quarta-feira, fevereiro 26, 2014

A violência nossa de cada dia e o processo de desumanização em nossas cidades

"As condições de vida na cidade grande e moderna criam condições que e necessidades específicas de sensibilidade e comportamento". Georg Simmel

Esta semana aconteceu um fato que me deixou perplexo. Viver em uma grande cidade como Brasília ou outra capital brasileira, com tantos problemas sociais, vai nos insensibilizando. Lamento isso todos os dias. Tanto é assim que tenho conversado com a minha esposa sobre a possibilidade de mudarmos da cidade projetada para ser a Capital do Brasil. Trata-se de uma possibilidade que pode vir a grassar com o tempo. As grandes cidades tornaram-se em espaços geradores de apartação do outro. De desconhecimento daquilo que nos faz humanos. É um processo em que os indivíduos, que partilham da mesma sociedade com outros indivíduos, ignoram os direitos de seus semelhantes. Nessa sociedade causadora de patologias e, que vive sob o signo da violência, o outro, se necessário, não deve ser considerado enquanto sujeito. O que vale é a truculência. Assistimos a tudo isso no trânsito, quando caminhamos pela rua ou quando estamos no metrô, como testemunhei outro dia. 

Pego o metrô todos os dias para ir trabalhar e voltar para casa. A qualidade do metrô aqui em Brasília é bem incipiente e amadora. Às seis da tarde, tentar entrar em um dos vagões da composição é uma luta, dependendo da estação em que se estiver. Pois aconteceu que o vagão em que eu estava, se encontrava com a lotação máxima. Era praticamente impossível entrar ali. Um brutamontes retesou os músculos e tentou abrir caminho a força para tentar entrar. Quando fez isso, ele acabou pisando no pé de um rapazote, que admoestou o "pitiboy". Imediatamente este disse, não medindo as palavras nem levando em conta as pessoas que estavam ali: senhoras, mulheres, crianças. "Vai tomar no c*! Tá maluco, filho da p*!" Os demais passageiros ficaram a olhar, estapafúrdios. O interlocutor do esquizóide antropófobo murchou no mesmo instante. Recolheu-se. Entrou em si. Talvez tenha até se sentido culpado por ter feito uma reclamação branda. Ao ouvir e ver aquilo fiquei a mirar o troglodita com cara de lutador de MMA. Rapidamente, larguei o Chesterton que estava lendo e fiquei pensando como a vida em sociedade é capaz de gerar cenas medonhas como aquela. Como os homens estão bestializados. Não se trata apenas de falta de educação. É mais que isso. É fenômeno que está para além da escola. Trata-se de uma força pujante e invisível que gera esse processo de animalização xenófoba, como se fosse um gás venenoso e embriagador.

E esta semana (para voltar àquilo que deu início a esta reflexão apressada), outra cena de barbárie - e esta com resultados mais trágicos - aconteceu por aqui. Em certo shopping de Brasília, dois sujeitos com comportamento canino decidiram urinar em uma parede externa do estabelecimento. Foram admoestados por um professor de educação física, de 27 anos de idade, que acabou sendo espancado covardemente pelos dois desleais calhordas - um com 20 e outro com 21 anos de idade. Segundo informações, o professor está em estado grave em um hospital da cidade, com um dos lados do corpo paralisado. Esse fato não me deixou de fazer pensar sobre como vivemos um processo avançado de selvageria e barbárie. De fato, já experimentamos um processo profundo e preocupante de desumanização. Ser homem não implica, consequentemente, ser humanizado. A grande missão do nosso tempo é buscar a humanização. E ser humanizado é levar em conta, necessariamente, os direitos e a condição do outro como ser humano.

Leandro Konder fazendo referência a Walter Benjamin, diz que "os habitantes das grandes cidades vivem bombardeados por 'choques', sob o impacto de experiências mais ou menos violentas, e acabam ficando um tanto 'anestesiados' ou 'insensíveis'(...)". É justamente contra essa insensibilidade que temos que lutar todos os dias. Existe um descarte agressivo contra a vida humana. Contra o direito do outro. Contra a possibilidade de solidariedade e respeito àquilo que é do outro.Mantenhamo-nos humanizados - ou pelo menos, busquemos nos humanizar.

domingo, fevereiro 16, 2014

Uma crônica inacabada sobre minha viagem a Pernambuco


"Ter pátria é ter razão para chorar"
Mia Couto

Decidi visitar a terra onde nasci. Hesitei por alguns dias. A dúvida surgiu, pois fiquei a pensar sobre qual seria o meio que utilizaria. Divaguei. Decidi, por fim, ir de ônibus. A decisão surgiu após uma caminhada. Fui a uma agência próxima de minha casa e comprei o bilhete. 36 horas na estrada, aboletado em um meio de transporte gerador de cansaço. A questão: "por que ir de ônibus?" Essa era a indagação feita pela minha esposa. Queria reviver momentos. Puxar os nacos adormecidos de experiências vividas de quando eu era criança. Peguei uma rota impensável e estúpida. 

