quarta-feira, janeiro 27, 2016

Sobre "O sal da terra" (2015)

"Somos um animal muito feroz... Somos uma violência extrema, de verdade. Nossa história é uma história de guerras"
Sebastião Salgado

O ano passado, fiquei desejoso de assistir ao documentário O Sal da Terra, que passou pelas salas do Espaço Itaú aqui em Brasília. A produção saiu de cartaz e eu fiquei a lamentar. A excessiva exigência das horas me impediu de de dar cabo às minhas intenções. Trata-se de documentário baseado na obra de Sebastião Salgado.

Esta semana eu consegui efetivar esse desejo aquecido pelo tempo. E não me decepcionei. Gostei do que presenciei. É uma produção que delineia num fluxo cronológico a carreira do premiado e conhecido fotógrafo mineiro. Salgado é um nômade. Já viajou praticamente pelo mundo todo. Sua técnica (fotografias em preto e branco), aliada a uma sensibilidade poderosa, cria quadros de estetização intensa. Paisagens, secas, dramas humanos, costumes indígenas, animais, tudo é imortalizado em um clique, que acaba por se transformar em uma obra de arte. 

O documentário filmado por Juliano Salgado (filho do fotógrafo) e pelo premiado diretor alemão Wim Wenders, coloca Salgado diante de sua obra, comentando boa parte dela. Assim, o diretor comenta desde as fotos que fez na América Latina (Bolívia, Equador, México), em Serra Pelada, ainda na década de oitenta, ao extermínio étnico em Ruanda e na antiga Iugoslávia; ou ainda tece observações acuradas sobre o olhar de um gorila. 

O momento que gera emoção é quando Salgado comenta o que viu e sentiu no Sahel, antiga região da Somália, na década de oitenta. A fome como uma dizimadora; como uma agente cruel e violento, a diminuir seres humanos a carcaças imprestáveis e inanimadas. O testemunho do massacre em Ruanda, resultado do conflito entre tutsis e hutus (que pode ser visto no filme Hotel Ruanda), ocorrido em 1994, também marca o fotógrafo. Nesse conflito covarde, um dos maiores do século XX, quase 1 milhão de pessoas morreram à vista da comunidade internacional. Daí surge a tese, segundo o próprio Salgado, que o ser humano é um "animal muito feroz". A sua face cruel faz avançar a injustiça. 

Essa tese é contraditada pela recuperação das matas da fazenda da própria família. A região que parece ser uma espécie de metáfora para a crença de Salgado, teve sua densa mata Atlântica arruinada pela exploração irresponsável e despreocupada pela própria família do artista. Até mesmo os riachos que passavam pela propriedade desapareceram. Todavia, houve um movimento do próprio Sebastião para replantar dois milhões de árvores na propriedade para restabelecer as antigas características do lugar. E é justamente nessa crença, nessa possibilidade de reversão do caos; dessa capacidade de restabelecer à vida aquilo que fazia grassar apenas a esterilidade, que Salgado ver um afluxo redentivo para o ser humano. Hoje, a atinga fazenda foi transformado em um parque ecológico. 

Trata-se de um documentário muito bonito. As fotografias que aparecem no filme, criam paroxismos para o dilema humano. Quem somos nós? Por que somos tão cruéis, mas tão encantadores? Esse dualismo cria uma teologia do desconhecido e da incerteza. A técnica em preto e branco torna mais patente uma metafísica sombria. Impossível olhar as fotografias e não se abismar; impossível não descolorir nossas arrogâncias, nossa crença no progresso, nossa vaidade presumida de que somos a coroação da matéria criativa do universo. 

Assim, o documentário nos aponta "a violência extrema" das obras humanas e sua pátina caótica de injustiças, mas ao mesmo tempo nos apresenta o amparo poético de uma perspectiva fundada na metáfora do "replantio" de nossa história. 


Nenhum comentário: