sexta-feira, abril 22, 2016

Algumas impressões sobre "Madame Bovary", de Flaubert

Ler Madame Bovary era um projeto existente desde o final do ensino médio. Recordo-me das aulas de literatura. Das onipresentes citações sobre a importância da obra monumental de Flaubert. Cheguei a comprar uma edição ordinária em um sebo. Esqueci-a no fundo da estante. Via o projeto como algo distante. Até que no mês de fevereiro deste ano fui à Livraria Cultura e comprei a excelente edição da Penguin/Companhia das Letras. Pensei comigo em tom profético e peremptório: 'Agora você não me escapa!"

Iniciei a leitura com um senso de reverência indescritível. Precisava me conectar a um mundo de idealismos. Era uma ação nobre aquela que estava a executar. As quase quinhentas páginas com tradução primorosa. O papel macio e resguardar em suas entranhas um cheiro lascivo. A grande expectativa em torno do que acharia pela frente. Emma Bovary era uma espécie de fada. Tentava erguer a curiosidade e construir, por meio de conjecturas, os caminhos determinantes da narrativa. Cheguei a assistir a um filme tentando entender os desdobramentos da história. O filme serviu apenas para recriar o cenário, a fotografia e o espaço romanesco. Foi ineficiente. A prosa de Flaubert é grande demais para caber em uma película. 

De fato, o romance é tudo aquilo que esperava que fosse: grandioso em todos os aspectos. Não poderia ser diferente. Flaubert é um minucioso estudioso dos costumes da sociedade do seu tempo. Difere de Balzac, por exemplo, que também era um cronista poderoso. Este parece ser mais caudaloso e recriador de consensos; aquele, por sua vez, é insubmisso, cortante, engenheiro habilidoso de uma prosa jornalística, que mais insinua do que afirma certezas. As frivolidades e fatuidades da burguesia são trabalhadas com hiperbólica ironia. A avareza de alguns personagens denuncia a transformação social por que passa a alma do homem sob a dinâmica sociedade capitalista. A crença profunda no cientificismo e no progresso da técnica são resultado da visão otimista de que o homem estava transformando a natureza naquele presente histórico, como fica expresso pelo personagem Homais. O diletantismo de alguns personagens como, por exemplo, Léon, um dos amantes de Ema Bovary. Ou ainda, o mundanismo de um Byron, o comportamento selvagem e inconsequente de um dândi como Rodolphe.

Gustave Flaubert (1821-1880)
A heroína Ema Bovary, casada com Charles Bovary, um modelo de sujeito passivo, mas de coração bondoso, construído para provocar no leitor uma fina e sensível compaixão, é estraçalhado pelos desejos incontidos e calculistas de Emma. A personagem Ema instila no leitor (pelo menos em mim foi assim) uma dupla sensação: (1) ela é culpada pela desgraça que acomete o destino de sua casa e o destino do seu marido Charles. É isso que Flaubert quer nos fazer crer em um primeiro momento. Ema é uma personagem complexa. Espera-se dela como mulher, pelo menos, um ordeiro respeito à figura do seu bom marido; o papel da boa mãe. (2) Emma é culpada. Parece-me que neste ponto, Flaubert constrói a tese de que reside no mundo feminino a susceptibilidade que impele à fantasia, ao desvario, à irracionalidade. Em suma, Emma é culpada. É traidora. É destruidora de si e da vida de seu marido. Como naquela passagem bíblica sexista de Provérbios: "Mulher virtuosa, quem a achará?" (31.10). A personagem destoa do modelo perfeito. Não é "virtuosa". É traidora. Alimenta-se de cálculos, de perfídias, de enganos; deixa-se levar por uma franqueza: busca encontrar nos amantes a segurança de que necessita. É forte por trair, mas, ao mesmo tempo, é fraca por ser romântica em excesso e deixar aflorar o sentimentalismo feminino.

A heroína soçobra ante o seus desejos. Fica cega. Ignora a presença de Charles. Fascina-se com a expectativa de uma vida de prazeres e luxos. Arruína-se no plano espiritual e no plano material. Contrai dívidas. Entendia-se da vida aldeã. Procura formas de ocultar a sua realidade e projeta o dinamismo da vida citadina. Mora em um vilarejo, mas é como se vivesse em Paris. Há uma insatisfação em sua existência. Ela busca fugir da sensação claustrofóbica em que havia se transformado o seu casamento. Emma anuncia a mulher insubmissa, não dada às convenções sociais. Suplanta o determinismo social que encurralava as mulheres, colocando-as numa posição servil. 

A prosa de Flaubert, nesse sentido, é revolucionária. Quando escreveu o livro ainda não era o gigante, o sujeito respeitado que se tornou depois. Possuía pouco mais de trinta anos. Morava com a mãe em um subúrbio. Era um sujeito de poucas posses. Não gozava de nenhum prestígio. Escrevia textos de valor incerto. Seu método de trabalho era de um estoicismo impressionante. Trabalhava um número exato de horas. Escrevia um número exato de páginas diariamente. Demorou mais de cinco anos para escrever a obra monumental. Flaubert anunciava o moderno. Emma personifica o descontentamento; o drama metafórico que anuncia uma sociedade veloz - a linha férrea, o jornal, a eletricidade. E Emma é esse ponto de inflexão que gera "desconforto", a visão do novo, de um novo que possui uma força atordoadora.




segunda-feira, abril 18, 2016

Quando andamos para trás...