               
Saí de Brasília, no sábado, dia 11 de janeiro, às 14 horas, com destino a Picos, cidade do estado do Piauí. Minha intenção era enxergar as entranhas de um Brasil esquecido, de um Brasil que vive imerso na letargia; queria visualizar a tessitura de uma porção do nosso país que não surge nas novelas da Rede Globo. Premeditei essas intenções pretensas e assim aconteceu.  
                 
O grande desafio de se viajar por muitas horas de ônibus é o cansaço resultante. A posição cacete. As minudências da letargia. As paradas em enxovias repugnantes. Banheiros fétidos. Comida ruim. Tratamento ordinário, dispensado por funcionários mal preparados. Acostumados a lidar com atropelos à clientela, olham-nos como se fôssemos bichos insignificantes que precisam de um favor.
                 
Foto tirada por mim em uma das cidades do Piauí
O Brasil é um país assentado em contrastes. É curioso perceber o Centro-Sul tão desenvolvido e o Nordeste tão atrasado, tão fincado em ignorância e superstições variadas. Há dez anos atrás fiz essa mesma viagem. Naquela ocasião, fiquei por 21 dias no município de Santa Luz, no Piauí, e de lá fui para Pernambuco. Dessa vez, passei pelos mesmos locais que passei daquela vez. Pouca coisa mudou. O ponto positivo está no fato de que as rodovias federais estão em ótimo estado. De Brasília, até a minha cidade, percorrendo mais de dois mil quilômetros, passando por cinco estados - Distrito Federal, Goiás, Bahia, Piauí e Pernambuco – tudo na mais perfeita qualidade. Penso que tenha sido resultado do PAC (Programa de Aceleração do Crescimento) dos governos Lula/Dilma. Todavia, observando como espectador comum, não divisei grandes mudanças na miudeza dos vários municípios pelos quais passei. Tudo na mais intacta inamovibilidade. Há, assim, uma homogeneidade no ontem e no hoje.
                 
Foto tirada por mim da região one fui criado
O Nordeste continua encimado em seu atraso interiorano. Fiquei impressionado com o Piauí. Cidades tacanhas, vilarejos incipientes; o chão gretado; a vegetação rala; rios mortiços; poços de água de um amarelo esverdeado a maior parte do caminho. Ao passar pelo interior de Pernambuco, tentei fazer uma malabarismo mental para arranjar um pensamento de como o povo consegue viver em região tão falta de oportunidades e recursos. Os homens da região vivem zonzos sem terem o que fazer. O brasileiro do Centro-Sul rico, alijado nas esteiras do progresso, antes de criticar as políticas sociais do governo, deveria visitar o interior do Brasil e sair do lugar comum. Existe uma ignorância do brasileiro com relação ao seu próprio país. Não conhecemos satisfatoriamente quem de fato somos e como a nossa história de saques e vilipêndios foi construída. Assim, penso que um dos exercícios mais éticos e cidadãos, de cada brasileiro, deveria ser conhecer o seu país antes de embarcar para a Disney ou Miami.
                 
Somos iludidos com o presente. Fazemos uma crítica sem critérios e sem conhecimento de causa. Nossa história foi construída em meio à violência. O interior do Brasil ainda nos faz lembrar uma Rússia czarista; uma sociedade firmada em compreensões medievais, alicerçada em tradições de outros tempos. Como tudo isso ocorreu? Por meio da violência e da rapinagem econômica. Quando me vem à mente a frase tão conhecida de Euclides da Cunha, autor de Os Sertões - “O sertanejo é antes de tudo um forte” -, passo a ser entendedor do que ele tentou exprimir em sentido amplo. Daqui de onde estou escrevendo essas linhas magras, excessivamente magras, contemplo um sujeito com uma enxada trabalhando no sol inclemente das dez e meia da manhã. Ou seja, o sertanejo arenga, cisma, desfere golpes contra a vida, numa tentativa de sobrevivência. A sua briga com a enxada é uma metáfora da própria existência. O Nordeste já foi a região mais rica do nosso país. Enquanto produzia cana-de-açúcar, sua importância econômica transferiu-se para outro lugar do país.
                
