a história de Jay Gatsby.

É um romance de forte sobriedade e com pitadas eloquentes de melancolia. Para muitos, ele personifica o sonho da sociedade americana, de uma sociedade que alimentou uma crença ingênua e incontida de que a vida não pode ser dobrada pela dialética da história. O tema do romance continua vivo e atual. Não é à toa que é considerado como um dos principais livros da literatura americana do século XX. Somente quem esteve dentro desse período histórico como o fez Fitzgerald, tem autoridade para contar com arrojo e realismo o que se passou. Mais que uma obra literária, O Grande Gatsby é um registro sociológico, antropológico e históriográfico do que foi este período tão peculiar da história americana.

P.S. Os cinemas do mundo, este ano, exibirão o filme O Grande Gatsby, que abrirá o Festival de Cannes, na França. Por aqui, o filme tem data prevista para 7 de junho. A primeira adaptação para o cinema aconteceu em 1974, com roteiro de Francis Ford Coppola e que acabou não emplacando. Dessa vez, a direção fica a cargo de Baz Luhrmann, mais conhecido pelo seu Moulin Rouge, de 2001. Leonardo DiCaprio fará o papel de Jay Gatsby.  É esperar para ver.

domingo, março 24, 2013

O homem e o mistério de sua própria existência - uma pensata

O ser humano ainda é um mistério. Sua existência sobre a Terra é a matriz de pesquisa de muitos estudiosos. O homem ainda é o problema dos problemas da filosofia - seja ela materialista, positivista, existencialista ou idealista. O fulcro que impele a produção de conhecimento é justamente essa inquietação de saber quem se é - mesmo tendo tantos caminhos a percorrer. O homem é o absoluto da natureza, já que todas as linguagens são, necessariamente, humanas. Ele é sempre mais do que é, e sempre menos do que deve ser. 

Ou seja, é essa dupla possibilidade de ser que torna o homem a medida de todas as coisas. (1) porque o homem é a escrita que interpreta todos os eventos da natureza, sendo dono de uma consciência que o torna consciente. Nenhuma outra espécie vivente é capaz de saber que sabe; de angustiar-se ante o mistério da morte; de aceitar voluntariamente os processos do devir e transformar a matéria (fatum) em algo a seu favor. Mesmo estando diante de fatos que não pode controlar (o futuro), o homem vive no presente a materialização da expectativa do que será, visualizando os círculos consequentes de sua caminhada, como alguém que toca a superfície de um rio, o rio da existência. Tentamos controlar a fúria implacável do devir com o pensamento; (2) mesmo sendo esse ser que pode ser mais que é, ele é menos do que deve ser, pois diante da grandeza do cosmos, somos apenas um grão frágil da poeira das galáxias. Somos um acidente? Ou o resultado de uma mente criativa e voluntariosa? Revolvemo-nos diante dessas indagações. 

O homem é conjunto de muitas dimensões. A reunião de muitas necessidades. O ansiar de muitos desejos. A causação de muitos fenômenos. De muitas criações. Elaboramos sistemas. Explicamos o inexplicável. E isso apenas atesta a nossa capacidade. Trabalhamos o tempo todo. E com essa ação, deixamos nossas "marcas" sobre a natureza. Inventamos aquilo a que chamam de civilização humana.

A maior de todas as nossas capacidades é a de acumular conhecimentos e construir abstrações. Somente ele tem capacidade de fomentar símbolos . A possibilidade da construção do virtual, ou seja, daquilo que existe como imagem em nossa mente. Talvez, esse seja um dos maiores mistérios que se possa conceber. Como sabemos que sabemos? Como sabemos que estamos conscientes? Como nos distinguimos do mundo e separamos aquilo que somos daquilo que existe como uma realidade externa a nós mesmos? A capacidade de saber que sei, testemunha a mim mesmo sobre a minha existência e aos outros de saber que não sou um "tu", mas sou um "eu".

Essa dimensão imaterial, intangível, faz-nos criar o incriado. Ajuda-nos a consolidar a nossa trajetória sobre a terra - e quem sabe na eternidade. Acredito, acima de tudo, que a criação da metafísica, das realidades espirituais, seja, antes de tudo, uma tentativa de controlar o invisível de determinados silêncios - o maior deles é o silêncio d'além mundo. Sabemos que existe uma inexorabilidade da morte. Diante dela toda súplica é vã, todo pedido, toda oração é infausta. Ela é uma jogadora escrupulosa, como retratatou mágica e genialmente Ingmar Bergman em O Sétimo Selo. Talvez, por causa da iminência de tão atroz destino, fomentamos o fenômeno religioso. O homem apesar de viver em um mundo onde o príncipio inevitável da falibilidade de todos os seres, é o único ser a não aceitar o seu destino. Isso apenas atesta o quão fantástico o homem é. Existe uma individualidade, um acertar de contas a qual todos os viventes estão destinados. Ninguém pode substituir o sujeito individual. Não há privilégios. Seja qual for sociedade, seja qual for o sistema de governo, seja em qual for o modo de produção, todos os homens se defrontarão com essa força implacável.