É inadmissível que trabalhadores, pessoas que acordam cedo, pagam seus impostos, lutam por um país mais justo, admitam esse palco farsesco que se presenciou na noite de domingo. Chegamos ao fundo do poço de nossa infâmia, de nossa inanição moral e intelectual. Como bem enfatizou Jean Willys: "Uma Casa formada por analfabetos políticos"; uma Casa liderada por um mafioso, capaz de arregimentar como feiticeiro o baixo clero e prometer-lhes o vil metal que quebranta toda possibilidade ética, e  julgar e decidir o destino de um país com mais de duzentos milhões de pessoas. Ou como disse outro deputado do Psol: "Uma Casa presidida por um gângster". Não existe pior melancolia, pior ressaca existencial do que esta. A nossa fauna rupestre de mentes tacanhas, inflamados pela violência; legalistas que invocam deus, torturadores, assassinos, cafetões, oportunistas, párias ideológicos, infames, esquisoides, mandriões farsescos, finórios de carteirinha; que homenageiam "corretores de imóveis", "o filho", "o cachorro", "os médicos", mas que não embasam o voto de acordo com as finalidades do debate; esse exercício seria impossível para alguns, pois o baixíssimo capital cultural não permitiria. Como bem afirmou o jornal argentino Página 12, um parlamento formado por "escravocratas", filhos e herdeiros da casa grande. Uma aliança corrupta, firmada na luxúria ménage à trois entre a mídia golpista, setores atrasados da política nacional e das elites nacionais e admitida pela servil e ignorante classe média.

Os deputados que votaram pelo "sim" sabem o querem: fazer parte da composição do novo governo que será montado de forma ilegítima. O bolo já foi fatiado. Os ministérios e secretarias já foram fracionados. Eles foram para o plenário com os conchavos já montados. Aproveitaram a noite para aparecer no telão, talvez, numa das poucas oportunidades que terão na vida política. Nos dias normais, essas figuras se escondem no submundo da Câmara. Fazem migrações e engendram negócios espúrios contra o povo.

O que não é aceitável é vê trabalhadores coadunando com esse "show" de horrores. Quem está sendo violado, estuprado, é o Estado Democrático de Direito; os direitos trabalhistas; a nossa rala e inconsistente democracia; as conquistas sociais para os grupos olvidados deste país; a dignidade dos negros, índios, mulheres humildes, analfabetos, crianças e adolescentes; a comunidade LGBT, os quilombolas, os deserdados e desesperançados; aqueles que dependem do SUS. Aqueles que disseram "sim" não votaram pelo povo, pela justiça. Votaram pelas suas famílias bem assistidas, que comem todos os dias, que quando passam mal vão a um hospital particular; que estudam nas boas escolas privadas do país. Como diria o velho Marx "a história se repete como farsa".

Chegará o dia que muitos trabalhadores, que firmaram posição contra o governo, ludibriados pela mídia, arrepender-se-ão da esparrela em que se meteram, do projeto criminoso que apoiaram. Se eles soubessem os conchavos que estão sendo costurados nas masmorras do Congresso Nacional contra os trabalhadores, sairiam às ruas para que mais da metade da Câmara e do Senado acertasse contas com a justiça, para que Dilma não fosse vítima dessa encenação burlesca. 

Uma digressão

Historicamente, o Brasil sempre foi um país dividido. As imagens que alimentamos da política e das relações sociais servem para mostrar o quanto a nossa sociedade se pauta pela violência em todos os sentidos. E essa violência é usada para estabelecer conexões com a vida social. O Brasil ainda não rompeu com os efeitos da casa grande e da senzala. Então, muitos setores da sociedade, principalmente, a classe média, principal agente de reificação do “status” das elites, é a cimentadora dessas contradições. Existem dois problemas nesse sentido: 

(1) ela é vítima de sua própria ignorância. Suas pretensas vantagens não a tornam em uma entidade autônoma dentro da sociedade de classes. Ela também é explorada. Vende a sua força de trabalho. Ocupa determinados cargos do alto funcionalismo público; algumas profissões liberais como a de advogados, médicos, dentistas etc. Acham-se “livres”, todavia, esses indivíduos não fazem parte da dança do grande capital, necessariamente fator de relação nas grandes corporações.

(2) Alguns setores, arrimados na violência, fazem escolhas alienadas, ou seja, se tornam algozes. Esses grupos ostentam signos de “status”. Gostam de exibir determinados privilégios. Usam a violência como mecanismo de orientação social – por isso, o apoio à redução da maioridade penal, desejo que o país adote a pena de morte, o apoio a pilantras nazistas como o Bolsonaro etc e todo tipo de ação que leve ao não empoderamento dos mais necessitados. Têm raiva da diversidade social, do diferente. Criminalizam as políticas sociais. Chamam os programas sociais de assistencialismo, por entenderem que “a força vem do trabalho”, todavia, não sabem que o “trabalho” de que falam é o trabalho alienado. Chamam governos progressistas de populistas, um discurso que faz parte do ideário das elites da América Latina. Têm raiva dos índios, dos negros, das mulheres humildes, da comunidade LGBT, dos sem-terra, dos sem-teto, dos necessitados plurais do nosso país. A classe média paulista, por exemplo, entregou o que tinha de ouro em 1932 e 1964, para que o país enfrentasse “a ameaça vermelha”. Todavia, quando olho para isso, não consigo deixar de enxergar o duplo caráter de que falei acima – a ignorância, fruto da alienação, leva, necessariamente, ao chancelamento da violência e do obscurantismo.