 A mídia cisma em mostrar o Nordeste do litoral, aquele que o mesmo Euclides da Cunha disse que havia uma separação do outro Nordeste do interior. Já estive nesses “dois nordestes” e é nítida a apartação criada pelo capitalismo.
                
Foto tirada do local onde brinquei boa parte de minha infância. A ressonância de tudo isso ainda vive dentro de mim.
 O outro dia assisti a uma palestra de Ariano Suassuna e uma fala dele me chamou atenção. Disse ele que é possível encontrar a Idade Média no Nordeste. Pude atestar isso em dois momentos: (1) enquanto atravessava o interior de Pernambuco e o interior do Piauí (mais naquele do que neste), constatei que cada cidade tem a imagem de um santo ou um padroeiro. Ou seja, existe uma forte resiliência do sertanejo à vontade do sobrenatural. A vontade divina é uma força geradora de temor. O sertanejo leva a sua existência conforme “deus quer”. O catolicismo colocou as suas garras no imaginário do povo e expeliu o veneno de uma superstição medieval, que domina e tangencia a interpretação do mundo. A religião forte balança a vontade do sertanejo. Em nome dela, ele faz romarias; recita falas; declama rezas a fim de amortecer os maus augúrios de um deus carrasco e cheio de dengos. (2) as cantigas. Ontem, enquanto ia para a cidade, tomei uma lotação e fui ouvindo a voz do povo com o propósito de me abeberar das ressonâncias sonoras dos pernambucanos. Na condução, alguém cantava uma espécie de canto triste, melodramático, um repente de dor, que falava de amores não realizados; o tema da melodia tratava de um sujeito que morria por ingerir álcool em excesso por causa de uma paixão não correspondida.
(...)

Escrito e não finalizado, dia 15 de janeiro, no Sítio dos Melos, região pertencente ao município de Vitória de Santo Antão, minha cidade natal, Pernambuco.

P.S. Outro dia encontrei um colega que há muito não via. Ele me indagou sobre as minhas férias. Quando contei sobre a viagem que fizera, ele disse que isso é coisa de pessoal de "esquerda", não deixei de dar uma boa risada.


domingo, fevereiro 09, 2014

"As veias abertas da América Latina", de Eduardo Galeano, algumas palavras após a leitura

"A história é um profeta com o olhar voltado para trás: pelo que foi, e contra o que foi, anuncia o que será" - Eduardo Galeano

Sempre tive a intenção de ler As veias abertas da América Latina, do escritor uruguaio Eduardo Galeano, um clássico sobre economia, história e política. O livro foi escrito no início da década de setenta, mas é "lamentável", como diz o próprio autor no posfácio para edição de 2010 da L&PM (que li), que ele continue "atual" em sua denúncia incisiva. Trata-se de obra que encontrou, ao longo de mais de quarenta anos, inúmeros desafetos. À época das ditaduras explícitas, a obra foi proibida em países como Uruguai, Chile e Argentina. Ainda ontem, li uma resenha de um blog da Veja, que falava da ocasião em que ex-presidente da Venezuela, Hugo Chávez, em 2009, presenteou Barak Obama, seu desafeto ideológico, com um exemplar de As veias abertas, autografado por Galeano. Aquilo gerou um celeuma nos Estados Unidos, guindando o livro para a lista dos mais vendidos em menos de 24 horas, na toda poderosa Amazon.

O jornalista, em seu forte tom de ojeriza, defenestrou o uruguaio. Chamou-o de "herbívoro" ideológico. Segundo ele, Galeano apenas afirma cataclismos em sua obra; põe o continente em uma posição de nanismo; é como se tivesse surgido para perder. O livro é viciado em seu problema de estima. E dizia que o Brasil hoje é o líder da região, exaltando a posição hegemônica do país, sem se importar com o resto do continente, como se não tivéssemos nada em comum. Sua posição era firme no sentido de ridicularizar as informações trabalhadas por Galeano e seu forte diagnóstico contra a exploração secular a qual a América Latina vem sendo submetida em mais de quinhentos anos de história. Seu asco ideológico, como se pode perceber, não enxergou méritos na pesquisa do uruguaio; não estava interessado em analisar o nosso passado comum e nossa condição de países periféricos; é como se o passado em suas dores de sangue não contassem. A resenha do jornalista em seu forte tom de mofa, até mesmo questiona o fato de Galeano, um escritor branco e de olhos verdes, tomar a dianteira e se arvorar a ser o porta-voz do continente. Não sei se se tratava de ignorância ou desonestidade intelectual.