Eternidade é um conceito com muitas nuanças. Inventamos a eternidade, porque desejamos ser eternos. Mesmo sendo sabedores desse lado contingente (que é a realidade, o mundo material), buscamos perpetuar além do físico a nossa existência. E é daí que surgem os vários sistemas religiosos. As religiões são as muitas linguagens da esperança. É a hipostasiação dos nossos desejos. O sujeito religioso ao ouvir a promessa da vida eterna, apazigua esse grito caótico e desagragador existente no coração. Pois a morte é desagregação absoluto do ser. Nela a consciência deixa de ser a dimensão loquaz, para se tornar o silêncio na escuridão do caminhar do tempo. A morte é aniquilação do ser. O silêncio forçado e compulsório infligido à individualidade.

Diante dessa realidade tão incomensurável do fenômeno humano, fica certeza de que o homem é um ser com muitas vozes. Ele é um construtor insistente de matéria simbólica - cria a arte, cria a cultura, cria os sentidos da vida social, cria a religião como uma das dimensões da cultura; cria muitos conceitos (amor, liberdade, solidariedade); cria a técnica e sistematiza a técnica como uma fonte de intervenção sobre a natureza; o homem, em suma, é um animal criador e espetacularizador daquilo que cria. Diante desse fato, perguntamo-nos: ó homem, quem te criou? Até hoje experimentas a inquietação de não saberes quem és, de onde vieste e para aonde vais.

quarta-feira, março 20, 2013

60 anos da morte de Graciliano Ramos - à guisa de uma lembrança

Hoje, 20 de março de 2013, completam-se 60 anos da morte de um dos maiores escritores da história da nossa literatura. Quando se faz referência à boa leitura, é imprescindível citar o mestre Graça, como era conhecido pelos mais íntimos. Graciliano nasceu no interior do sertão alagoano, lá pelos idos de 1892. Ainda muito pequeno começou a escrever poesias. Mas foi lendo Eça de Queirós, José de Alencar, Machado de Assis, os escritores franceses e russos; lendo ainda Karl Marx em francês por volta de 1913, que ele sedimentou seu gigantismo intelectual.

Foi jornalista, comerciante de secos de molhados, político, funcionário público, escritor, comunista. Possuía uma personalidade forte. É conhecido o seu mau humor crônico. Todavia, quem conviveu de perto não julgou que aquilo que fosse um defeito. Era a sua forma de encarar as pessoas e o mundo. Certa vez, estando com Zé Lins do Rego, pela ocasião do Estado Novo de Vargas (1937), sapecou a frase: "Estamos fudidos!" Ou ainda é conhecido o episódio de um jovem estudante e pedante entusiasmado, que chegou próximo dele na Livraria José Olympio e perguntou: "O que você acha de Machado de Assis?" Ao que ele respondeu: "Era um cavalo!" O estudante entendeu que ali não havia lugar para bate-papo.

Era um fulmante inveterado. Fulmava de 3 a 4 carteiras do cigarro Selma por dia. E foi justamente esse vício terrível que acelerou a sua morte. Com um câncer no pulmão, descoberto em estágio avançado, não teve como estender a sua vida. Muitos romances, histórias contadas com a maestria de sua pena foram silenciadas. Morreu com pouco mais de 60 anos de idade. Ainda relativamente jovem. 

O que é imortal, por sua vez, é o legado de sua obra.

domingo, março 17, 2013

A trilha sonora de Réquiem para um sonho, de Aronofsky

Réquiem para um sonho, filme de 2000, do diretor Daren Aronofsky, mestre incotestável dos personagens paranóicos, é uma obra assustadora. Após tê-lo visto parecemos ter saído de um transe tal qual as personagens perturbadas da película. Mas penso que a trilha sonora elaborada por Klint Mansell, amigo de Aronofsky, que trabalhou em outros projetos do diretor como, por exemplo, Pi (1998), outra obra assustadora e o excelente O Cisne Negro (2010), com a Natalie Portman simplesmente endiabrada, entre outras obras, seja uma das principais atrações do filme. 