Estou triste e decepcionado, mas sereno. Sou sabedor de que a história é resultado da luta de classes; que não existem lances fáceis e gratuitos. A dialética da história não nega os seus movimentos.

"A solidão da América Latina", discurso de Gabriel García Márquez na Academia Sueca - texto atualíssimo. Faz-nos refletir sobre a farsa de ontem.

Após o episódio patético promovido pelos deputados federais no dia de ontem, que se tornou piada nas principais mídias do mundo, lembrei o discurso de Gabriel García Márquez, ganhador do prêmio Nobel em 1982. Seu inspirado discurso para a Academia Sueca é uma revelação urbi et orbi da realidade mágica do mundo latino-americano, de suas lutas, dos estupros sofridos e pela riqueza fascinante da região. Recordo que a primeira vez que o li, fiquei boquiaberto dada a beleza e a eloquência. Vale ler! É um texto com valor sagrado. Sua beleza emula sentimentos acerca da esperança, das utopias que podem ser fecundadas. O escritor colombiano, autor de Cem anos de Solidão e o Amor nos tempos do cólera, (dois dos livros mais importantes que já li), foi uma das figuras mais importantes da história do continente - e certamente continuará a ser. Leiamos:

Antonio Pigafetta, navegador florentino que acompanhou Magalhães na primeira viagem em volta do mundo, escreveu, na ocasião de sua passagem pelas terras do sul de nossa América, um relato minuciosamente apurado, mas que na verdade parece mais um delírio fantasioso.

Nessa viagem, ele diz que viu porcos com umbigos nas ancas, pássaros sem garras cujas fêmeas botavam os ovos nas costas de seus parceiros, e ainda outros, lembrando pelicanos deslinguados, com bicos feito colheres.

Ele disse ter visto uma criatura desengonçada, com cabeça e orelhas de mula, corpo de camelo e pernas de veado, que relinchava como cavalo. Descreveu como o primeiro nativo encontrado na Patagônia se olhou no espelho, e em seguida, o impassível gigante, perdeu a razão, aterrorizado com sua própria imagem.

Este curto e fascinante livro, que já naquela época continha as sementes de nossos atuais romances, é sem dúvida o mais pungente relato da realidade nossa daquele tempo.

Os cronistas das Índias nos deixou outros incontáveis relatos. Eldorado, nossa terra ilusória e tão avidamente procurada, apareceu em numerosos mapas durante anos, deslocando-se de lugar e de forma de acordo com a fantasia dos cartógrafos.

Em sua procura pela fonte da eterna juventude, o mítico Alvar Núñez Cabeza de Vaca explorou o norte do México por oito anos, numa iludida expedição cujos membros devoraram uns aos outros e, dos seiscentos que foram, apenas cinco voltaram.

Um dos muitos mistérios inimagináveis daquela época é o das onze mil mulas, cada uma carregando cinqüenta quilos de ouro, que um dia deixaram Cuzco para pagar o resgate de Atahualpa e nunca chegaram ao seu destino. Depois disso, no tempo das colônias, galinhas vendidas em Cartagena de Índias eram criadas em terrenos de aluviões e em suas moelas eram encontradas pequenas pepitas de ouro.

A cobiça de ouro de nossos fundadores nos perseguiu até recentemente. No fim do último século [XIX], uma missão alemã, indicada para estudar a construção de uma ferrovia inter-oceânica, através do istmo do Panamá, concluiu que o projeto era viável com uma condição: que os trilhos não fossem feitos com aço, que era raro na região, mas com ouro.

Nossa independência da dominação dos espanhóis não nos pôs fora do alcance da loucura. O general Antonio López de Santana, três vezes ditador do México, providenciou um magnífico funeral para a perna direita que ele perdera na chamada Guerra dos Pastéis. O general Gabriel García Moreno governou o Equador por 16 anos como um monarca absoluto; em seu velório, o corpo ficou sentado na cadeira presidencial, vestido com o uniforme completo e decorado com uma camada protetora de medalhas.

O general Maximiliano Hernández Martínez, o déspota teosófico de El Salvador, que teve 30 mil camponeses aniquilados num massacre selvagem, inventou um pêndulo para detectar veneno em sua comida, e mantinha as lâmpadas das ruas envolvidas em papel vermelho para vencer uma epidemia de escarlatina. A estátua do general Francisco Morazán, na praça principal de Tegucigalpa, é na verdade do marechal Ney, comprada num depósito de esculturas de segunda mão em Paris.

Onze anos atrás [1971], o chileno Pablo Neruda, um dos brilhantes poetas de nosso tempo, iluminou este público com suas palavras. Desde então, os europeus de boa vontade – e às vezes aqueles de má vontade também – têm sido arrebatados, com cada vez mais força, pelas novidades fantásticas da América Latina, esse reino sem fronteiras de homens alucinados e mulheres históricas, cuja infinita obstinação se confunde com a lenda.