O fato é que As veias abertas é um texto apaixonado e apaixonante. Apesar ter por intenção fazer a denúncia do estupro sofrido pela América Latina ao longo do seu curso histórico, o texto se mostra leve, repleto de metáforas, de construções que primam pelo valor poético. Ou seja, foge do hermetismo dos laureados intelectuais e acadêmicos alambicados, que gostam de enviesar sentenças a fim de serem admiradores como profundos e difíceis. O texto de Galeano, talvez, tenha alçado a perenidade pela simplicidade. A simplicidade aqui citada não passa pelo simplismo. Galeano mostra o quão respeitável foi sua pesquisa pela quantidade de fontes citadas. Ele não se limitou apenas com as traduções do seu país. Percebe-se de forma clara que ele viajou para os locais os quais citou. Tanto é assim que as citações que surgem no livro dizem respeito ao país da qual ele fala. Por exemplo, se ele fala do Brasil, utiliza Darcy Ribeiro, Celso Furtado ou Caio prado Jr. - e assim por diante.

A tese do livro é simples: Galeano mostra como a América Latina desde sua origem é refém da gana parasitária dos países europeus - primeiramente Portugal e Espanha; logo em seguida, Inglaterra; e nos dias atuais, Estados Unidos da América. O escritor nos revela como se deu o criminoso extermínio de civilizações como a asteca por Hérnan Cortés, espanhol cujo interesse era levar o possível ouro do México para a Espanha; maia e inca. O contato do homem pré-colombiano foi traumático. O europeu não trouxe apenas a ganância; trouxe também a peste, o sarampo, e tantas outras enfermidades desconhecidas pelos nativos. É contado ainda como as índias foram estupradas, violadas, pela lascívia impudica dos colonizadores.

Galeano revela ainda como se deram os ciclos econômicos do continente. O Brasil, por exemplo, desde o início sempre foi visto como uma mina que tinha que dar tesouros a Portugal. Tanto é assim que nunca houve a tentativa de desenvolvimento de uma economia interna por aqui. Tal fenômeno se alastrou pela América Latina inteira. Nenhum país teve o pleno desenvolvimento econômico. Todos deveriam exportar suas riquezas para enriquecer a metrópole. Portugal primeiramente viu que a cana-de-açucar era o produto lucrativo e, por isso, alastrou essa monocultura no Nordeste brasileiro, uma das regiões mais ricas do mundo em pleno século XVI. Tal fato, como alega Galeano, foi um tragédia para o Nordeste, pois segundo ele, uma região que vive da monocultura passa por grande ameaça ("O povo que confia sua subsistência a uma só produto, suicida-se" - José Martí, herói nacional de Cuba). Se a monocultura entrar em colapso, a derrocada é absoluta. Isso se deu com o Nordeste. Os holandeses conseguiram desenvolver técnicas mais apuradas de plantio e produção de cana-de-açucar e tiraram o monopólio de Portugal. A proximidade física com a Europa também privilegiou o sucesso dos holandeses. Com o fim do ciclo glorioso da cana-de-açucar, o centro econômico migrou para o Centro Sul do Brasil, o que fez com que o outrora faustoso Nordeste dos coronéis e dos engenhos, ficasse à míngua com suas superstições e o povo em estado de penúria.

Tanto é assim, que segundo Galeano, a Guerra do Paraguai foi um dos episódios de maior comicidade e tragicidade da vida do continente. À época em que o tacão hegemônico do capital havia migrado de pólo e deixado Portugal e Espanha, o continente caiu nas mãos de outro explorador mais ardiloso e esperto - a Inglaterra. O capitalismo em seu estágio evolutivo e fortemente desenvolvido na Inglaterra, que passava pelo sucesso de seu ciclo industrializante, "exportou" a ideia de "livre mercado". Como era o país mais poderoso da época, a Inglaterra mandava economicamente no mundo. O Paraguai havia conseguido desenvolver uma relativa autonomia econômica, a exceção do continente. Havia conseguido, por conta própria, firmar de forma competente o desenvolvimento de um mercado interno, uma indústria incipiente, mas que dava conta das demandas nacionais. Era um dos países mais prósperos do continente. Ou seja, não dependia da economia inglesa - e nem comprava os produtos industrializados da terra da rainha. Era uma ameaça. Outros países poderiam, também, fazer "o dever de casa" que o país havia feito, o que constituía um grande perigo para os ingleses. A Inglaterra procurava meios para colocar o Paraguai em sua zona de influência. A guerra foi a oportunidade de ouro que ela teve. Brasil, Argentina e Uruguai se uniram para lutar contra os paraguaios. A Inglaterra, por sua vez, financiou a guerra. Emprestou dinheiro aos três países. Como era de se esperar, o Paraguai perdeu o conflito. Teve boa parte de sua população dizimada; suas indústrias nascedouras arruinadas; sua oportunidade de despontar como país rico, mutilada; e pedaços de seu país, "saqueados" como despojos de guerra. O fato é que, ao final, os ingleses possuíam quatro vítimas - três países endividados e com a sensação de que eram "vitoriosos" e um outro completamente desmantelado, como se pode ver ainda hoje. 