Mansell em Réquiem para um sonho construiu uma trilha sonora fantasmagórica. Há sensações variadas. Marchas por universos distantes, repletos de delírio. Resolvi fazer essa referência ao filme de 2000, pois estou ouvindo neste instante toda a trilha sonora e penso que essa seja uma das mais belas trilhas sonoras que já foram compostas para um filme. Não devo esquecer Koyaanisqatsi e As horas, ambas de Philip Glass. Abaixo uma palhinha de duas das faixas da trilha sonora: Ghosts of a Future Lost e Meltdown.

sexta-feira, março 15, 2013

Entrevista de Leonardo Boff à Folha de São Paulo (que não foi publicada na íntegra)

Há alguns dias atrás escrevi algumas garatujas sobre a Igreja Católica. Acredito que esta semana, um dos assuntos mais propalados pela TV, pelas redes sociais e pelas mais diversas mídias tenha sido a eleição do novo papa, autodenominado Francisco I. Na entrevista abaixo (profundamente reveladora e com forte tom reflexivo e crítico, Leonardo Boff fala sobre a renúncia de Bento XVI e sobre o papel da Igreja na história. Muito boa a entrevista.

Dei generosamente uma entrevista à Folha de São Paulo que quase não aproveitou nada do que disse e escrevi. Então, publico a entrevista inteira a seguir para reflexão e discussão entre os interessados pelas coisas da Igreja Católica. As perguntas foram reordenadas.
1. Como o Sr. recebeu a renúncia de Bento XVI?
Eu, desde o principio, sentia muita pena dele, pois pelo que o conhecia, especialmente em sua timidez, imaginava o esforço que devia fazer para saudar o povo, abraçar pessoas, beijar crianças. Eu tinha certeza de que um dia ele aproveitaria alguma ocasião sensata, como os limites físicos de sua saúde e o menor vigor mental, para renunciar. Embora mostrou-se um Papa autoritário, não era apegado ao cargo de Papa. Eu fiquei aliviado, porque a Igreja está sem liderança espiritual que suscite esperança e ânimo. Precisamos de um outro perfil de Papa mais pastor que professor, não um homem da instituição-Igreja, mas um representante de Jesus que disse: “se alguém vem a mim eu não mandarei embora” (Evangelho de João 6,37), podia ser um homoafetivo, uma prostituta, um transexual.
2. Como é a personalidade de Bento XVI já que o Sr. privou de certa amizade com ele?
Conheci Bento XVI nos meus anos de estudo na Alemanha entre 1965-1970. Ouvi muitas conferências dele, mas não fui aluno dele. Ele leu minha tese doutoral: "O lugar da Igreja no mudo secularizado” e gostou muito a ponto de achar uma editora para publicá-la, um calhamaço de mais de 500 páginas. Depois trabalhamos juntos na revista internacional Concilium, cujos diretores se reuniam todos os anos na semana de Pentecostes em algum lugar na Europa. Eu a editava em português. Isso entre 1975-1980. Enquanto os outros faziam sesta, eu e ele passeávamos e conversávamos temas de teologia, sobre a fé na América Latina, especialmente sobre São Boaventura e Santo Agostinho, do quais é especialista e eu até hoje os frequento a miúde.
Depois, em 1984, nos encontramos num momento conflitivo: ele como meu julgador no processo do ex-Santo Ofício, movido contra meu livro “Igreja: carisma e poder” (Vozes 1981). Ai tive que sentar na cadeirinha onde Galileo Galilei e Giordano Bruno, entre outros, sentaram. Submeteu-me a um tempo de “silêncio obsequioso”; tive que deixar a cátedra e fui proibido de publicar qualquer coisa. Depois disso nunca mais nos encontramos. Como pessoa é finíssimo, tímido e extremamente inteligente.
3. Ele como Cardeal foi o seu Inquisidor depois de ter sido seu amigo: como viu esta situação?
Quando foi nomeado Presidente da Congregação para a Doutrina da Fé (ex-Inquisição) fiquei sumamente feliz. Pensava com meus botões: finalmente teremos um teólogo à frente de uma instituição com a pior fama que se possa imaginar. Quinze dias após me respondeu, agradecendo e disse: vejo que há várias pendências suas aqui na Congregação e temos que resolvê-las logo. É que praticamente a cada livro que publicava vinham de Roma perguntas de esclarecimento que eu demorava em responder. Nada vem de Roma sem antes de ter sido enviado a Roma.
Havia aqui bispos conservadores e perseguidores de teólogos da libertação que enviavam as queixas de sua ignorância teológica a Roma a pretexto de que minha teologia poderia fazer mal aos fiéis. Ai eu me dei conta: ele já foi contaminado pelo bacilo romano que faz com que todos os que ai trabalham no Vaticano rapidamente encontrem mil razões para serem moderados e até conservadores. Então, sim, fiquei mais que surpreso, verdadeiramente decepcionado.
4. Como o Sr. recebeu a punição do “silêncio obsequioso”?