Não temos tido sequer um minuto de sossego. Um prometéico presidente, entrincheirado em seu palácio em chamas, morreu lutando contra um exército inteiro, sozinho; e dois suspeitos acidentes de avião, ainda por explicar, abreviaram a vida de um grande presidente e a de um militar democrata que tinha ressuscitado a dignidade de seu povo.

Já ocorreram cinco guerras e dezessete golpes militares; surgiu um diabólico ditador que está realizando em nome de Deus o primeiro etnocídio da América Latina de nosso tempo. Nesse ínterim, 20 milhões de crianças latino-americanas morreram antes de completar um ano de vida – mais do que as que nasceram na Europa desde 1970.

Os desaparecidos pela repressão chegam a quase 220 mil. É como se ninguém soubesse onde foi parar a população inteira de Uppsala. Várias mulheres presas grávidas deram à luz nas prisões argentinas, e ainda ninguém sabe do paradeiro e da identidade de seus filhos, que foram furtivamente adotados ou enviados para orfanatos por ordem das autoridades militares.

Porque tentaram mudar esta situação, quase 200 mil homens e mulheres morreram em todo o continente, e mais de cem mil perderam suas vidas em três pequenos e malfadados países da América Central: Nicarágua, El Salvador e Guatemala. Se fosse nos Estados Unidos, seria o equivalente a um milhão e seiscentos mil mortes violentas em quatro anos.

Um milhão de pessoas abandonaram o Chile, um país com tradição de hospitalidade – ou seja, doze por cento da população. O Uruguai, pequenina nação de dois milhões e meio de habitantes, que se considerava o país mais civilizado do continente, perdeu para o exílio um em cada cinco de seus cidadãos.

Desde 1979, a guerra civil de El Salvador vem produzindo quase um refugiado a cada vinte minutos. O país que se poderia criar com todos os exilados e emigrantes forçados da América Latina teria uma população maior que a da Noruega.

Ouso dizer que é esta desproporcional realidade, e não apenas sua expressão literária, que mereceu a atenção da Academia Sueca de Letras. Uma realidade não de papel, mas que vive dentro de nós e determina cada instante de nossas incontáveis mortes de todos os dias, e que nutre uma fonte de criatividade insaciável, cheia de tristeza e beleza, da qual este errante e nostálgico colombiano não passa de mais um, escolhido pelo acaso.

Poetas e mendigos, músicos e profetas, guerreiros e canalhas, todas as criaturas desta indomável realidade, temos pedido muito pouco da imaginação, porque nosso problema crucial tem sido a falta de meios concretos para tornar nossas vidas mais reais. Este, meus amigos, é o cerne da nossa solidão.

E se estas dificuldades, cuja essência compartilhamos, nos atrasa, é compreensível que os talentos racionais desta parte do mundo, exaltados na contemplação de sua própria cultura, se encontrem sem meios apropriados de nos interpretar.

É simplesmente natural que eles insistam em nos medir com o mesmo bastão que medem a si mesmos, se esquecendo de que as intempéries da vida não são as mesmas para todos, e que a busca pela nossa própria identidade é tão árdua e sangrenta para nós quanto foi para eles.

A interpretação de nossa realidade em cima de padrões que não são os nossos serve apenas para nos tornar ainda mais desconhecidos, ainda menos livres, ainda mais solitários.

A venerável Europa talvez pudesse ser mais perceptiva se tentasse nos ver em seu próprio passado. Se ela recordasse simplesmente que Londres levou 300 anos para construir seu primeiro muro, e mais 300 para ter um bispo; que Roma labutou numa penumbra de incertezas por 20 séculos, até que um rei etrusco a fizesse entrar para a história; e que a pacífica Suíça de hoje, que nos deleita com seus leves queijos e simpáticos relógios, derramou o sangue da Europa como soldados mercenários, no final do século XVI. Mesmo no alto da Renascença, 12 mil lansquenetes pagos pelo exército imperial saqueou e devastou Roma e trespassou oito mil de seus habitantes na espada.

Não quero incorporar as ilusões de Tonio Kröger, cujos sonhos de unir um casto norte a um sul apaixonado foram exaltados aqui, há 53 anos, por Thomas Mann. Mas realmente acredito que aqueles europeus esclarecidos que lutaram, inclusive aqui, por um lar mais justo e humano, pudesse nos ajudar muito melhor se reconsiderassem sua maneira der nos ver.

A solidariedade com nossos sonhos não vai nos fazer menos solitários, enquanto isso não for traduzido em atos concretos de apoio legítimo às pessoas que aceitam a ilusão de ter uma vida própria na divisão do mundo.

A América Latina não quer, nem tem qualquer razão para querer, ser massa de manobra sem vontade própria; nem é meramente um pensamento desejoso que sua busca por independência e originalidade deva se tornar uma aspiração do Ocidente. No entanto, a expansão marítima que estreitou essa distância entre nossas Américas e a Europa parece, ao contrário, ter acentuado nosso distanciamento cultural.

Por que a originalidade nos foi agraciada tão prontamente na literatura e tão desconfiadamente nos foi negada em nossas difíceis tentativas de mudanças sociais? Por que pensar que a justiça social perseguida pelos europeus progressistas aos seus próprios países não pode ser um objetivo da América Latina, com métodos diferentes em condições desiguais?

