quinta-feira, agosto 28, 2014

Diários de Motocicleta e "o outro lado do rio"

E não haveria ação humana se não houvesse uma realidade objetiva, um mundo como "não eu" do homem, capaz de desafiá-lo; como também não haveria ação human se o homem não fosse um "projeto", um mais além de si, capaz de captar a sua realidade, de conhcê-la para transformá-la. Paulo Freire in Pedagogia do Oprimido.

Há alguns sábados atrás eu assisti, pela terceira vez - talvez -, ao filme Diários de Motocicleta (2004), do brasileiro Walter Salles. Após ter visto o filme e refletido sobre ele, não consigo tirá-lo de minha cabeça. Não consigo me deslindar dos temas profundos e ao mesmo tempo pela beleza plástica das cenas, que têm uma preocupação de mostrar o continente sul-americano. O filme nos conta a história do jovem Ernesto Guevara, que mais tarde seria conhecido como "Che". 

Estudante de Medicina e filho de uma família de classe média argentina, Ernesto decide fazer uma viagem de moto ao lado do seu amigo Alberto Granado, repleta de metáforas políticas e existenciais que definiriam o seu futuro. Aquilo que no início era apenas um intento juvenil aventureiro, aos poucos vai mudando quando os jovens companheiros entram em contato com as mais destacadas e imorais explorações e misérias. Empresas estrangeiras se apropriam das riquezas minerais do continente e, para isso, exploram os trabalhadores que vivem em uma situação de penúria. São expulsos de suas terras. Ficam sem moradia. E são forçados a marcharem errantes de braços dados com a incerteza. Isso se dá, por exemplo, em regiões campesinas do Peru. As injustiças perpetradas contra os indígenas emociona. O drama de famílias que são separadas pela miséria, vai lapidando o olhar do jovem Ernesto. 

Um dos momentos mais bonitos e simbólicos do filme acontece quando Ernesto e Alberto conversam, após terem chegado a um lugar onde se internam pessoas leprosas. O lugar era cuidado por religiosas católicas. Havia o rio que se interpunha entre as pessoas que não tinham lepra e aqueles que eram portadores da enfermidade. O diálogo se dar da seguinte forma:

- Viu o rio? - diz Ernesto.
- Claro. - responde o seu amigo. Ao que Ernesto acrescenta:
- Ele separa os doentes dos sãos.

Mais tarde, quando os habitantes da comunidade ribeirinha resolvem fazer uma festa de despedida para os dois amigos que haviam auxiliado de forma fantástica os doentes do lugar, o jovem argentino diz as seguintes palavras: 

Apesar de nossa insignificância para sermos porta-vozes de vossa causa, acreditamos, e depois desta viagem com mais firmeza ainda, que a divisão da América em nacionalidades vagas e ilusórias, é totalmente fictícia. Constituímos uma única raça mestiça do México até o estreito de Magalhães.E, assim, me despindo de qualquer provincialismo, eu brindo pelo Peru. E pela América unida. 

Trata-se de um dos momentos mais bonitos do filme. É quando a opção, a escolha do jovem aventureiro se enquadra. É noite e Ernesto deixa a comemoração e sai para ver o grande rio. O amigo Alberto o segue. E aqui encontramos a decisão ontológica necessária. Fuser, como era chamado pelo amigo Alberto, pergunta: 

- Sabe onde está o barco? O amigo responde:
- Não, não estou vendo.
- Vou comemorar meu aniversário do outro lado. - completa o jovem Che.

Esta fala completa a sua percepção. E aqui notamos o compromisso histórico assumido em favor dos injustiçados, dos doentes, dos que não são. Florestan Fernandes costumava dizer que só existem duas posições em política: ou se está ao lado dos oprimidos ou se está ao lado dos opressores. A via do meio é a via da omissão histórica; é a via do pequeno burguês metido em seu medo crônico, em seu conservadorismo tacanho e reacionário. 

A escolha subjetiva se faz a partir de uma relação dialética com a realidade. Não se pode pensar em objetividade sem subjetividade. Os homens necessariamente, no dizer de Paulo Freire, atuam correspondentemente por meio da "relação dialética subjetividade-objetividade". O meu olhar se faz a partir da relação que tenho com o mundo objetivo. A reflexão libertadora acontece quando percebo a minha práxis, a minha prática, sobre a história a fim de que a minha ação seja capaz de romper a barreira entre opressor e oprimido. Ou como dizia Marx: "O critério de verdade é a prática". 

Quem não experimentou, visualizou ou testemunhou a contradição existente na sociedade, jamais sairá do subjetivismo e do objetivismo, como dizia Paulo Freire. O primeiro é a "objetividade dicotomizada da subjetividade"; e o mesmo fenômeno se dá com o subjetivismo. Ora, quem faz uso do objetivismo e do subjetivismo cai em um simplismo ingênuo, incapaz de reconhecer a contradição posta na história. Dizer que "o rio separa os doentes dos sãos" é identificar a "rachadura" que existe no mundo social. E mais tarde dizer: "vou comemorar meu aniversário do outro lado", é tomar uma decisão ontológica baseado na dialogicidade entre o objetivo e o subjetivo.

Quando penso nisso, entendo o porquê de muita gente ter raiva do socialismo, do marxismo ou do comunismo. Pois, estes sistemas entendem que existem leis que regem a materialidade. Que a realidade não é construída apenas com subjetivismos inconsequentes e apressados ou com objetivismos pragmáticos, apenas.

E, ao final do filme, encontramos a maravilhosa música do uruguaio Jorge Drexler, que tenho escutado como nunca nas últimas semanas. Há algumas semanas atrás corri doze quilômetros ouvindo repetidamente essa música. Chorei diversas vezes. E, assim, vamos treinando o nosso olhar e lançando os remos no lago. Abaixo a bela música - Al otro lado del rio.


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