Após o interrogatório e a leitura de minha defesa escrita, que está como adendo da nova edição de “Igreja: carisma e poder” (Record 2008), são 13 cardeais que opinam e decidem. Ratzinger é um apenas entre eles. Depois submetem a decisão ao Papa. Creio que ele foi voto vencido, porque conhecia outros livros meus de teologia, traduzidos para alemão, e me havia dito que tinha gostado deles, até, uma vez, diante do Papa numa audiência em Roma fez uma referência elogiosa. Eu recebi o “silêncio obsequioso” como um cristão ligado à Igreja o faria: calmamente o acolhi. Lembro que disse: “é melhor caminhar com a Igreja que sozinho com minha teologia”. Para mim foi relativamente fácil aceitar a imposição, porque a Presidência da CNBB me havia sempre apoiado e dois Cardeais, Dom Aloysio Lorscheider e Dom Paulo Evaristo Arns, me acompanharam a Roma e depois participaram, numa segunda parte, do diálogo com o Cardeal Ratzinger e comigo. Ai éramos três contra um. Colocamos algumas vezes o Cardeal Ratzinger em certo constrangimento, pois os cardeais brasileiros lhe asseguravam que as críticas contra a teologia da libertação que ele fizera num documento saído recentemente eram eco dos detratores e não uma análise objetiva. E pediram um novo documento positivo; ele acolheu a ideia e realmente o fez dois anos após. E até pediram a mim e ao meu irmão teólogo Clodovis, que estava em Roma, que escrevêssemos um esquema e o entregássemos na Sagrada Congregação. E num dia e numa noite o fizemos e o entregamos.
5. O Sr deixou a Igreja em 1992. Guardou alguma mágoa de todo o affaire no Vaticano?
Eu nunca deixei a Igreja. Deixei uma função dentro dela, que é de padre. Continuei como teólogo e professor de teologia em várias cátedras aqui e fora do país. Quem entende a lógica de um sistema autoritário e fechado, que pouco se abre ao mundo, não cultiva o diálogo e a troca (os sistemas vivos vivem na medida em que se abrem e trocam), sabe que se alguém, como eu, não se alinhar totalmente a tal sistema, será vigiado, controlado e eventualmente punido. É semelhante aos regime de segurança nacional que temos conhecido na América Latina sob os regimes militares no Brasil, na Argentina, no Chile e no Uruguai. Dentro desta lógica, o então Presidente da Congregação da Doutrina da Fé (ex-Santo Oficio, ex-Inquisição), o Cardeal J. Ratzinger, condenou, silenciou, depôs de cátedra ou transferiu mais de cem teólogos. Do Brasil fomos dois: a teóloga Ivone Gebara e eu. Em razão de entender a referida lógica, e lamentá-la, sei que eles estão condenados a fazer o que fazem na maior das boas vontades. Mas como dizia Blaise Pascal: “Nunca se faz tão perfeitamente o mal como quando se faz de boa vontade”. Só que esta boa vontade não é boa, pois cria vítimas. Não guardo nenhuma mágoa ou ressentimento, pois exerci compaixão e misericórdia por aqueles que se movem dentro daquela lógica que, a meu ver, está a quilômetros luz da prática de Jesus. Aliás é coisa do século passado, já passado. E evito voltar a isso.
6. Como o Sr. avalia o pontificado de Bento XVI? Soube gerenciar as crises internas e externas da Igreja?
Bento XVI foi um eminente teólogo, mas um Papa frustrado. Não tinha o carisma de direção e de animação da comunidade, como tinha João Paulo II. Infelizmente ele será estigmatizado, de forma reducionista, como o Papa onde grassaram os pedófilos, onde os homoafetivos não tiveram reconhecimento e as mulheres foram humilhadas como nos EUA, negando o direito de cidadania a uma teologia feita a partir do gênero. E também entrará na história como o Papa que censurou pesadamente a Teologia da Libertação, interpretada à luz de seus detratores, e não à luz das práticas pastorais e libertadoras de bispos, padres, teólogos, religiosos/as e leigos que fizeram uma séria opção pelos pobres contra a pobreza e a favor da vida e da liberdade. Por esta causa justa e nobre foram incompreendidos por seus irmãos de fé, e muitos deles presos, torturados e mortos pelos órgãos de segurança do Estado militar. Entre eles estavam bispos como Dom Angelelli, da Argentina, e Dom Oscar Romero, de El Salvador. Dom Helder foi o mártir que não mataram. Mas a Igreja é maior que seus papas e ela continuará, entre sombras e luzes, a prestar um serviço à humanidade, no sentido de manter viva a memória de Jesus, de oferecer uma fonte possível de sentido de vida que vai para além desta vida. Hoje sabemos pelo Vatileaks que dentro da Cúria romana se trava uma feroz disputa de poder, especialmente entre o atual Secretário de Estado Bertone e o ex-secretário Sodano, já emérito. Ambos têm seus aliados. Bertone, aproveitando as limitações do Papa, construiu praticamente um governo paralelo. Os escândalos de vazamento de documentos secretos da mesa do Papa e do Banco do Vaticano, usado pelos milionários italianos, alguns da mafia, para lavar dinheiro e mandá-lo para fora, abalaram muito o Papa. Ele foi se isolando cada vez mais. Sua renúncia se deve aos limites da idade e das enfermidades, mas foram agravadas por estas crises internas que o enfraqueceram e que ele não soube ou não pode atalhar a tempo.
7. O Papa João XXIII disse que a Igreja não pode virar um museu, mas uma casa com janelas e portas abertas. O Sr. acha que Bento XVI não tentou transformar a Igreja novamente em algo como um museu?