Não: as incomensuráveis violência e dor de nossa história são o resultado de antigas iniqüidades e amarguras caladas, e não uma conspiração tramada a três mil léguas de nossa casa.

Mas muitos líderes e intelectuais europeus têm pensado assim, com a infantilidade de seus antepassados que se esqueceram do proveitoso excesso de sua juventude, como se fosse impossível chegar a outro destino que não o de viver entre a cruz e a espada. Isto, meus amigos, é o tamanho exato de nossa solidão.

Apesar disso, à opressão, ao saque e abandono, respondemos com vida. Nem enchentes nem pragas, nem fome nem cataclismos, nem mesmo as eternas guerras, séculos após séculos, foram capazes de subjugar a persistente vantagem que a vida tem sobre a morte. Uma vantagem que cresce e acelera: todo ano, há 74 milhões de nascimentos a mais do que mortes, número o suficiente de novas vidas para multiplicar, a cada ano, a população de Nova York sete vezes.

A maioria desses nascimentos ocorre em países de menos recursos – incluindo, claro, os da América Latina. Contraditoriamente, os países mais prósperos se realizaram acumulando poderes de destruição, com força o bastante para aniquilar, num total de cem vezes, não apenas todos os seres humanos que já existiram até hoje, mas também todos os seres vivos que um dia respiraram neste planeta infeliz.

Um dia como hoje, meu mestre William Faulkner disse: “Eu me recuso a aceitar o fim da humanidade”. Não seria digno de mim estar num lugar em que ele esteve se eu não tivesse plena consciência de que a tragédia colossal que ele se recusou a reconhecer, 32 anos atrás, é agora, pela primeira vez desde o começo da humanidade, nada além de uma simples possibilidade científica.

Cara a cara com esta realidade horrenda que pode ter parecido uma mera utopia em toda a existência humana, nós, os inventores das fábulas, que acreditamos em qualquer coisa, nos sentimos inclinados a acreditar que ainda não é tarde demais para nos engajarmos na criação da utopia oposta.

Uma nova e avassaladora utopia da vida, onde ninguém será capaz de decidir como os outros morrerão, onde o amor provará que a verdade e a felicidade serão possíveis, e onde as raças condenadas a cem anos de solidão terão, finalmente e para sempre, uma segunda oportunidade sobre a terra.

sábado, abril 16, 2016

O fabuloso discurso de José Eduardo Cardozo - 15/04/2016

Assisti ao discurso de José Eduardo Cardozo, então Advogado-Geral da União, e não deixei de me impressionar. Cardozo equilibrou-se com imensa habilidade por 25 minutos em cima de argumentos construídos com rigor, peso e método, tanto do ponto de vista jurídico quanto político. É uma verdadeira aula de retórica de alguém que domina com perícia aquilo que fala. O eloquente advogado amargou críticas pesadas de setores do Governo enquanto esteve à frente do Ministério da Justiça. Afinal, ele era o chefe da Polícia Federal. Para os sujeitos que firmavam as críticas, a Polícia atuou de forma política e viciada, sem que o ministro interviesse. Escutemos. Daqui a alguns anos, a arquitetura de seu discurso será estudada.

sexta-feira, abril 15, 2016

O momento político atual e uma frase de Lima Barreto

Lima Barreto no início do século XX, verbalizava por meio de seu imortal personagem Policarpo Quaresma: "Ou o Brasil acaba com as formigas; ou as formigas vão acabar com o Brasil". Darcy Ribeiro quando foi ao programa Roda Viva, disse que o Brasil é uma potência; é um país bonito, cheia de energia criadora, mas a sua elite 'ranzinza', 'mesquinha', finória', impede que o país avance. Pensado pela perspectiva policarpeana, as formigas continuam acabando com o Brasil. Alimentam-se de sua seiva, de suas riquezas, de seu viço; impedem avanços, refreiam otimismos. É difícil aceitar que passados mais de cem anos da escrita do livro de Lima Barreto, o Brasil continue a amargar um quadro político regressivo. 

Do início do século XX até hoje, o país passou pelo menos por três golpes. Todos eles apresentaram o desejo sanguinário das elites, conectadas aos desejos do grande capital internacional, de manter o Brasil como um país pequeno e insignificante. Golpes são dados todas as vezes que os interesses das elites são contrariados. O simulacro de democracia que temos, atesta um modelo para se chegar ao poder: no Brasil, para se alcançar o mandato eletivo, é necessário consegui-lo por meio do voto. Mas, essa garantia é relativa em um país de grande violência perpetrada pelas elites. 

Para isso, arranja-se, constrói-se o consenso em torno de determinadas máximas falíveis aos olhos da razão. O poderes República não são esferas harmônicas, capazes de fazer funcionar o Estado Democrático de Direito. O Judiciário não é "última trincheira da cidadania", como afirma o ministro do STF, Marco Aurélio de Melo; trata-se de um espaço para que alguns juízes façam política e distorçam o direito. O Legislativo não é a casa do povo; é o espaço para que os parlamentares trabalhem para os empresários que financiaram as suas campanhas. A palavra "povo" é um termo conveniente para o Legislativo. Pensar no trabalhador, nas crianças de rua, na políticas públicas necessárias, na dignidade, é uma miragem impossível. E o Executivo é o centro que coordena "a gerência da casa". Ou seja, é de lá que saem projetos que dinamizam a vida social e econômica. Dependendo de quem coordene, presida "a casa", abre-se espaço para as políticas que podem ou não beneficiar os trabalhadores - ou ainda determinados grupos da sociedade.