Atualmente, o Estados Unidos exercem a sua influência sobre a América Latina. Suas garras de aço estão "enfiadas" na garganta do continente. Sua arrogância e sua interesse são extremos. Ele teve uma colonização diversa daquele que teve seus vizinhos. Seu crescimento se deu de forma grandiosa. Se apropriou de extensões de terra que no passado pertenceram ao México - mais de quarenta por cento do território mexicano. Suas multinacionais estão em toda parte. Sua necessidade pelo minerais do continente; sua ânsia por petróleo; sua força imoral; seu protecionismo exagerado. São defensores radicais do livre mercado, mas não permitem que os produtos dos outros países invadam o seu mercado. Semeiam bancos por todo o continente, mas proíbem que um cidadão americano deposite dinheiro em um banco que não seja americano. Foram os grandes financiadores da ditaduras do continente, projetos políticos esses que mataram milhões de cidadãos e deixou uma herança de atraso de reacionarismo conservador no continente.

O livro é de leitura obrigatória para todo aquele que deseja conhecer melhor a história comum do continente. Há mais coisas que nos unem do que nos separa. É por isso, que Galeano diz que o livro não perdeu a sua "atualidade" - infelizmente. Nesse sentido, as veias, os tecidos, os músculos, os sentidos continuam sangrando, derramando dor e uma agonia asfixiada. São por descrições como essas que o livro se mostra tão contundente e relevante. Com certeza, o jornalista que fez a crítica ao livro estava equivocado. Ou ele não leu o livro ou agiu como a má fé tão costumeira da direita, que nega a história, pois como diz Galeano: "Os meios de comunicação estão a serviço de uma visão conformista história".

quinta-feira, fevereiro 06, 2014

O anti-esquedismo nosso de cada dia

Li há pouco o artigo de opinião do jornalista  José Antonio Lima, da Carta Capital, sobre o medo do comunismo no Brasil. E gostei bastante do texto. Ele faz cinco apontamentos sobre o medo saliente, que ainda vigora por aqui, sobre uma suposta "invasão comunista" em nosso país tão combalido. Existem alguns elementos que, com certeza, corroboram para a manutenção e sustentação desse estado de coisas. Afinal, somos um país imensamente conservador. Por aqui, historicamente, foi feito um trabalho de desqualificação dos movimentos sociais. Um forte empreendimento da mídia, a serviço dos interesses daqueles que estão no poder, para que os trabalhadores não entendam a sua condição.

Não houve na história do Brasil revoluções sangrentas. Conflitos dramáticos. O nosso Estado sempre esteve a serviço das elites. Como diz Caio Prado Júnior, o nosso país não passou por "rupturas" que trouxeram compensação e liberdade para os pobres. E, atualmente, existe uma estandardização, uma homogeneização forçada por parte do capital. O "homem burguês", nomenclatura sugerida por Leandro Konder em seu excelente livro "Os sofrimentos do homem burguês", fazendo uma referência intertextual explícita ao famoso romance de Goethe, "Os sofrimentos do Jovem Werther", é um sujeito domesticado, docilizado, por uma falsa impressão de que é livre. Sua função é consumir mercadorias, que são produzidas para gerar expectativas e fetiches. 