Bento XVI é um nostálgico da síntese medieval. Ele reintroduziu o latim na missa, escolheu vestimentas de papas renascentistas e de outros tempos passados, manteve os hábitos e os cerimoniais palacianos; para quem iria comungar, oferecia primeiro o anel papal para ser beijado e depois dava a hóstia, coisa que nunca mais se fazia. Sua visão era restauracionista e saudosista de uma síntese entre cultura e fé, que existe muito visível em sua terra natal, a Baviera, coisa que ele explicitamente comentava. Quando na Universidade, onde ele estudou e eu também, em Munique, viu um cartaz me anunciando como professor visitante para dar aulas sobre as novas fronteiras da teologia da libertação, pediu ao reitor que protelasse esse dia, o convite já acertado. Seus ídolos teológicos são Santo Agostinho e São Boaventura, que mantiveram sempre uma desconfiança de tudo o que vinha do mundo, contaminado pelo pecado e necessitado de ser resgatado pela Igreja. É uma das razões que explicam sua oposição à modernidade, que a vê sob a ótica do secularismo e do relativismo e fora do campo de influência do cristianismo que ajudou a formar a Europa.
 8. A igreja vai mudar, em sua opinião, a doutrina sobre o uso de preservativos e em geral a moral sexual?
A Igreja deverá manter as suas convicções, algumas que estima irrenunciáveis como a questão do aborto e da não manipulação da vida. Mas deveria renunciar ao status de exclusividade, como se fora a única portadora da verdade. Ela deve se entender dentro do espaço democrático, no qual sua voz se faz ouvir junto com outras vozes. E as respeita e até se dispõe a aprender delas. E quando derrotada em seus pontos de vista, deveria oferecer sua experiência e tradição para melhorar onde puder melhorar e tornar mais leve o peso da existência. No fundo, ela precisa ser mais humana, humilde e ter mais fé, no sentido de não ter medo. O que se opõe à fé não é o ateísmo, mas o medo. O medo paralisa e isola as pessoas das outras pessoas. A Igreja precisa caminhar junto com a humanidade, porque a humanidade é o verdadeiro Povo de Deus. Ela o mostra mais conscientemente, mas não se apropria com exclusividade desta realidade.
9. O que um futuro Papa deveria fazer para evitar a emigração de tantos fiéis para outras igrejas, e especialmente pentecostais?
Bento XVI freou a renovação da Igreja incentivada pelo Concílio Vaticano II. Ele não aceita que na Igreja haja rupturas. Assim que preferiu uma visão linear, reforçando a tradição. Ocorre que a tradição a partir dos séculos XVIII e XIX se opôs a todas as conquistas modernas, da democracia, da liberdade religiosa e outros direitos. Ele tentou reduzir a Igreja a uma fortaleza contra estas modernidades. E via no Vaticano II o cavalo de Troia por onde elas poderiam entrar. Não negou o Vaticano II, mas o interpretou à luz do Vaticano I, que é todo centrado na figura do Papa com poder monárquico, absolutista e infalível. Assim se produziu uma grande centralização de tudo em Roma sob a direção do Papa que, coitado, tem que dirigir uma população católica do tamanho da China. Tal opção trouxe grande conflito na Igreja até entre inteiros episcopados, como o alemão e francês, e contaminou a atmosfera interna da Igreja com suspeitas, criação de grupos, emigração de muitos católicos da comunidade e acusações de relativismo e magistério paralelo. Em outras palavras, na Igreja não se vivia mais a fraternidade franca e aberta, um lar espiritual comum a todos. O perfil do próximo Papa, no meu entender, não deveria ser o de um homem do poder e da instituição. Onde há poder, inexiste amor e desaparece a misericórdia. Deveria ser um pastor, próximo dos fiéis e de todos os seres humanos, pouco importa a sua situação moral, étnica e política. Deveria tomar como lema a frase de Jesus que já citei anteriormente: “Se alguém vem a mim, eu não o mandarei embora”, pois acolhia a todos, desde uma prostituta como Madalena até um teólogo como Nicodemos.
Não deveria ser um homem do Ocidente que já é visto como um acidente na história. Mas um homem do vasto mundo globalizado, sentindo a paixão dos sofredores e o grito da Terra devastada pela voracidade consumista. Não deveria ser um homem de certezas, mas alguém que estimulasse a todos a buscarem os melhores caminhos. Logicamente se orientaria pelo Evangelho, mas sem espírito proselitista, com a consciência de que o Espírito chega sempre antes do missionário e o Verbo ilumina a todos que vêm a este mundo, como diz o evangelista São João. Deveria ser um homem profundamente espiritual e aberto a todos os caminhos religiosos, para juntos manterem viva a chama sagrada que existe em cada pessoa: a misteriosa presença de Deus. E, por fim, um homem de profunda bondade, no estilo do Papa João XXIII, com ternura para com os humildes e com firmeza profética para denunciar quem promove a exploração e faz da violência e da guerra instrumentos de dominação dos outros e do mundo. Que nas negociações que os cardeais fazem no conclave e nas tensões das tendências, prevaleça um nome com semelhante perfil. Como age o Espírito Santo ai é mistério. Ele não tem outra voz e outra cabeça do que aquela dos cardeais. Que o Espírito não lhes falte.