Pois é justamente o Executivo o centro de interesse da burguesia brasileira. O impedimento de Dilma Rousseff está assentado em uma grande farsa, por isso é um golpe. A burguesia aliançada ao capital usa os mais diferentes métodos para aplicar golpes: firma aliança com os militares como aconteceu no Brasil em 1964; judicializa os resultados eleitorais como atualmente está acontecendo; desgasta o governo opositor e popular por meio de determinadas pautas sensacionalistas, estabelecendo conexões explícitas com o aparelho midiático. Para se destruir alguém, nada melhor do que o jogo de especulações e sensacionalismos; nada melhor do que criminalizar, enxovalhar a imagem pública, "depredar" a credibilidade política  por meio do alardeamento de escândalos selecionados e potencializados. Corrupção não é uma prática privativa do governo do PT. Os erros políticos de Dilma não são suficientes para impedi-la politicamente, fazendo romper o seu mandato.

Um golpe a essa altura, colocar-nos-ia na mesma posição de Paraguai e Honduras, que foram os primeiros países latino-americanos a experimentarem rupturas democráticas em pleno século XXI. Essa condição vulnerabiliza conquistas. Coloca-nos numa posição de bagunça; de ausência de seriedade; cria retrocessos graves; abocanha direitos como se visualiza no horizonte que se desenha: a aliança PMDB-PSDB será um massacre contra os trabalhadores e contra os mais pobres. Para que a burguesia continue a ter seus lucros, é necessário fazer mudanças constitucionais e construir garantias de que não haverá resistências ao longo dos próximos anos. Por isso, são necessários pelo menos duas certezas imediatas: (1) retirar Dilma do poder e implantar um agenda conservadora para fazer acontecer aquilo que não aconteceu nos quatorze anos de governo do PT; (2) destruir a credibilidade política do PT e do seu principal líder - Luis Inácio Lula da Silva. Para isso, é importante colocá-lo como o grande bode expiatório da Lava a Jato. Hoje, li uma notícia que informava que há intenções no juiz Moro de encerrar a Operação ainda este ano. Por quê? Por que nos dois anos de Operação nenhum parlamentar do PSDB foi investigado, por exemplo, e tantas figuras ligadas ao PT amargaram a implosão pública de suas imagens? Por que Moro se nega a investigar os duzentos nomes da lista da Odebrecht e não quis a delação do empresário famoso? 

Há quem defenda o golpe sabendo daquilo que deseja com essa ruptura. Todavia, é inadmissível perceber trabalhadores defendendo esse artifício. É como se o algoz convencesse o condenado a comprar a própria corda que matará este. Um dos meios mais eficazes das elites conseguirem seus intentos, convencendo a opinião pública, é por meio de seu aparato de informações. No Brasil, desde o Império e início da República, que os jornais hegemônicos pertencem às famílias mais ricas do país. Com o advento da TV e do rádio, a força retórica do convencimento se tornou maior. Ou seja, não há escapatória para o homem médio - se ele não ler, ele escuta no rádio; se ele não ler nem escutar no rádio, a televisão cria o consenso por meio das edições de imagem. 

Diz Lima Barreto que o quixotismo de Policarpo Quaresma, levou-o à morte. Suas ideias não surtiram nenhum efeito. O seu desejo de "reformar" o Brasil foi suplantado pelos choques com o mundo dos interesses e das conveniências dos grupos que mandam no país. Infelizmente, o que já está desenhado e, que, neste momento está sendo colorido, é a certeza manifesta de que continuamos sendo devorados "pelas formigas"; e que as nossas elites desejam que vivamos acorrentados na escuridão, sem possibilidades de sonharmos com o futuro. 

sexta-feira, abril 08, 2016

"Fome de Saber - a formação de um cientista", de Richard Dawkins

"Todos nós podemos nos considerar improváveis", Richard Dawkins.

Há mais de um mês fui à Livraria Cultura. Perambulei por entre as estantes como sempre faço. Permiti que os meus olhos passeassem pelas pilhas de livros, que ficam logo à entrada, ostentando os lançamentos. Os livros são dispostos em círculos. São três ou mais círculos. São verdadeiros chamarizes. Entre os muitos livros que encontrei, estava "Fome de Saber - a formação de um cientista" (Companhia das Letras), de Richard Dawkins.  Quando o vi, imediatamente coloquei o livro embaixo do braço. Não li nada dele - orelhas, contracapa, introdução... Desejei fazê-lo mais tarde. Sabia apenas que se tratava de material relevante. Naquela ocasião estava lendo Kafka e Graciliano Ramos, por isso, não comecei a leitura imediatamente.