A onda anti-esquerdizante que ultimamente tem acometido o Brasil é resultado da ausência de um acerto de contas com a nossa história, como sugere o colunista da Carta Capital. Costumo acompanhar os comentários em fóruns, em blogs, em textos de opiniões, em vídeos do Youtube e tenho me impressionando com o reacionarismo raivoso que vigora em nosso país. O anti-esquerdismo se vincula a um antipetismo, que leva a rechaçar qualquer referência às ideias de Marx. Tornam-se cada vez mais famosos conservadores radicais e fascistas como Olavo de Carvalho e Rachel Sheherazade. O olavismo está cada dia mais forte. Seu famigerado livro, "O mínimo que você precisa saber para não ser um idiota", vende como água. Outro livro, "Esquerda Caviar", de Rodrigo Constantino, tem feito salivar a boca dos empedernidos radicais. Ou ainda "Porque virei à direita", livro cuja propaganda alardeia o porquê de três "intelectuais" (João Pereira Coutinho, Luiz Filipe Pondé e Denis Rosenfield) terem deixado a esquerda. Os argumentos de obras como as citadas não estão pautadas em uma análise dialética dos fatos, criticamente, historicamente. A arma da esquerda é a análise pautada no materialismo histórico dialético; a, da direita, a análise moral e cultural da história. O corte é feito em cima de supostas situações causadoras de constrangimentos para a esquerda como, por exemplo, os milhões de mortos pelo regime stalinista; o regime cubano; o muro de Berlim; o governo da Coreia do Norte, etc. Ou seja, a estandardização é absoluta. Não se quer saber se tais eventos estão ligados à teoria de Marx. Joga-se fora a criança e a água suja da bacia. Não se separam os fatos. 

Protesto dos chamados black blocs, que são os filhotes da pós-modernidade
Cada vez mais vemos nascer um radicalismo perigoso que isola a proteção aos direitos sociais, os códigos internacionais que explanam os direitos humanos e que nos tornam ainda humanos - e próximos um dos outros. A mídia tem feito um trabalho de criação de um espírito de hecatombe. É como se vivêssemos no pior dos mundos. É como se já experimentássemos aquele evento bíblico-mágico: o armagedom. Vivendo em cidades cada vez mais cheias e carregadas de problemas, o homem burguês sofre com a própria sociedade que ele ajuda a criar com o seu sangue. Não percebe que a mudança desse estado só é possível com a transposição ou a superação desse estilo de vida que foi criado. Em nosso país não é diferente. O grande problema é que nos aproximamos cada vez mais de um tipo de radicalismo perigoso: que é o fascista, aquele que não é capaz de reconhecer o outro como um igual. Aproximamo-nos cada vez mais da barbárie.

O ano passado vi esse trio em frente ao Palácio do Planalto com um cartaz que rezava: "Intervenção Militar já!! O Brasil exige ordem e progresso". Nada mais perigoso: unir militarismo e positivismo.
Somos uma democracia frágil. A burguesia brasileira sente-se atingida com os governos de Lula e Dilma, pois sempre idolatrizou o modelo dos países centrais - não quero fazer defesa ao governo do PT, pois entendo que o Partido dos Trabalhadores se afastou em muito de sua agenda histórica. Por sua vez, a classe média brasileira é admiradora daqueles que ditam as regras do jogo. É aquilo que Paulo Freire costumava dizer: "O sonho de todo oprimido é tornar-se opressor". A ditadura militar fez um trabalho de domesticação muito eficaz em nosso país, criando um espírito anti-esquerdista. Desmobilizou a nossa resistência à opressão. Criou um medo falso de que comunista é aquele que comia criancinhas; eram sujeitos feios e barbudos; e que trariam a desordem ao mundo. Em seu delírio cego para rechaçar as intenções políticas de João Gourlart, que era um suposto comunista para eles, acabou por criar um espírito de desconfiança ante tudo aquilo que se diga de esquerda. Hoje ainda temos essa imagem. O PT sempre foi associado a isso, apesar de não ser um partido comunista. O PT é, no máximo, aquilo que poderíamos chamar de partido social-democrata. Suas intenções iniciais talvez tenham sido "vermelhas", pois foi um partido que surgiu do seio dos movimentos sociais. E uma das "broncas" da classe média é, justamente, a associação do PT com comunismo. Ela não consegue aceitar esse fato, sem atentar para a lavagem cerebral histórica da qual é vítima.