quinta-feira, março 14, 2013

O Brasil e uma explicação para aquilo que se é

O blog está à míngua. O tempo anda escasso. Tenho trabalhado em excesso, o que tem, consequentemente, impedido-me de escrever. As ideias estão presentes, mas as oportunidades são raras para que elas se materializem. As leituras estão emperradas. Já estou há mais de um mês com O Idiota, de Dostoiévsky, estacionado. Mas, há alguns dias atrás, lendo sobre os conceitos de Lacan e a educação, encontrei uma afirmação interessante sobre Contardo Calligaris, um psicanalista europeu que estudou a sociedade brasileira. O trecho me pareceu bastante esclarecedor:

"Contardo Calligaris (1992), uma renomado psicanalista lacaniano europeu, porém com bastante vivência da cultura brasileira, faz uma leitura interessante das nosssas fundações e dos seus reflexos na nossa subjetividade. Ele busca na história da nossa cultura, nas nosssas herenças mais longínquas, elementos capazes de escalarecer alguns de nossos hábitos e costumes, particularmente relacionados ao tratamento que damos às crianças e como concebemos a infância e a educação.

Segundo ele, a ocupação do Brasil pelos europeus se deu pela miragem subjetiva dos invasores de encontro ao paraíso, um lugar de riquezas, de gozo fácil e de felicidade absoluta. Tal miragem corresponderia à visada infantil de acesso pleno e irrestrito ao corpo materno: fonte de todos os prazeres, da satisfação de todos os desejos. A ausência de uma resistência significativa às miragens ensandecidas dos exploradores teria esmaecido a noção de lei, um interdito que pudesse colocar algum freio na sanha dos conquistadores, tal como a palavra do pai coloca limites para a criança.

Assim, a nossa herança cultural, nossas fundações, seria marcada principalmente por esse sonho primevo de felicidade e gozo sem limites que teria atravessado o tempo e estaria presente ainda hoje, direcionando nossa subjetividade.

Com efeito, reconhecemos facilmente entre nós o 'jeitinho brasileiro', expressão direta do esmaecimento da lei ou da disposição para burlá-la e transgredi-la, como se estivéssemos reencenando a chegada dos primeiros exploradores ávidos para usufruir a posse da terra e exauri-la, sem nenhuma restrição ou sendo de responsabilidade". 

Creio que essa leitura sob um viés lacaniano explique muita coisa sobre o nosso país tão propenso a burlar, a esmaecer os códigos reguladores da vida social. Está na psicologia de nossa formação. 

Introdução à psicologia da educação - seis abordagens. Kester Carrara (org.), in: A psicanálise lacaniana e a educação. Avercamp. 2004, p. 90

terça-feira, março 05, 2013

Uma elucubração sobre os dois primeiros capítulos de Gênesis


Os capítulos iniciais do livro de Gênesis são intrigantes sobre vários aspectos. Durante a história muitas discussões foram suscitadas em torno da origem, da autoria e da literalidade desse livro. Para a tradição, Gênesis teria sido escrito por Moisés - bem como o restante do Pentateuco. Todavia, conforme narra o último livro do Pentateuco, Deuteronômio, Moisés morreu antes que o povo entrasse na terra prometida (e antes de se concluir o seu ciclo narrativo). A teologia traditiva tem buscado explicar este fato de forma a atribuir a Moisés a autoria do livro das origens. Não há evidências internas (em Gênesis) que atestem que Moisés  seja o autor do livro. No que diz respeito aos aspectos científicos, não há uma explicação fechada, objetiva, corroborando com a autoria mosaica. As explicações conservam-se sob o aspecto da fé. O autor de Hebreus, afirma: "Pela fé, entendemos que foi o universo formado pela palavra de Deus, de maneira que o visível veio a existir das cousas que não aparecem" (Hb. 11.3). Ficando assim claro que a fé é a base propulsora que autentica a atividade criadora do divino.