Richard Dawkins é uma figura importante e internacionalmente conhecida. Sua militância é conhecida, seja em debates, palestras ou seminários. O cientista inglês é um dos mais conscientes ateus da atualidade. Não apenas isso, pois ele é um militante da causa ateia. Como em "Deus, um delírio", Dawkins mostra o quanto a religião institucional traz malefícios para a humanidade. "Fome de Saber" é uma autobiografia - sua aguardada autobiografia. Como é característico do autor, o livro possui uma linguagem simples, leve, convidativa. É possível ficar por boas horas lendo sem perceber a passagem do tempo. 

Dawkins começa a contar a história de sua vida, fiando-se pelos costumes bretões. É importante para ele contar certos feitos traditivos de sua família. Busca na história, que chega até o século XVI, o nome "Dawkins". Essa incursão genealógica é relevante para as figuras do Velho Mundo. Nós brasileiros não temos essa preocupação. A história não é um elemento no qual prestamos atenção. Não buscamos encontrar nela os caminhos que nos trouxeram ao presente. Sendo um cientista, Dawkins sabe muito bem analisar a evolução de sua história.

Como era filho de um militar, Dawkins passou boa parte de sua infância no centro-sul do continente africano. Seu pai estava a serviço do seu país. Ele morou em Uganda, Malaui, Tanzânia, África do Sul. Sua vivência com a riqueza natural talvez o tenha preparado, inconscientemente, para a biologia. Dawkins conta que aquilo era um grande prazer. Tanto é assim, que as viagens módicas que realizava para a Inglaterra a fim de visitar os avôs não possuíam o sabor que deveria ter. O clima e a natureza inglesas não davam o prazer sensual que ele sentia quando estava no continente africano. O livro traz algumas fotografias. Entre elas, é possível encontrar algumas de sua residência na África. 

Quando a Guerra acabou, Dawkins voltou para a Inglaterra. Seu pai comprou uma propriedade no interior do país. É o período em que o cientista estabelece contato com o ensino inglês. É numa dessas instituições que ele nos conta como perdeu a fé. Vale fazer uma digressão para contar que Dawkins foi um fervoroso crente na fé cristã quando jovem. Fazia suas orações. Frequentava os cultos da Igreja Anglicana. Cantava no coral da Igreja. Mas, o contato com a ciência fê-lo desistir da fé. Passou a não haver mais sentido para o conjunto de crenças em dogmas que arrimam a fé cristã. Em determinado culto, enquanto todos se ajoelhavam, ele permaneceu de pé, com os braços cruzados. Ele estava a sua nova forma de experimentar a religião - com frieza, tentando discerni-la por meio da razão.

Na segunda parte do livro, o escritor descreve a sua vida como pesquisador. As engenhocas inventadas na Academia. Sua paixão pelos computadores. A descoberta do darwinismo. O emprego conseguido em uma universidade dos Estados Unidos. Na segunda parte, há mais descrições da sua teoria, ou seja, de como ele chegou a escrever a sua grande obra, a saber, O gene egoísta, que o projetou para o mundo e o tornou um dos principais cientistas do século XX. 

Dawkins termina o livro com a promessa que haverá continuação da sua autobiografia, ou seja, um segundo livro. 

sexta-feira, abril 01, 2016

"O Castelo" de Kafka e a anunciação: "algo falta"

"O Castelo, cujos contornos começavam já a diluir-se, continuava silencioso como sempre; K. ainda não tinha visto o menor sinal de vida; talvez fosse absolutamente impossível reconhecer qualquer coisa a distância, e no entanto os olhos o exigiam e não podiam suportar aquela atitude. Quando K. olhava para o castelo, frequentemente lhe parecia estar observando alguém, sentado tranquilamente lá, olhando para ele, não perdido em pensamentos e esquecido de tudo, mas livre e despreocupado, como se estivesse só, sem ninguém a observá-lo; e no entanto não podia deixar de perceber que estava sendo observado" Franz Kafka, in O Castelo, p. 144

Passei mais de um mês lendo O Castelo, de Kafka. A leitura seguiu lenta. Em alguns momentos larguei o livro e me fiei por outro texto. Não é que estivesse achando a história "chata". Havia em mim uma tentativa de tentar assimilá-la, degluti-la, processá-la; desejo de penetrar em seu tema; não me perder em seus labirintos. O fato é que O Castelo não é uma obra para leitores neófitos. Quem deseja gostar de ler, não comece por essa obra do escritor tcheco. Haverá abismos enormes pelo caminho. E, certamente, indisposições compulsórias surgirão. 

Novamente, Kafka flerta com a inverossimilhança. Se em A Metamorfose Gregor Samsa se transforma em um inseto asqueroso e acaba sendo repelido pela família, passando a ser uma espécie de câncer social; em O Processo, Joseph K. recebe dois misteriosos visitantes que avisam haver um processo inexplicável contra ele, em O Castelo, Kafka trabalha com uma redução ainda mais gravosa. A personagem chama-se apenas K. É o suficiente. Uma letra seca, mínima; um código tentando burlar os obstáculos para entrar no Castelo. A construção fica na distância como gigante intransponível. Ele está presente em todo canto por meio dos seus subordinados - secretários, chefes de gabinetes, autoridades várias, que impedem K. de ter acesso ao Castelo. O conde West-West, dono do castelo, ramifica-se por meio do espectro de subordinados que dificultam a existência de K. 