Somos ainda uma sociedade confusa. A mídia e as redes sociais ajudam construir essa atmosfera de desordem. Não sabemos nos reconhecer. Existem muitas opiniões que saltam do lugar comum. E todas elas servem para alimentar aquilo que mais nos destrói: a nossa ignorância histórica. A nossa falta de visão para enxergar de onde vem o problema - a saber, do próprio capitalismo. Socialismo, conforme pensado por Marx, não é ditadura, é humanismo, bom senso e equidade. E como precisamos disso em nosso país!

domingo, fevereiro 02, 2014

Rosa Luxemburgo - algumas palavras

"Ser humano significa lançar, se for preciso, toda sua vida, alegremente, 'sobre grande balança do destino' [Goethe], mas, ao mesmo tempo, alegrar-se com cada dia de sol, com cada bela nuvem". 
Rosa Luxembugo, in Carta a Mathilde Wurm, Wronke, 28 de dezembro de 1916

Rosa Luxemburgo ainda é pouco conhecida em nosso país. A efervescência elétrica de suas ideias e sua atuação militante são ainda desconhecidas por muitas pessoas interessadas no pensamento político do século XX. Rosa tem um importância capital para as ações, principalmente, que começaram a ser gestadas a partir de sua morte, em 1919, na Alemanha. Caso tivesse obtido resultado positivo a Revolução Alemã, de 1918, talvez o mundo não tivesse conhecido um flagelo demente como Hitler.

Analisando a vida de Rosa a partir da leitura do livro Rosa Luxemburgo - Vida e obra, de Isabel Maria Loureiro - uma das grandes autoridades brasileiras no pensamento da filósofa e revolucionária -, é possível atestar o dinamismo revolucionário da polonesa, que se tornou doutora aos dezenove anos de idade; casou-se com um alemão como estratégia para conseguir a cidadania alemã para participar dos embates do momento histórico daquele país completamente esfacelado, humilhado e dilacerado pela guerra ; que não fugia de participar ativamente dos embates da luta pelo comunismo na Europa nas duas primeiras décadas do século XX. 

Rosa era uma mulher de uma sensibilidade profunda. Lendo uma de suas cartas, encontradas no livro de Isabel Loureiro, pude perceber o quanto a fundadora do Partido Comunista Alemão possuía uma intuição poética rara. A carta foi escrita à sua amiga Sonia Liebknecht, pela ocasião do Natal de 1917. Rosa estava presa. Todavia, os seus sentidos estavam despertos e livres: ela nota o pigarro do guarda, que "dá alguns passos lentos para desentorpecer as pernas". Ela diz que o momento era singular, estando "deitada", "sozinha", "enrolada nos véus negros das trevas", "do tédio", "da falta de liberdade", "do inverno". Todavia, ela sentia uma alegria incomensurável; e ficava perscrutando, à cata de explicações para aquilo que sentia; e não encontrava nada; o sorriso tinha que ser dirigido para algum lugar e ela acabava rindo de si mesma.

Outra descrição de lhana beleza é reflexão que ela faz dos sofrimentos de alguns búfalos que foram trazidos da Romênia e que perderam a liberdade, assim como ela. Ela escreve assim: 

"Outro dia, chegou uma dessas carroças, puxada não por cavalos, mas por búfalos. Era a primeira vez que via esses animais de perto. São mais fortes e maiores que nossos bois, têm cabeça chata, chifres recurvados e baixos, o que faz com que sua cabeça, inteiramente negra, de grandes olhos meigos, se pareça com as dos nossos carneiros. Originários da Romênia são um troféu de guerra... Os soldados que conduziam a carroça diziam ser muito difícil capturar esses animais selvagens e ainda mais difícil utilizá-los para carregar fardos, pois estavam acostumados à liberdade. [...] Há alguns dias, portanto, entrou no pátio uma dessas carroças cheias de sacos. A carga era tão alta que os búfalos não conseguiam transpor a soleira do portão. O soldado que os acompanhava, um tipo brutal, pôs-se a bater-lhes de tal maneira com grosso cabo do seu chicote que a vigia da prisão, indignada, perguntou-lhe se não tinha pena dos animais. [...] Os animais deram finalmente um puxão e conseguiram transpor o obstáculo, mas um deles sangrava... [...] Durante o descarregamento, os animais permaneciam imóveis, esgotados, e um deles, o que sangrava, olhava em frente com uma expressão no rosto negro e nos meigos olhos de criança em prantos. Era exatamente a expressão de uma criança que foi severamente punida e que não sabe por qual motivo nem porque, que não sabe como escapar ao sofrimento e a essa força brutal... Eu estava diante dele, o animal me olhava, as lágrimas saltaram-me dos olhos, eram as suas lágrimas. Ninguém pode ficar mais mais dolorosamente amargurado com a dor de um irmão querido do que eu, na minha impotência, com esse sofrimento mudo. Quão longe, inatingíveis, perdidas as pastagens da Romênia, suculentas e verdades, belas e livres! Como tudo era diferente, o Sol que brilhava, o vento soprando, os belos cantos dos pássaros e o melodioso chamado do pastor. E aqui, esta cidade estrangeira, horrível, o estábulo sombrio, o feno mofado, repugnante, misturado com a palha apodrecida, os homens desconhecidos, assustadores, e as pancadas, o sangue que corre da ferida aberta... Oh! meu pobre irmão querido, aqui estamos os dois impotentes e mudos, unidos na dor, na impotência, na saudade".
Rosa discursando para operários