Encontramos no primeiro capítulo muitos aspectos que não devem ser interpretados literalmente. Uma interpretação literal do texto traz prejuízos para a compreensão de modo consequente. Percebe-se, pelo menos no capítulo primeiro, muitos elementos metafóricos. O texto deixa nas entrelinhas que a narrativa é resultado da compilação de uma tradição. Enxergam-se (dentro do livro de Gênesis) vários blocos avulsos que dão a entender que não se trata de um único autor. É importante entender que a Bíblia é um livro humano, pois usa a linguagem humana, os caracteres literários humanos, os dramas humanos, o mundo humano. Para muitos, ela é um livro híbrido - com caracteres humanos e divinos. É inspirada, por isso, é divina; e usa elementos que são próprias da realidade e do mundo, por isso, é humana. Por isso ela deve ser lida e interpretada nessa perspectiva. A maioria daqueles que leem a bíblia de acordo com a tradição, busca interpretá-la sob a ótica literal. Tal fato se deve a uma espécie de medo. Entende-se basicamente que uma vez que se faça isso, a bíblia sofre algum tipo de prejuízo. Essa atitude é fruto de um desarrazoamento. Estriba-se no entendimento que os assuntos divinos precisam ser protegidos, advogados. Não creio que assim seja. 

Os capítulos iniciais sobre a criação, conforme posso notar com minhas limitações, é uma espécie de explanação dada para explicar muitos dos fatos sobre a realidade. Na verdade, trata-se de um poema cujo sentido é incluir por meio de símbolos e arquétipos uma resposta para o mundo: o céu, a terra, os mares, as estrelas, a existência do homem, as florestas. Ou seja, como é porquê tudo isso existe. Tudo isso está incluído nos fatos descritos no capítulo primeiro. Interpretá-lo literalmente, passa-nos a ideia de que Deus um dia resolveu brincar de “fazer o mundo”.

Seguindo esse mesmo raciocínio, observa-se no versículo 31 do capítulo 1, uma afirmação interessante: “Viu Deus tudo quanto fizera, e eis que era muito bom”. A Bíblia na linguagem de hoje diz que “Deus viu tudo quanto havia feito e tudo era muito bom”. Quero enfatizar aqui o fato de Deus “ver” e se “impressionar” com aquilo que fizera. Ou seja, o que fica patente é o fato de que o próprio Deus da criação “toma um espécie de susto com aquilo que criou”. É como se Deus não conhecesse os seus próprios poderes. Deus toma sustos com sua própria atividade criativa. Não há base filosófica para entender tal fato. Há uma coerência no ser de Deus, conforme entende a teologia. Seria aquilo que Parmênides afirma em sua filosofia: “Aquilo que é, é”. O ser só pode ser sendo. Se Deus é, mas não possui constância em ser, ele não pode ser. Se Deus sendo perfeito cria, mas sendo perfeito, assusta-se com aquilo que cria, perde o atributo da perfeição. Nisso vejo residir certa ilogicidade - como muitas são as ilogicidades da bíblia.

Já no capítulo 2.1-2, percebe-se em primeiro lugar a criação da história para sustentação do fato. Em suma: a história de Israel mostra que o sábado é “sagrado”. Deve-se necessariamente isso ao fato do mundo ter sido criado em 6 dias e ao sétimo (sábado) Deus descansou de Sua criação. Por que o sábado deve ser tido como santo? Todas as coisas não foram criadas “boas”? E se Israel, por ter na sua história sacralizado o sábado, tivesse criado a narrativa com o fim de sustentar a crença histórica; em outras palavras, criado a narrativa do Gênesis para sustentar a sua própria história, tratando-se especificamente da “história de um povo”? E o raciocínio que se estabelece é o de, que, uma vez que o próprio Deus da criação descansou nesse dia, por que não santificar esse mesmo dia? Claro, o que falo aqui não passa de uma hipótese gratuita, livre. Afirmo tais coisas por enxergar essas possibilidades no texto. Analisando sem romance esse fato e sob o prisma literário, a alternativa que nos resta é o da interpretação não literal desses dois primeiros capítulos.

Quase todos os povos orientais têm uma espécie de narrativa muito assemelhada ao texto de Gênesis, o que nos dá a ideia de que se trata um texto que é resultado do inconsciente coletivo. Houve muitos povos que também desenvolveram um gênesis: os egípcios, os babilônicos, os acádios, assírios, hindus e etc. Parece haver para os antigos uma espécie de mito, uma tradição que era passada de pai para filho e que era fruto de um entendimento histórico. Não havia ciência conforme entendemos hoje. Buscava-se interpretar o mundo por meio do mito e da religião. Com isso não quero dizer que os antigos estivessem errados no seu entendimento. Eram os recursos de que dispunham para responder a uma inquietação. Entendo que as escrituras são o resultado desse fenômeno, dessa mitologização interpretativa por parte dos antigos. Quero dizer que é preciso interpretar esses fenômenos com as ferramentas certas e as escrituras, também.


domingo, março 03, 2013

O poder e o carisma da Igreja

Na última semana, enquanto assistia ao noticiário que tratava da renúncia do papa e a nova movimentação dos cardeais da Igreja para a escolha de um novo pontífice, fiquei "especulando" sobre a imagem do Chefe da Igreja Católica: Josef Hatzing, o papa Bento XVI, sentado no trono que segundo a tradição representa o "o lugar-tenente de Pedro", cercado por mais de cem clérigos de todas as partes do mundo. Ao ver aquela cena mostrada pela Band News, não deixei de pensar no significado simbólico daquele gesto.