Franz Kafka
Nesse sentido, é importante dizer que Kafka foi um visionário, alguém que criou narrativas grotescas a fim de revelar a modernidade. Walter Benjamin, que escreveu um importante ensaio sobre o escritor tcheco (Franz Kafka - a propósito do décimo aniversário de sua morte), diz que "o mundo das chancelarias e dos arquivos, das salas mofadas, escuras, decadentes, é o mundo de Kafka" (2012, p.148). Kafka constrói cenários absurdos para exemplificar o quanto a vida do homem nas grandes cidades, metido dentro do labirinto das burocracias estatais, perdido nas incongruências de uma rede invisível, que possui o controle do olhar; um deus que é ubíquo, mas que não é alcançado. Ele se faz presente, pois vemos aqueles que agem em seu nome, mas não podemos enxergar-lhe o rosto. É nesse sentido que a obra de Kafka ganha dimensões insondáveis. 

Em O Castelo a narrativa é permeada pelo caos, pelas digressões impossíveis que quebram o fluxo narrativo; vemo-nos perdidos em meio a personagens que surgem do nada. Todos eles parecem ser cúmplices das autoridades do Castelo. Dos três romances que li do escritor, ficou a sensação de que as ações narradas por Kafka sempre insinuam algo que falta. As personagens estão numa grande busca. Samsa não entende o porquê de ter se metamorfoseado em um inseto; Joseph K. procura encontrar uma resposta para o processo e K. procura romper os muros invisíveis que impedem a sua entrada no castelo do conde. O escritor parece direcionar o seu olhar para a existência asfixiada dos homens modernos, controlados, medidos, contidos, premidos pelo poder invisível. As enormes estruturas dos aparelho estatal. O controle com mãos habilidosas. A força que coage, que reprime e aplica sanções, quando o sujeito não atende aos reclames dos tentáculos burocráticos.

Curiosamente, o livro termina do nada. A história é interrompida sem que a personagem consiga ingressar no castelo. Leandro Konder em seu "Kafka - vida e obra", diz que que Thomas Mann premeditou um final para o livro. 

"Ao se interromper o original d'O Castelo, vemos o seu herói, o agrimensor K., sozinho, cansado, obrigado a executar tarefas domésticas para a criadagem do hotel, a fim de não morrer de fome. Segundo afirma o escritor alemão Thomas Mann, o romance deveria terminar com a morte de K. e, minutos após o seu falecimento, a chegada de uma mensagem autorizando-o a se apresentar no Castelo para a tão ansiada entrevista pessoal com um dos inacessíveis comparsas do conde West-West" (1974, p. 175).

Sei que isso seria uma digressão ou, talvez, uma comparação esdrúxula, mas o esdrúxulo é a
argamassa que Kafka utilizava para erguer os seus monumentos literários. Imagine um paciente que precisa de um transplante de rim ou que esteja com uma doença que demanda cuidados urgentes. Não tendo dinheiro para pagar um tratamento em um serviço particular, a pobre criatura recorre ao serviço público. Dorme na fila a fim de conseguir uma consulta. Na primeira vez não consegue o que pretendia. Recebe apenas a indiferença de servidores públicos acostumados com a insensibilidade da máquina emperrada da burocracia estatal. Tenta mais uma, duas, três... cinco vezes até conseguir. Ele quer o hospital (o castelo?). Ele precisa entrar ali. Entrevistar-se com um médico de cara dura. Consegue marcar a consulta. Precisará esperar quatro meses para ser atendido. Todavia, nesse espaço, a sua saúde complica e o infeliz paciente acaba falecendo a um dia da consulta. 

Outra situação é um preso que acabou sendo condenado injustamente. Ele é de periferia. É pobre. Sabe que o Estado está em dívida com ele. O único advogado que consegue é da Defensoria Pública. Mas, nas idas e vindas, o seu caso acaba passando pela mão de cinco defensores. Cada defensor que analisa o caso, precisa voltar a estaca zero. O réu precisa de uma apelação. Ele deseja um novo julgamento. Não tem êxito. Sua solicitação é indeferida por juízes frios, entricheirados no regulamento. Os anos vão passando - cinco, dez, quinzes anos. A única coisa que o condenado deseja é provar a sua inocência. Quer um novo julgamento. Estar diante do juiz e da promotoria (o castelo?) com um advogado honesto, probo, comprometido. Finalmente, consegue. A audiência é marcada. Mas, uma rebelião explode em seu pavilhão. Os presos amotinam-se. Fazem reféns. A polícia tenta negociar. O charivari aumenta. E no meio do ensadecimento, dois dos reféns são mortos. Um deles é o condenado, que morre a um dia do seu julgamento. 

Por mais que sejam excêntricas essas histórias, elas são kafkianas. Penso que essa monumental obra que é o Castelo, aponte para esses casos. Kafka olhava para o mundo e ele estava  vestido pelo grotesco.

Livros citados:

BENJAMIN.Walter, Magia e Técnica, Arte e Política - ensaios sobre literatura e história da cultura - Obras Escolhidas I, Brasiliense, 2012, 271 pp.

KAFKA.Franz, O Castelo, Nova Cultural, 2003. 446 pp.

KONDER.Leandro. Kafka - vida e obra, José Alvaro/Paz e Terra, 1974, 217 pp.