Talvez, aqui, Rosa pressagiasse em dimensões mais atordoantes os sofrimentos as quais os nazistas impingiriam aos judeus nos campos de concentração. Talvez, o búfalo sirva de metáfora para todos aqueles que padeceram com os vários e diabólicos totalitarismos inexplicáveis e injustificados. Penso que percepção de Rosa no contemplar desse evento com o búfalo, declare aquilo que foi a sua vida. Hannah Arendt em seu livro Homens em tempos sombrios, cuja finalidade é estudar a personalidade de homens notórios, diz que existem inúmeros "mitos" e "lendas" em torno da figura emblemática de Rosa Luxemburgo. "Entretanto, o que não cresceu foi uma outra lenda - a imagem sentimentalizada da observadora de pássaros e amantes de flores, uma mulher de quem os carcereiros se despediam com lágrimas nos olhos, ao deixar a prisão como se não pudessem continuar a existir sem se entreterem com essa estranha prisioneira que insistira em tratá-los como seres humanos".

O socialismo de Rosa primava pela autogestão das massas. Para ela, a experiência histórica é o único mestre a que se deve prestar atenção. E esse mestre nunca falha. Ou seja, as massas aprendem com seus próprios equívocos, avanços e recuos; o movimento dialético dita a ação a ser tomada. Rosa, nesse sentido, destoa do centralismo leninista, que entendia que as decisões da ditadura do proletariado brotavam do núcleo duro do partido. Rosa, por sua vez, defendia um "socialismo conselhista". A burocracia do partido criava uma torre de prepotência por parte de alguns líderes metidos a supostos revolucionários. E aqui cabe uma pergunta: o que ela diria do stalinismo? 

Todavia, a luta pelo socialismo na Alemanha não foi fácil. Grupos paramilitares e reacionários brotavam como erva daninha. Entre eles se sobressaíam os ultranacionalistas e clandestinos Freikorps, cujos principais líderes foram cooptados por Hitler para formar sua tropa canina particular, a SS. Rosa foi detida e covardemente assassinada em janeiro de 1919, juntamente com o seu companheiro de luta Karl Libknecht. Seu corpo foi jogado em um rio das proximidades. Todavia, os restos mortais de Rosa foram encontrados somente em julho daquele mesmo ano. A morte Rosa e a impossibilidade de construção do socialismo na Alemanha, representa a vitória do nazismo de Hitler.

Analisando a epígrafe com a qual abri este texto magro, entendo, a partir da leitura que fiz do texto de Hannah Arendt e Isabel Loureiro, que Rosa Luxemburgo era uma mulher de espírito livre. Ela poderia ter abraçado qualquer causa. Costumava dizer sobre si mesma, como quem dá um sorriso meio sério, meio de brincadeira, que nascera para "cuidar dos gansos". Ela mesma era uma "águia", como Lênin a denominava. E assim, sentiu-se atraída pelo socialismo que, segundo ela, criava a necessidade de "autodisciplina interior, maturidade intelectual, seriedade moral, senso de dignidade e de responsabilidade, todo renascimento interior do proletário". Ainda dando continuidade a esse pensamento, ela entendia que "com homens preguiçosos, levianos, egoístas, irrefletidos e indiferentes não se pode realizar o socialismo". Refletindo sobre essas palavras - e analisando a situação atual do nosso país - quão aquém estamos dessa realidade A existência sob o capitalismo, tal qual vivemos, embrutece-nos, cerceia a capacidade da solidariedade; fragmenta o nosso zelo moral e nos torna em cínicos individualistas. Os movimentos que vemos se arrastando pateticamente pelas ruas desde junho do ano passado são, na verdade" caricaturas de revolução. Uma coletividade cínica, individualista, sem conteúdo, sem programa ideológico, gera apenas ativismo inconsequente, sem sequer, fazer cócegas sistema que se mostra cada vez mais sólido.