Por trás daquela cena estão séculos de uma instituição que possui quase dois mil anos de história. Uma instituição que existe em torno de uma dogma e que continua firme e forte a sua marcha. Não conheço outra organismo que tenha resistido durante tanto tempo. A Igreja possui bastante dinheiro - isso é inegável. O Banco do Vaticano é uma das entidades financeiras mais seguras e tradicionais do mundo. Mas não é isso que a torna forte. A Igreja possui um patrimônio invejável. No passado, chegou a ser dona de quase metade da Europa. Mas, também, não é isso que a torna uma instituição que esbanja viço.

Penso que a sua força esteja assentado em um poder invisível. O fato é que a Igreja consegue, diferentemente do protestantismo, por exemplo, preservar a sua unidade no meio da diversidade. Ela preserva o dogma, sua dimensão simbólica. E é uma instituição que vive de pregar uma promessa invisível. Sua maior riqueza está estruturada sobre um código não tangível, mas que é visualizado em elementos  materiais. Partindo desse paradoxo, ela diz ter as chaves do céu. O papa está assentado sobre o trono de Pedro. A hóstia é o próprio corpo de Cristo. O vinho da eucaristia é o sangue do Filho de Deus. Ou seja, a Igreja consegue criar símbolos para uma ausência e justifica a sua existência. 

Folheando o livro  Igreja - carisma e poder, de Leonardo de Boff,  livro que lhe rendeu excomunhão da Igreja - diz que a Igreja é resultado de dois momentos históricos: (1) deriva da comunidade dos primeiros cristãos, baseado no carisma, na fé e na caridade e que vai até 312 d.C; (2) que deriva da era do imperador romano Constatino (que se autoproclamou papa no Concílio de Nicéia, 325 d.C), que foi responsável pela burocratização da Igreja. Boff vai dizer que a partir daí:

A Igreja transformou-se num grande feudo dos imperadores, que dispunham dos cargos eclesiásticos e os tratavam à maneira secular. (...) O poder sagrado Igreja-instituição lançou mão de todas as artimanhas, até a falsificação de decretais e da falsificação do Testatmentum Constatini, para justificar as suas pretensões, o que confirma a tese de que o poder, seja qual for o signo sob o qual é exercido, seja cristão ou pagão, sagrado ou secular, segue imperturbavelmente a mesma lógica interna de querer mais poder, de ser um dinossauro insaciável e de submeter tudo e todos aos próprios ditames do poder. (BOFF, 1981, p. 81)

Boff afirma que essa instituição complexa, esse reino de poder, faz dos dogmas verdadeiras cartas jurídicas para balizar a conservação do poder. Assim, a Igreja do alto de sua complexidade é um organismo habitado por nuanças variadas - ela possui esse peso de ser mãe que acolhe - a caridade. Mas é também um império de burocratas, de politicagens. 

Não se sabe ainda quais foram as causas que levaram Bento XVI a renunciar. Saúde frágil? Escândalos sexuais por parte dos cardeais e dos padres? Não são tais "escândalos" que abalarão essa grande nave, que viaja no tempo, chamada Igreja Católica. Em outros momentos históricos ela já amargou crises muito mais intensas - cismas, rachas, escândalos com papas, alianças estranhas, mas isso não fez com que ela naufragasse. Ela ainda permanecerá por bastante tempo. Nos momentos difíceis de vanguardas dos últimos dois mil anos - tanto na fundação das universidades, ainda na Idade Média; e no crítico silêncio praticado pelo papa Pio XII, filmado por Costas Gravas no filme Amém, sobre o não posicionamento da Igreja quando do extermínio dos judeus pelos nazistas, a a Santa Sé esteve presente 

Pensei em tudo isso quando vi a figura frágil do papa sentado sobre um trono carregado por reverberações simbólicas; vestindo uma indumentária carregada de significado diante de centenas de cardeias. Mais que um encontro de despedida do papa, aquilo dizia muito sobre a história dos últimos dois mil anos aqui no Ocidente. Ali havia poder e um halo invisível de carisma. 

BOFF, Leornardo. Igreja - carisma e poder. Editorial Inquérito. Lisboa - Portugal. 1981. 230p.